Show: a obra de Chico Buarque pela comovida voz de Antônio Zambujo.

A nossa Fundação Catarinense de Cultura está de parabéns com as apresentações musicais que acontecem nos seus espaços, notadamente no Teatro Ademir Rosa.

No dia 14 de novembro de 2017, nós tivemos o privilégio de assistir ao show de Antônio Zambujo, cantando as canções de Chico Buarque. Que coisa linda, minha gente!

Antônio não somente tomou emprestado a beleza e a qualidade do cancioneiro Buarquiano, como também acrescentou às melodias uma capacidade interpretativa jamais alcançada…  Por conta da incontida emoção, o show arrebata a todos do início ao fim. Algo para ficar na memória do majestoso teatro!

Disco: CD “Amorosa”, de Rosa Passos.

Vejam como são as coisas. Eu fui professor de química por mais de trinta anos e, ao que tudo indica, terminei a carreira com o “gosto” de ter sido um bom professor. Daqueles que se preocupam efetivamente com o aprendizado dos alunos. Além disso, minha gente, nunca fui “carrasco” na correção das provas. Muito ao contrário, sempre entendi que o professor tem a obrigação de aproveitar toda e qualquer resposta produzida pelo estudante, ainda que seja apenas proporcional. Afinal, ao avaliarmos os alunos, temos o compromisso de pontuar o que o aluno sabe… e observar o que ficou faltando!
Mas o que eu queria dizer é que após a minha “aposentadoria” do giz e do quadro-negro, enveredei por outros caminhos. O primeiro foi quando cheguei em Florianópolis: tornei-me coordenador editorial de uma importante revista em São Paulo. Lá, aprendi a diagramar, fazer “layout”, revisar textos e, por fim, escrever artigos e crônicas sobre cinema e sobre o jazz, minhas duas paixões ao lado da literatura. Foi um rico aprendizado, creiam-me. O segundo foi quando me aventurei a dar cursos sobre a história do jazz, sobre literatura e sobre o cinema. Aí, meus amigos, eu descobri que a capacidade de o homem aprender é ilimitada. E prazerosa!
“Mas o que isso tudo tem a ver com o disco da Rosa Passos, Carlos”, perguntarão! Céus… queiram me desculpar. É que eu comecei a escutar o CD “Amorosa”, da Rosa Passos e acabei “viajando” nos pensamentos, propiciando essas digressões…
Então, pelo sim ou pelo não, acho que vocês deveriam conferir. Vai que o seu “motivo” é também intrigante e lhe permitirá boas lembranças, não valerá a pena?!

 

Rosa Passos

Cinema: filme “O Expresso da meia-noite”, de Alan Parker.

SOMOS  TODOS  ESTRANGEIROS!

O filme de hoje é o magnífico “O Expresso da meia-noite”, produzido em 1978 por Alan Parker. O que eu posso afirmar a vocês é que a história do filme é impressionante e foi baseada em um caso real, ocorrido com um estudante norte-americano. O roteiro de Oliver Stone, ganhador do Oscar, conseguiu dar a medida das violências, torturas e os interrogatórios cruéis de que foi “vítima” o estudante. Com extraordinária sensibilidade, Oliver Stone penetrou na profunda desesperança em que mergulhara o jovem e conseguiu extrair dos personagens o “lado negro” de suas almas conflitadas. Em contrapartida, para a nossa sorte, ele foi recompensado com a brilhante estreia de Brad Davis e pelo magnífico desempenho de John Hurt. No meu entendimento, os dois atores mereciam ganhar o Oscar. Lá, isso sim!

Pelo visto, nem mesmo Camus ou Kafka, os mestres do absurdo, conseguiriam imaginar tal história. E olha que eles não foram os únicos que se sentiram “estrangeiros” nesse conturbado mundo. É o tal negócio: no fundo, há sempre um pouco desse sentimento presente em cada um de nós. Isto porque, convenhamos, quase todos nós já nos deparamos com situações profundamente “conflitantes”. Ainda que sejam repudiadas, devemos reconhecer que elas fazem parte da trajetória da gente. Afinal, quem não se sentiu perdido, injustiçado e sem perspectivas em algum momento da vida? Quem não experimentou fortes dores ao longo do percurso e, muitas vezes, provou o “pão que o diabo amassou”? Como se as razões extinguissem o bom senso e traíssem qualquer noção de humanismo. Como se o “absurdo” valesse bem mais do que tudo!

