Memórias: o “sentido da vida” e os cabelos brancos!

Vejam como são as coisas. Certa vez ao assistir ao programa de entrevistas numa emissora de TV, eu percebi que o sentido da vida (da minha, ao menos) fora ali revelado. Deixem-me explicar. Era um consagrado programa de entrevistas e o convidado especial daquela noite era o ator Juca de Oliveira. Pois muito bem. A entrevista seguia morna, mas, em dado momento, ele foi indagado sobre a técnica que usava nos palcos para “driblar” as dificuldades cotidianas em favor da personagem. Com muita sabedoria, Juca declarou: “realmente, nós utilizamos certos truques quando percebemos que não “vestimos” por inteiro a personagem. Eu, por exemplo, quando me flagro nessa situação, sou tomado por um forte desassossego. Por conta disso, eu busco na plateia, desesperadamente, um rosto que me seja profundamente terno e familiar. Geralmente, eu acabo encontrando este rosto numa velhinha de “cabelos brancos”, sentada logo nas primeiras filas. Aí, então, começo a desempenhar os primeiros dez ou quinze minutos da peça com o olhar voltado apenas para “ela”. Invariavelmente, o que tem acontecido é que “ela” percebe e, com isso, me devolve sob a forma de um intenso brilho nos olhos ou um doce sorriso estampado no rosto toda a emoção vivida. Como consequência, eu fico tão comovido com a reação que, quando me dou conta, já incorporei “a personagem” e o restante da peça é, enfim, ofertado a todos”. Moral da história, minha gente: todos nós, de alguma maneira, precisamos encontrar em tudo o que fazemos “aquela” velhinha de cabelos brancos, para darmos sentido a vida. Irremediavelmente!

PS. Sim, ia esquecendo: o belíssimo quadro é de minha querida mãe, Jarina Menezes, uma baita artista plástica que resolveu pintar em outras paragens…

O sentido da vida

Disco: CD “You won’t forget me”, com Shirley Horn.

Tudo bem. No fundo, eu sei que não deveria escrever sob certas condições. Mas, fazer o quê? Quem consegue ouvir Shirley Horn soltar represadas emoções e ainda permanecer incólume? Se você duvida disso, amigo leitor, então deixe tocar “Don’t let the sun catch you cryin’”. Como ato contínuo, você perceberá que a melodia penetrará em sua alma e, lentamente, libertará antigas questões. Sim! Pode acreditar nisso. É que a voz da nossa Shirley possui “poderes especiais”, minha gente, capazes de denunciar os mais recônditos desejos. Foi o que me aconteceu. Juro a vocês!

Eu estava quieto, escutando minha música e observando meu filho jogar no seu “notebook” deitado na rede. Aí, veio a mãe dele e o pediu para fazer algumas compras no supermercado aqui do bairro. Aumentei o som e ao ouvir a canção, ela imediatamente declarou: “nossa!, que linda melodia!” Daí, não demorou muito e ela, então, trancou a porta da sala e começou a sussurrar um monte de “fantasias” em meus ouvidos… Céus, nem posso repetir o que ela disse. Eu só me lembro que o nosso filho reclamou um bocado de termos demorado a abrir a porta. Foi quando nós olhamos um para outro e soltamos uma baita gargalhada!

Paciência… São coisas da vida. Mas, cá entre nós: foi uma tremenda “adrenalina”, não acham?!

https://www.youtube.com/watch?v=ZdHVw4HGAHA

ShirleyHorn

Jazz: a “Era das Big Bands”

É sabido que o jazz, muitas vezes, andou atrelado à contravenção. No apogeu do ragtime (1897 – 1917), por exemplo, os famosos “gângsteres” de Chicago, New Orleans e Nova Iorque mandavam e desmandavam nos destinos da música americana. E nos cabarés, quase todos controlados pelos mafiosos, somente os músicos apadrinhados podiam tocar ou cantar. Pouca coisa se podia fazer sem a permissão dos “donos” das cidades. Os conhecidos “vaudevilles” – shows musicais com a participação de dançarinos – imperavam em todos os cantos. Era a “febre” da dança e de intensa produção musical, como no caso das “Dixieland Bands”. Foi um período muito fértil musicalmente e grandes nomes foram lançados: Jelly Roll Morton, King Oliver, Scott Joplin, Buddy Bolden, Fats Waller e tantos mais. É bem verdade que muitos músicos dessa época sobreviveram às custas do “dinheiro sujo”. Eram tempos difíceis!

