AS  RECORRENTES  ARMADILHAS

Eu tenho pensado bastante nesse tema nos últimos tempos. Sim, meus amigos! É que, vira e mexe, a gente se depara com situações conflitantes ou delicadas. E se pensarmos bem, podemos perceber que nenhum de nós está livre de tais situações ou comportamentos. É da vida… paciência!

De fato, chega a impressionar o número de vezes que plantamos ‘minas’ pela estrada que trilhamos. Sem sequer nos darmos conta que haveremos de percorrer aquele percurso pouco tempo depois. Ou seja: nós somos potencialmente vítimas de nossas próprias ‘armadilhas’…

No entanto, ainda que esse processo seja impiedoso, uma vez que é ‘autoimune’, devemos reconhecer a ‘vocação’ que o homem tem em promover boicotes à sua ascensão e ao seu progresso afetivo ou material. Para muitos de nós, essa tendência parece não ter fim. Porquanto praticamos gestos e ações autodestrutivas reiteradas vezes. E nem mesmo a lembrança do último ‘boicote’ é capaz de nos propiciar salvaguardas.

Basta olharmos para os lados e constataremos um significativo grupo de amigos ou colegas patinando nas ‘peculiaridades’. Com poucas variações nos processos. De tal forma que o observador atento pode até mesmo “antever” os passos desastrosos que serão efetuados por nós ou pelos outros, sem a devida percepção do momento vivido. Ah, minha gente… Isso dói. Dói muito! E o pior de tudo é que iremos repetir exaustivamente as equivocadas posturas. Ironicamente. Como se fosse ‘irrefreável’ o desejo de chafurdar na lama!

O que eu posso dizer é que comigo não foi diferente. Como tantas outras criaturas, eu também plantei em mim inúmeras ‘minas’, sem me dar conta de que elas explodiriam a qualquer momento. Por isso, sangrei pra valer. E sofri bastante… Até que um dia eu aceitei que precisava de ajuda. Céus… Talvez fosse o primeiro sinal de minha possível recuperação. Afinal, em algum lugar dentro de mim havia a crença de que eu podia me ‘restituir’ e que valia a pena o ‘risco’ nessa longa travessia…

Foram necessários sete anos de ajuda terapêutica em busca das minhas extraviadas ‘verdades’. É uma etapa difícil, sem dúvida, pois além de tudo nós nos deparamos com os hábitos e vícios adquiridos durante a trajetória. Afinal, até que a gente consiga se desvencilhar das ‘resistências’ ao tratamento, muita água há de passar por debaixo dessa ponte. Ou melhor, dessa vida!

Além disso, o processo terapêutico não promete nos levar para o “outro lado do arco-íris”. O que ele possibilita, isso sim, é que a gente possa enxergar o mundo de modo mais confortável às nossas emoções. Com sorte, aprenderemos a evitar aquelas conhecidas ‘minas’ que surgem ao nosso redor. E, com isso, aumentaremos a chance de não repetir os mesmos enganos de outrora.

O resto, creio, ficará por conta do destino de cada um. Posso, ao menos, desejar muita sorte, determinação e um universo de possibilidades novas aos amigos que permitirem essa chance.

Quem sabe assim poderemos viver dias melhores?!

HISTÓRIAS NÃO CONTADAS

Nem bem ele terminou a palestra que veio dar no SESC-Cacupé, aqui de Florianópolis, já se via a longa fila de admiradores para os cumprimentos e autógrafos. E Ariano, sempre paciente, atendeu a todos com a habitual gentileza nordestina. Além do tímido sorriso, ele fazia questão de agradecer a presença na palestra. Isso rendeu mais de uma hora e a fome já batia fundo nele, tenho certeza.
Saímos dali e fomos para a minha casa no Rio Vermelho, que é um bairro quase rural, distante mais de 30 km do centro da cidade. Ao entrarmos na garagem, minha esposa veio abrir a porta do carro para Ariano e o abraçou com extrema alegria. Anunciou que o almoço sairia em cinco minutos e que bastaria que lavassem as mãos e se sentassem na sala de jantar.
Como eu previra, Ariano confirmou que adorava camarão. Assim, iria experimentar o bobó feito pela minha mulher. Céus! Eu nunca vi o homem tão feliz como naquele dia, meus amigos. E após o almoço, ele se refestelou na rede da sala e, aproveitando o silêncio, tirou uma ‘pestana’ de meia hora.
Ao acordar, passeou pelo jardim, observando as árvores e o canto dos pássaros. Disse-me que não trocaria Recife por Florianópolis por dois motivos: primeiro pelo nome da cidade, que era indevido, pois homenageia um ‘cabra tirano’. E depois, por causa do frio que faz no sul, do qual foge feito ‘cão ressabiado’.
Fomos para a varanda da frente e nos acomodamos nas espreguiçadeiras. Eu, ele e minha mulher. Foi quando eu lembrei do ‘causo’ que contou na palestra. Segundo ele, toda cidade pequena que visita tem o ‘maluco-beleza’ bastante conhecido do povo. Numa dessas cidades, Ariano percebeu que havia um homem com o ouvido encostado na parede do muro. Vez por outra a criatura tirava e voltava a pôr o ouvido no muro. Foi quando se aproximou, sem nada dizer, e encostou também o ouvido no muro, na esperança de alguma ‘revelação’. Passados alguns instantes, virou-se para o cidadão e comentou: “não estou ouvindo nada!” Prontamente, o cabra respondeu: “Pois é. Está assim desde ontem!”
Ele sorriu com a lembrança e declarou que sente uma enorme identificação com os doidos. Isso porque, tanto os doidos quanto os escritores veem o mundo por uma ótica original, particular. Ao ouvir o seu argumento, acabei concordando com ele. De fato, ambos experimentam sensações diferentes, mas com semelhante olhar alternativo.
Passamos algumas horas proseando a valer e eu nunca mais esquecerei do jeito dele, quando calmamente anunciou: “Carlos, meu amigo, não quero que se assuste… mas, Gabriel subiu no telhado!”
Já acostumados a isso, eu e minha mulher demos uma longa gargalhada. É que já imaginávamos que o inquieto Gabriel iria ‘aprontar alguma’ para cima de Ariano Suassuna!