O processo desencadeado a partir da prisão do estudante não se compara, decerto, com O Processo – vivido por Josef K., de Franz Kafka. Não obstante, nós podemos observar idêntica degradação a que um homem pode ser submetido. Degradação essa, meus amigos, que nenhuma criatura desse mundo merece viver, por mais “abominável” que ela possa ser… E esta degradação foi muito bem representada na cena da marcha “silenciosa e louca” dentro do pátio interno da cadeia. É uma cena forte e angustiante, sem dúvida, mas impecável. Estarrecidos, vemos os presos caminhando “conformados” em um labirinto asfixiante. Com passos lentos, eles caminham sem nenhum motivo. Sem sentido algum. Simplesmente, caminham. Como se estivessem “Esperando Godot”… Meu Deus, por que “sempre pela direita?”

Verdade é que muitos pensadores já se reconheceram encurralados pelo mundo “normal”. E por certo, eles já devem ter se sentido “impotentes” diante dos acontecimentos da vida. Paciência! Fazer o quê?! Bertolt Brecht, por exemplo, foi um que declarou: “Eu vivo num tempo sombrio. / A inocente palavra é um despropósito. / Uma fonte sem ruga denota insensibilidade. / Quem está rindo é porque não recebeu ainda a terrível notícia!” Será isso loucura? Será absurdo? Nem sempre, minha gente… nem sempre!

Rainer Maria Rilke foi outro que se deparou com tais emoções. Em Cartas a um jovem poeta, ele nos aconselhava: “… mas não se importe. Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. O que é preciso é caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém – é a isto que é preciso chegar”. Pois é. Nós até podemos acalentar esse conselho, contudo, é extremamente complicado pôr em prática, não acham?!

Muito embora o filme esteja completando 40 anos, o que se percebe é que a linguagem adotada – texto, fotografia e roteiro – permanece extremamente atual. Por sinal, são raros os filmes antigos a que conseguimos assistir com igual prazer (ou dor!) tempos depois. É bem o caso do “O expresso da meia-noite”. Impiedosamente, ele se revela incisivo e corajoso, à medida que aborda uma história absurda e desumana, bastante presente em nossos dias. Talvez por isso, ele acabou se tornando um filme “emblemático”, capaz de seduzir e agradar a quase todos. Ao menos, os que se deixam emocionar!

Sabemos que a história da humanidade está repleta de exemplos de violências e castigos impostos aos semelhantes. Perversamente, quase todos são movidos por ódios ou fanatismos, ou seja, aqueles velhos e equivocados sentimentos que reduzem o “homem” a uma condição quase primitiva…

A despeito de tudo, eu sou um otimista incorrigível e conservo fortes esperanças na vida e no homem. Sim, minha gente! Apesar dos pesares, eu continuo a acreditar no “homem”, porque acredito na “arte” que está nele. E por sorte, arte é o que não falta nesse belíssimo filme!
Em momentos como esse, em que chegamos a duvidar do bom senso e quase perdermos as esperanças no homem, eu me lembro, então, de Alexander Solzhenitsyn: “Seus relógios estão atrasados. Fechem as cortinas de que tanto gostam, pois vocês sequer suspeitam que lá fora existe a luz do sol.”

 

Expresso

Literatura: Luís Fernando Veríssimo.

Eu estava organizando algumas fotos, novas e velhas, quando me deparei com uma série de imagens que havia feito ao visitar a Feira Cultural do colégio do meu filho. Lá, havia um grande painel, afixado na parede, contendo diversas frases de renomados escritores. É bem verdade que muitas delas eu já conhecia e admirava, mas houve uma que me chamou a atenção em especial: a do escritor Luís Fernando Veríssimo. Dizia no improvisado cartaz: “Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas!”

Céus…  Aquilo me bateu fundo! Senti até saudades das densas e ricas sessões de terapia com o solidário Alexandre Kahtalian porque, minha gente, estando próximo dos 67 anos de vida, inevitavelmente surge a pergunta: “Se mudarem as minhas perguntas, o que faço das respostas que garimpei até agora?!”