De certa forma, a Primeira Grande Guerra serviu como marco divisório na história do jazz, pois, logo a seguir, ressurgiu fortemente o “blues”. No entanto, se antes o “blues” exortava à dor e às dificuldades dos “errantes” negros do Sul, passou, depois disso, a expressar temas voltados para os problemas do amor. A década de 1920 viria a ser a “idade de ouro” dos “blues” vocais, que dominaram o país e influenciaram definitivamente o jazz!

 

A Era das Big Bands.

 

Memórias: quando é preciso ser grato!

Dizem que a “gratidão” é um dos sentimentos mais evoluídos que um ser humano pode apresentar. Sim, é bem possível. E se isso realmente for verdade, meus amigos, então, torço para que os “espíritos hospedeiros” tenham esta compreensão quando chegar a minha hora…

Por enquanto, creio eu, ainda há muito o que fazer por aqui. Muitos projetos de vida. Muitas descobertas e, acima de tudo, muito o que aprender, isso sim!

Sua bênção, Senhor.

Gratidão

Disco: CD “Getz / Gilberto”, com Stan Getz e João Gilberto.

“Olha que coisa mais linda / mais cheia de graça / É ela menina / que vem e que passa / num doce balanço / a caminho do mar…”. Ah, minha gente, ao escutarmos esses versos do nosso poetinha, convenhamos, nem é preciso dizer mais nada! Eis aí a síntese da nossa brasilidade. Para nós, evidentemente, talvez seja a melodia brasileira mais importante no mundo. E nem mesmo o indefectível “Parabéns pra você” mereceria mais destaque! Além disso, a extraordinária melodia de Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim adquiriu uma versão “definitiva” na suavidade da voz intimista de João Gilberto, amparada no talento de Stan Getz. Minha nossa! Eta, disquinho que nos enche de orgulho. Antológico. Obrigatório, eu diria!
De quebra, ainda tem a participação de Astrud Gilberto em estado de graça, além de Milton Banana na bateria. Quer mais?! Tem o maestro Tom Jobim no piano! Ufa! Quem pode querer mais?
Com isso, só me resta dizer: quem não gostar do disco, “bom sujeito não é. É ruim da cabeça ou doente do pé!”. Saravá, meu povo!

 

StanGetz_JoaoGilberto

Disco: CD “Temptation”, de Holly Cole.

Eu passei as merecidas férias do início desse ano no Rio de Janeiro. Aí, sabe como é… visita um… visita outro… e os jantares foram acontecendo. Tudo isto, devo reconhecer, para a desgraça do meu “destrambelhado” colesterol. Paciência… Fazer o quê?!

Mas, o que eu queria dizer é que cada amigo audiófilo tem lá seu estilo na sala de som. A sala do amigo Alexandre Kahtalian, jazzista de carteirinha, deixou-me encantado com a qualidade. Impecável.

Dias depois, ele me telefonou anunciando mudanças. “Carlos, afastei um metro as caixas da parede, troquei os cabos e o som melhorou muito!”.

Animado com a notícia, passei no Shopping da Gávea, comprei este disco da Holly Cole e fui inaugurar o novo som da casa do Alexandre. Ficamos maravilhados com o disco e com o som produzido. Holly canta as canções de Tom Waits de forma impecável. “I don’t wanna grow up” é coisa de outro mundo. Maravilha!

Voltei para a minha querida Floripa e ao chegar em casa, recebi uma nova ligação do Alexandre: “Carlos, agora, sim, encontrei o som perfeito!” E eu, bem curioso, perguntei:“o que você fez?”. De bate-pronto, ele respondeu: “Olha, você não vai acreditar… apenas voltei tudo como antes. Agora, sim, meu amigo, o som ficou deslumbrante!”

https://www.youtube.com/watch?v=pUt2Xg2hu3Q

https://www.youtube.com/watch?v=PGJV6bI77QU

Holly_Cole

 

Cinema: filme “Antes da chuva”, de Milcho Manchevski.