Pois é, meus amigos, queira ou não isso é algo que terei que encarar. E, por certo, haverei de responder às indagações que o mundo colocar em minha frente. Porquanto a vida, desafortunadamente, não pede intervalo para a pausa e tão pouco concede “salvo-conduto” aos inadimplentes…

Por outro lado, eu festejo a chegada dessas “novas” demandas, visto que somente assim eu terei, de fato, novas possibilidades nas respostas. E aí, que sabe, eu possa acertar algumas “coisinhas” que não soube responder adequadamente nas primeiras vezes, concordam comigo?!

Luis Fernando Veríssimo

 

Família: João Pedro e o urso…

Pelo sim ou pelo não, na hora da comida sempre aparece um “amigo urso”…  Por isso, é bom ficar atento, João Pedro!

Um beijo carinhoso e um “cheirinho” do vovô.

JP

Cinema: quando o “rapto” é permitido!

É sabido que um bom filme é composto por diversos atributos. Para os amantes da sétima arte, por exemplo, de nada adianta ter-se uma bela história para contar sem que haja outros importantes componentes presentes, tais como: enredo, fotografia, texto, roteiro, elenco e por aí vai… O pior de tudo é que ainda assim, muitas vezes, ocorre de se reunir tudo isso mas, faltou dinâmica, sinergia ou coisa que o valha. Moral da história: fazer um bom filme, sem dúvida, é algo extremamente difícil. O que dirá uma “obra-prima”?!

No entanto, para nossa sorte, de quando em quando surge no circuito um desses filmes inesquecíveis. Antológicos. Maravilhosos. E aí, invariavelmente, ao nos debruçarmos para avaliar o produto, em detalhes, veremos que há um pouco de tudo presente na consagrada obra.

Tomemos o exemplo do inesquecível “Cinema Paradiso”. Lembram? Ah, meus amigos, eu devo ter visto este filme uma dezena de vezes… e, em todas, juro, eu me emocionei comovidamente com a história. É que amparado em um elenco primoroso e tomado pela atmosfera criada pela história, bem como pela soberba trilha sonora de Ennio Morricone, o resultado não podia ser outro: uma obra-prima! Confesso a vocês que chorei todas as vezes que assisti ao filme. Pudera! É que Giuseppe Tornatore, como um verdadeiro mago, consegue nos raptar com o seu encantado enredo, do início ao fim. De tal modo que, ao final da película, ninguém escapa ileso. E o que nos resta, minha gente, é tão somente “reverenciar” o talento do grande gênio!

Portanto, insisto em declarar: sorte a nossa de existirem incríveis criaturas produzindo verdadeiras obras-primas. Desse modo, nós podemos fazer certas “expiações” tomando emprestado um filme aqui e outro acolá. Tudo isso, é claro, com o “tácito consentimento” desses fabulosos cineastas.

Abençoados sejam!

Tempos1
Tempos  Modernos
Tempos2
Cinema  Paradiso
Tempos3
E  o  Tempo  Levou.

Literatura: livro “Ninguém escreve ao Coronel”, de Gabriel García Márquez

OS  JARDINS  DE  TÂNATOS – Parte 1 / 2.

Certa vez eu ouvi de um amigo a seguinte sentença: “Ah, Carlos, esse mundo insiste em não se ajuizar. Não demora muito e ele logo apronta alguma!” Pois é… Eis aí uma dessas frases que ouvimos de quando em quando. Daquelas que nos convocam à manutenção, a qualquer custo, do juízo perfeito e da harmonia. Para muitos, no entanto, isso é pura sandice!

É bem verdade que o conceito de juízo ou bom senso é algo bastante relativo, visto que depende da situação envolvida. O nosso estimado Caetano Veloso já nos disse que “de perto, ninguém é normal”. Isso porque, quando se está de fora, como um neutro observador, os atos e fatos da vida parecem assumir condições que enquadramos em rígidos parâmetros. De modo geral, costumamos julgar “as coisas” com base no senso comum. Até aí, tudo bem. O discernimento, seguramente, deve estar a serviço de uma vida equilibrada. Não obstante, a busca por esse equilíbrio é que constitui a grande peleja da vida. Também é verdade que o mundo não é tão perfeito como imaginamos ou desejamos. Por certo, iremos nos deparar com situações que escapam ao nosso “comando”. E quando isso ocorre, reconheçamos, é um verdadeiro “Deus nos acuda”. De fato, são incontáveis os momentos em que a vida nos põe frente a frente com o “crime”. Entendendo esse “crime”, é claro, apenas no sentido da perda do controle. Digo isso, minha gente, porquanto é fácil perceber a desenfreada necessidade que temos de “controlar” tudo ao nosso redor. Como se que a perda do controle significasse tão somente um atestado de incapacidade ou desespero em qualquer um de nós. Um verdadeiro sufoco!

É interessante perceber que ao lermos um belo romance ou ao assistirmos a um denso filme, em cuja história algum personagem “destrambelha”, sentimos imediatamente “pena”! É uma reação espontânea, como um ato falho, pois logo a seguir vem: …tadinho, ele perdeu o controle! Não é assim que acontece? É… sei bem que tudo isso é bastante complicado. Sei até que me pilho, vez por outra, “controlando” a mim ou os que me cercam. Paciência, fazer o quê? Pelo visto, os sete anos de terapia não me deram imunidades! Mas, será que precisamos controlar “as coisas” assim? E o que representa esse controle? Bem, aí é que mora o “x” do problema. E a razão deste artigo!

Sem nenhuma cerimônia, devo confessar que tudo isso é profundamente inquietante. Para qualquer um de nós. E mais ainda: no meu entendimento, esta é a grande questão a ser respondida. Agora, se conseguimos responder corretamente, aí já são outros quinhentos… ou, como queiram, uma outra “peleja”!

Como exemplo, tomemos o filme “Ninguém escreve ao coronel”, de Arturo Ripstein. Baseado na belíssima novela de Gabriel García Márquez, o filme é um retrato vivo do que começamos a abordar. Com muita propriedade, o texto da contracapa informa: “Semanas após semanas, o Coronel se veste solenemente e fica parado diante do cais aguardando a carta que anunciará a chegada de sua tão esperada pensão. Todos do vilarejo sabem que ele espera em vão, inclusive sua mulher, que há anos o vê preparar-se diante do espelho para receber a carta que nunca chega. Mas, o Coronel fecha seus olhos diante desta verdade tão evidente e se agarra ao seu sonho. Caso contrário o que lhe resta? Ninguém escreve ao Coronel é um filme tocante, adaptado do romance de Gabriel García Márquez e tem no elenco atuações extraordinárias de Fernando Luján e Marisa Paredes como o coronel e sua esposa”.

Voltando ao tema do artigo, meus amigos. Será o Coronel um sujeito “desequilibrado”? Sua história é puramente absurda, a ponto de nos indignarmos ao assisti-la? O que ele deveria ter feito?

Alguns poderão afirmar: meu prezado Carlos, somente o Coronel poderia dar conta do seu drama. Afinal, já se disse por aí que todo drama é sempre individual. É… Pode ser, meus amigos. Mas, basta que o nosso olhar esteja menos contaminado pelo propalado equilíbrio e perceberemos que o Coronel talvez tivesse poucas alternativas. Mais ainda: concluiremos que o “galo” do Coronel representava bem mais do que um estimado animal. Ao que tudo indica, o galo era o único daquela vila que o compreendia com exatidão. Talvez porque encarnasse o símbolo da “resistência” mantida por ele, junto ao “sistema”. Ou quem sabe o galo estabelecesse a fronteira da última utopia do Coronel e daquela gente?! O certo é que naquele vilarejo ninguém podia mais viver sem o galo. Assim como o coronel não podia viver sem as utopias, ainda que estivessem impiedosamente abaladas. Restava ao coronel, ao menos, o seu vitorioso galo de briga!
No entanto, é interessante perceber que o galo nunca brigou com um oponente, meus amigos. Apenas com o espelho. Ainda assim, o nosso estimado coronel atribuía a ele uma força transformadora. Força capaz de redimir as muitas dores dele e daquele povo. Implicitamente, a “força” estava com o galo! Força essa que religião alguma conseguiu oferecer a contento, apesar das inúmeras seitas. E tampouco o sonho socialista foi capaz de perdurar, uma vez que se esfarelou feito biscoito velho…

Coronel

Cinema: filme “Nínguém escreve ao Coronel”, de Arturo Ripstein.