Voltando a conversar sobre filmes marcantes e especiais, o filme de hoje é o maravilhoso “Antes da chuva”. Foi dirigido por Milcho Manchevski e muito ajudado pelos talentosos Rade Serbedzija, Labina Mitevska, Katrin Cartlidge e Grégoire Colin.
Belíssimo. Comovente. Humano. Corajoso. Sei lá mais o quê!

Na construção do enredo, Milcho lançou mão de três histórias de amor que se cruzam, em meio à guerra fratricida na Macedônia. “Palavras” é o título do primeiro episódio, que descreve a dor de Zamira e do jovem monge Kiril (personagem de Grégoire Colin). É quase certo que Zamira (personagem de Labina Mitevska) nunca tenha ouvido falar do nosso querido mestre Cartola. Por isso mesmo, não teve a felicidade de conhecer os maravilhosos versos do grande sambista e poeta. Foi uma pena! Porquanto ela perdeu a oportunidade de se emocionar com a belíssima canção: “Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora da partida / Sem saber mesmo o rumo que irás tomar / Preste atenção, querida / Embora saiba que estás resolvida. / Em cada esquina cai um pouco a tua vida / E em pouco tempo não serás mais o que és. / Ouça-me bem, amor / Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos / Vai reduzir as ilusões a pó…”

Em “Rostos”, o segundo episódio, surge o “fotógrafo de guerra”, Aleksandar (personagem de Rade Serbedzija). Envolvido numa difícil relação amorosa em Londres, ele não consegue permanecer distante e sofre com os duros acontecimentos desenrolados em seu país. “Imagens” é o terceiro episódio, que tem o pano de fundo no retorno de Aleksandar à sua terra natal, a Macedônia. Ironicamente, neste último episódio, os caminhos de Aleksandar se cruzam com os de Zamira e Kiril, desenhando de forma impiedosa a intolerância presente nos conflitos entre macedônios ortodoxos e muçulmanos albaneses. O retrato da dignidade daquela gente é, enfim, aviltado e revelado…

Sim, meus amigos, “Antes da chuva” é um filme impiedoso. Desafiador. E ao mesmo tempo, delicado. Um filme produzido com a nítida intenção de “impressionar”. E ele consegue!

Ainda bem que podemos fazer pequenas “expiações” enquanto o mundo não se ajuíza. Sorte a nossa que tivemos o querido Cartola para nos consolar e ainda temos, afortunadamente, o poeta Nei Duclós para nos dizer sem medo: “Estamos na mesma fogueira / na mesma lenha / usando a mesma coleira / pulando com a mesma raiva / sofrendo a mesma seca / plantando a mesma semente / esperando com a mesma demência / que ela cresça…”

Antes da chuva

Memórias: o “Tempero de Dona Maria”.

O  TEMPERO  DE  DONA  MARIA

 Vocês conhecem aqueles “aromas especiais”, que de algum modo nos remetem às lembranças de criança? Pois é. Hoje eu acordei um pouco mais cedo e fui preparar o meu café da manhã, procurando não fazer barulhos, já que minha mulher e o meu filho ainda dormiam. Sentei-me no sofá da sala, acompanhado pela caneca de café e um punhado de bolachas Maria. Curiosamente, parei para observar o desenho em relevo da deliciosa bolacha. Foi quando me deu vontade de saber a origem dela com a ajuda do Professor Google: “A bolacha Maria foi criada em 1874 por um padeiro inglês para comemorar o casamento da grã-duquesa Maria Alexandrovna da Rússia com o Duque de Edinburgo. Foi muito popular na Guerra Civil Espanhola, durante a qual foi considerada símbolo da prosperidade da economia ao ser produzida com os excedentes de trigo…”