OS  JARDINS  DE  TÂNATOS – Parte 2 / 2.

O aparente absurdo da história encontra o eco perfeito no nosso “avesso”. Batendo e rebatendo em nossos corações e nos conduzindo à tácita solidariedade. Basta recordar a dramática cena do coronel penteando o cabelo da faminta esposa. A meu ver, assemelha-se mais ao “teatro do absurdo”. E foi Antonin Artaud, fiel escudeiro e representante deste, que disse: “O teatro, como a peste, é uma crise cujo desenlace é a morte ou a cura!”
Ah, meus amigos, eu não sei dizer o que nos cura… Tão pouco o que nos mata. No entanto, desconfio que a primeira grande utopia, criada pelo homem, talvez tenha sido o Éden. O verdadeiro nirvana onde, segundo afirmam, não precisávamos fazer absolutamente nada. Tudo nos era ofertado pela mãe-gentil, a natureza. E assim, reza a lenda, vivíamos em paz!
Logo a seguir, veio a cobiça. E os consequentes resultados dela. O homem, então, trilhou caminhos conturbados e que promoveram diversos conflitos. Por conta disso, é bem possível que muitas crenças, misticismos e utopias tenham surgido como uma espécie de “compensação” às perdas. Tudo bem. No fundo, quem sabe, elas eram até necessárias?! Ou inerentes ao processo evolutivo. De toda forma, é bem melhor do que ficar sentando à beira da estrada “esperando Godot”, não acham? Provavelmente, o nosso querido Coronel não leu a antológica obra de Samuel Beckett e nem ouviu falar de Antonin Artaud. Talvez tenha sido melhor. Afinal, ele encontrou a “loucura” ao seu jeito e ao seu tempo. Revelada sob a mais perfeita das condições: o sonho recorrente! Podendo, muitas vezes, parecer cruel aos que de fora observam. Apesar de tudo, devemos reconhecer, foi por intermédio dos sonhos que a humanidade encontrou muitas verdades. E por conta das utopias, o homem ainda sobrevive. Caso contrário, a vaca já teria ido para brejo há mais tempo…
Então, minha gente, é preciso ter cuidado no trato dessas questões. É preciso não bani-las “a priori”, como teimosamente fazemos quando nos deparamos com o “diferente” ou com o “inusitado”. Como fez Antonin Artaud. Ele via como absurdo a ação de se defender uma cultura, quando se deveria defender a vida, particularmente quando essa cultura nunca coincidiu com a vida, sendo feita apenas para dirigir, quer dizer, sufocar a vida!
Os “Jardins do Éden” podem ter revelado bem mais do que as “inocentes maçãs”, ainda que seja imputada à serpente a nossa primeira “loucura”. De toda a forma, com ou sem “pecado”, a loucura teve o seu lado bom. É que ao estampar os desejos inconscientes, presentes em cada um de nós, ela libertou um sem número de almas inconformadas ou diferentes. Em todos nós. Com isso, os nossos “julgamentos” se tornaram mais condescendentes e pudemos, enfim, avançar em alguns aspectos da nossa humanidade, que tantos cuidados careciam. É… no fim das contas o Coronel tinha razão ao acreditar que o galo lhe traria aquilo que a carta não anunciava: a vitória do sonho! E com sorte, melhor do ninguém, ele poria fim na miséria, na dor e no desalento: os indecorosos vizinhos do coronel.

Nessa vida, por certo, muita gente já atestou um sonho. É bem verdade que muitos deles foram vividos apenas por quem o sonhou. Pouco importa. No fundo, o que mais vale é evitar os “jardins” de Tânatos. Estes, sim, são sombrios. Dão as costas aos sonhos e, implacavelmente, sentenciam o fim das utopias, determinando a morte em toda a sua extensão! Por tudo isso, eu prefiro, então, a loucura de Artaud, quando diz: “Não tenho nem teatro nem palco que não o teatro do meu inconsciente e de meu coração”.
Se preferirem, embalado pelo sonho, Chico Buarque nos traz outra resposta: “A novidade / Que tem no Brejo da Cruz / É a criançada se alimentar de luz / Alucinados, meninos ficando azuis… / Na rodoviária, assumem formas mil. / Uns vendem fumo, / tem uns que viram Jesus. / Muito sanfoneiro, / cego tocando blues. / Uns têm saudade e dançam maracatus. / Uns atiram pedras, / outros passeiam nus! / Mas há milhões desses seres / que se disfarçam tão bem, / que ninguém pergunta / de onde essa gente vem?!”

Ninguém escreve ao Coronel

 

Cinema: filme “Amnésia”, de Christopher Nolan.

UMA  VELHA  CANÇÃO – Parte 1 / 2.

 Cena 1 – Atordoado, eu estiquei o braço e procurei alcançar o despertador. Como o quarto ainda estava escuro, fiquei sem saber se era dia ou noite. Aliás, eu gostaria de declarar: nunca gostei desse nome, “despertador”. Conforme a própria palavra sugere, aquilo que “desperta dor” não pode ser coisa boa. E dor, convenhamos, é a pior emoção que uma criatura experimenta na vida…

Ao olhar para TV, estampando uma indiferente tela azul, lembrei-me do filme a que assistira na noite anterior: “Amnésia”, de Christopher Nolan. “Sua história ajuda a entender a minha”, dizia o protagonista, Leonard. Foi quando pensei: “E eu, será que algum dia conseguirei entender a minha história?”

Avidamente, abri a gaveta da mesa de cabeceira e procurei pelo último bilhete dela, escrito no Dia dos Namorados: “Dormi feito um anjo. Acordei alegre e com saudades. Te amo!”

Cena 2 – Espalhados em cima da cama, estavam todos os bilhetes que trocamos durante o relacionamento amoroso. Com isso, iniciei uma ordenação. Primeiro, por grau de importância. Depois, cronologicamente. E logo a seguir, ordenei os bilhetes segundo as cores dos papéis. “Deve ser duro viver em função de pedaços de papel” – respondeu Natalie, em dado momento do filme. Ao lembrar a cena, consenti: “É… o que sobra de uma relação afetiva, muitas vezes, são só papéis… Tristes fragmentos que acabam perdendo o significado com o correr do tempo. E não há nada que se possa fazer contra isso!”

Cena 3 – É bem verdade que eu sou um sujeito pouco paciente. Algumas vezes, reconheço, sou até intolerante. Ah, se eu tivesse sido mais compreensivo com o momento que ela atravessava, quem sabe não pudesse perdoar certas desatenções cometidas? No fundo, parece que a vida fica sempre nos testando, que é para ver se estamos capacitados. Como se “viver” fosse um eterno teste de resistência emocional que certifica os nossos limites. “Tem coisas que é melhor você esquecer!”, veio estampado na capa do filme. E agora, o que fazer?

Cena 4 – Percebo que o sono começa a tomar conta de mim. Sendo assim, procuro me deitar no confortável sofá da sala, fechar os olhos e me “ausentar”. Profundamente. “O mundo não desaparece quando você fecha os olhos”, dizia Leonard. “Mas o meu mundo não precisa ser igual ao dele”, suspirei aliviado…

O certo, meus amigos, é que aqueles dias de profunda tensão e medo me deixaram em frangalhos, isso sim. Agora, eu bem necessito de descanso. Mais ainda: acredito que mereça! Afinal, eu lutei por este afeto desde o início. Até mesmo quando ela fraquejava e preferia, simplesmente, “chutar o balde”.

Cena 5 – Há quem garanta que os sonhos representam o melhor tratamento para o nosso espírito. Pode ser. O que sei dizer é que eu sonho com ela todos os dias. Irremediavelmente. E nos meus sonhos, ah, que delícia, ela consegue finalmente se dar conta dos equívocos. Consegue entender as razões do coração e as acolhe. Diz até que não há culpados nos nossos erros, apenas dificuldades presentes. De ambos. E nesses recorrentes sonhos, eu continuo a beijá-la com intensa paixão. Porém, de alguma forma… eu sempre acabo acordando. “Nem sei há quanto tempo ela se foi. É como se eu acordasse e ela não estivesse na cama, pois foi ao banheiro ou algo assim. Mas, de alguma forma, sei que ela nunca mais vai voltar para a cama. Se eu pudesse esticar o braço e tocar o seu lado da cama, saberia que está frio. Mas, não posso!”, desabafou Leonard.