Fechei os olhos por um instante, sentindo o aroma delicioso do café. Aí, juro a vocês, foi a vez de eu receber uma inesperada visita: as lembranças de Dona Maria de Piabetá, a cozinheira da minha infância distante. Meu Deus do Céu! Que saudade me bateu no peito ao lembrar daquele sorriso largo, estampado em um rosto mais largo ainda. Dona Maria, meus amigos, mais parecia uma baiana, daquelas que vendem acarajé em frente à igreja do Nosso Senhor do Bonfim. Com um invejável senso de humor, Dona Maria chegava a nossa casa bem antes das sete da manhã, embora morasse em outro município: Piabetá, próximo a Magé, no Rio de Janeiro!

Bem… já se passaram mais cinquenta anos desde que aprendi a saborear as melhores “especiarias” de Dona Maria de Piabetá. Seu rosto, confesso, eu já tenho dificuldades para resgatar da memória. Mas os aromas que ela esparramou ao meu redor, estes, ah!, jamais esqueci…

Abençoada seja, Dona Maria.

O tempero de Dona Maria

Jazz: CD “Ella abraça Jobim”, com Ella Fitzgerald.

Se há uma verdade aceita por quase todos, sem dúvida, é aquela que considera o inesquecível Tom Jobim como o músico brasileiro mais reverenciado no mundo. Por sinal, com muita justiça. Afinal, a obra que ele nos deixou é belíssima e imortal! Até mesmo os consagrados músicos do mundo inteiro já tiraram, literalmente, o chapéu para ele. Eu já perdi a conta das homenagens feitas ao nosso Tom Jobim em shows, entrevistas e gravações… Ella Fitzgerald não poderia ficar para trás. Para tanto, a grande dama reuniu uma turma de primeira linha e botou o bloco na rua. Neste imperdível disco, “Ella abraça Jobim”, a cantora apresenta-se acompanhada por feras, como Clark Terry, Zoots Sims, Oscar Castro Neves, Joe Pass, Toots Thielemans e Paulinho da Costa. O resultado não podia ser outro: saíram maravilhosas canções desse encontro. Revelando todo o suingue da grande dama no melhor momento da carreira. Impecável. “Wave” deve ter sido o ponto de partida do projeto, uma vez que Zoots Sims, Joe Pass e Paulinho da Costa soltam os cachorros! Há, também, Toots abençoando o nosso “Corcovado”. Só vendo. Ou melhor, só ouvindo! Ah, sim… ia me esquecendo: Bonita ficou “deslumbrante” na voz de Ella!

https://www.youtube.com/watch?v=a9I9yxXnmpc

Ella_Jobim

Memórias: Aurélia Nattir, a “alma gêmea” de minha mãe, Jarina Menezes.

Não faz muito tempo que eu, minha esposa e meu filho fomos almoçar em Coqueiros, um bairro lindíssimo da Florianópolis continental. Ao sairmos do restaurante, eu tive a ideia de ligar para Dona Aurélia Nattir, uma baita artista plástica, que foi a melhor amiga de minha falecida mãe. Além da forte emoção que tivemos ao nos abraçarmos demorada e carinhosamente, ficamos lembrando a figura sorridente e doce de Dona Jarina Menezes. É que Dona Aurélia possuía na sala de visitas algumas peças que foram presenteadas por minha mãe. E ela narrava tudo aquilo com profundo orgulho e gratidão.

Da ampla varanda de sua casa, nós admirávamos a belíssima paisagem da enseada de Coqueiros, que é um verdadeiro cartão postal. Mostrei ao Gabriel, meu filho, os maravilhosos quadros de Dona Aurélia, expostos na sua grande sala. E comentei com ela sobre o quadro que me presenteara, há alguns anos, que ocupa o lugar de destaque na minha sala de estar.

Ao final, mais uma vez nos abraçamos com carinho e nos despedimos. Quando voltávamos para casa, sem que ninguém comentasse, tivemos aquela sensação de que havia ali no carro alguém mais feliz do que eu, Zelândia e Gabriel. Sim, meus amigos…  Por certo, era minha mãe!

Quadro: Aurélia Nattir

Aurélia Nattir