Cena 6 – Havia uma semana que não conversávamos. Nem sequer nos víamos. E o tempo, como se sabe, é uma “faca de dois gumes”: se por um lado ele é um excelente “conselheiro”, por outro, cria perigosas fissuras. Porquanto somos criaturas movidas pela paixão, isso sim! E esta, por certo, precisa ser regada todos os dias com o mesmo carinho que uma planta exige. “Feche os olhos e se lembre dela. Sabe o que temos em comum? Nós dois somos sobreviventes!”, afirmava Natalie a Leonard.

 

Amnésia

Cinema: filme “Amnésia”, de Christopher Nolan.

UMA  VELHA  CANÇÃO – Parte 2 / 2 .

 Cena 7 – Abri os olhos e fiquei olhando para o teto. Longamente. Como que esperasse algumas respostas. E como elas não vieram, lembrei-me do comovido desabafo do romance “Luísa”, de Maria Adelaide Amaral, em que Luísa declara a Sérgio: “… eu devia me expor a você, sem reticências, sem jogos… mas, ao mesmo tempo, eu tinha medo de me dissolver, de me perder, de não ser mais eu, mas apenas um ser apaixonado… E tinha, principalmente, vergonha da minha ansiedade, da minha carência… se eu as exibisse, talvez você se assustasse e fugisse. Então, eu ocultava os meus excessos, me mostrava distante, forte, blasé… e o que acabava mostrando a você era apenas um arremedo de envolvimento, mesmo sabendo que isso nos fazia muito mal… Era como se você fosse Deus e tivesse o poder de decidir a minha felicidade ou a minha desgraça… Durante meses, ocultei a minha loucura, me contive, sufoquei, fui civilizada. Civilizada na minha fúria, civilizada na minha dor, civilizada em momentos que nunca deveria ter sido…”

Cena 8 – Eu tinha um colega, professor, que desenvolvia testes e provas para os alunos baseados em rígidos princípios: ou o estudante acertava a questão de ponta a ponta ou recebia grau “zero” na pergunta. Até que um dia eu lhe perguntei: “Ô, Paulo, o que você pretende: aproveitar o que o aluno sabe ou o puni-lo pelo que não sabe? Isto porque, companheiro, não há diferença alguma entre um menino que entregou a prova em branco e o que respondeu a todos os quesitos cometendo pequeníssimas falhas. Pelo seu critério, ambos receberão a mesma avaliação!” Até hoje, eu não obtive qualquer resposta dele…
“Ninguém é perfeito!”, dizia Leonard.

Última cena – Ao entrar no pequeno Café-Bar, deparei-me com o grupo de jazz, formado por amigos. Festejaram a minha chegada. Timidamente, percebi que outras pessoas me olharam com interesse e curiosidade. É que, no fundo, transcorrido tanto tempo sem sair de casa, enfim, eu me sentia “bonito”. Por dentro e por fora. Sentia-me até atraente. Meu Deus, que coisa boa é isso!

“Todos precisam de espelhos para se lembrarem de quem são. Não sou diferente!”, finalmente, admitiu Leonard.

Créditos finais – No momento, reconheço, eu não consigo me interessar por outra mulher, porquanto o meu coração ainda está voltado para ela. Mas… foi muito bom ter recebido os sinais de “saúde”. De toda forma, preferi voltar para casa mais cedo.
Abri o livro na página marcada e lá estava: “Eu vou ficar muito triste, mas vou matar você dentro de mim… e vou me vestir de luto e sofrer uma grande, uma enorme melancolia por essa perda… mas um dia, ao acordar, eu vou perceber que você não ocupa mais os espaços da minha memória afetiva de maneira tão insistente e que a sua presença finalmente se dissipou… E vou ser livre outra vez…”

Inconformado, joguei o livro em cima da mesa e acendi um cigarro. Junto com a fumaça, é verdade, eu também procurava exalar um pouco da angústia que me oprimia. Naquele momento, mais do que nunca, eu desejei estar acompanhado. Talvez por isso, tenha ligado o rádio na esperança do acalento. No entanto, para o meu infortúnio, a música que tocava era uma velha e conhecida canção: “Volta! / Vem viver outra vez ao meu lado. / Não consigo dormir sossegado, / Pois meu corpo está acostumado…”

amnesia2