– “Não sei. Só sei que foi assim!”

 

“O  BELLA  CIAO, BELLA CIAO…”

 

Devo reconhecer que nessas questões, normalmente, eram Luiz Henrique e Ênio que davam o veredicto. E naquele caso, convenhamos, a sentença proferida por Ênio foi dura e taxativa: “Chau, francamente, isso é um comportamento pequeno-burguês!”

Caramba! Eu nem sabia onde esconder a vergonha. Juro. Mas é o tal negócio: que mal havia em querer comprar aquela calça “Lee” e a camisa “LaCoste”? Só porque eram estrangeiras, minha gente, sempre vão representar ‘símbolos imperialistas’? Além do mais, o importante não seria o nosso pensamento socialista, alinhado às causas comuns?! E mais ainda: porque é que em toda revolução socialista o povo tem que ser miserável, quase indigente, heim?!

O fato é que elas eram lindas, isso sim, e bem superiores à nossa brasileira calça “FarWest” e as camisetas “Hering” que vendiam na “Ki-Lojão” da Rua Uruguaiana. Afinal, era sabido por todos que a loja era a ‘número 1’ em roupas bregas e sem graça… Fazer o quê?!

Pois muito bem. O fato era que os meus argumentos não eram convincentes a ponto de demover os preparados discursos de Luiz Henrique ou de Ênio. Por isso, então, eu acabava acatando os argumentos e ‘orientações’ deles. Sempre. Porém, devo confessar: no fundo, tudo aquilo me deixava à flor da pele. Talvez, até revoltado… Sei lá!

No entanto, vejam vocês a ironia do destino. Não é que a história se encarregou de nos mostrar vários exemplos de supostos ‘libertadores da pátria’? E eles vieram com discursos arrumadinhos: ora declarando-se ‘caçadores de marajás’, ora assumindo o falso ‘nacionalismo’. Vimos no que deu… e no que ainda vai dar!

Agora, que já se passaram quase trinta anos e mundo girou um bocado, nós devemos reconhecer algumas coisas. Em primeiro lugar, é que ‘ideologia’ não tem nada a ver com bom-gosto ou requinte. Tanto é verdade que o amigo Luiz Henrique bebe os melhores vinhos importados e veste ternos de fino trato, sem perder a coerência. Ah! quanto desperdício nós tivemos em nome de supostas causas e sistemas falidos e contraditórios…

Além disso, há outras questões a serem respondidas. Em que lugar da memória ficaram guardados os sonhos de sociedades ‘mais justas e equânimes’? E o que foi feito das nossas ‘bandeiras’ e dos nossos líderes socialistas? Afora a queda daquele ‘emblemático’ muro, o que mais ruiu além dos nossos sonhos, esperanças e utopias, meus amigos?!

 

ALTAIR

 

Verdade é que nem sempre a vida é justa. Muitas vezes, devemos reconhecer, o destino ‘sacaneia’ algumas pessoas e põe no chão criaturas que, no fundo, são boas. Pois saibam, então: Altair foi uma dessas ‘vítimas’. Então, para afastar qualquer dúvida, eu peço que me deixem contar como tudo aconteceu.

Nós estávamos no início dos anos 60. Segundo os entendimentos, era o tempo em que havia muita inocência pairando no ar. Mas era também o período em que começaram a aflorar os ‘maus espíritos’. Ao menos, era o que dizia D. Maria de Piabetá, a nossa fiel cozinheira. Muito embora fosse carioca, ela mais parecia uma daquelas baianas que vendem acarajé no Pelourinho, em Salvador. Ah, meus amigos, D. Maria parecia uma verdadeira ‘Mãe de Santo’, isto sim, pois adivinhava tudo. Ela trabalhou em nossa casa, com profunda dedicação, por mais de vinte anos, preparando toda a sorte de quitutes e guloseimas. Que criatura maravilhosa foi aquela mulher! O que mais impressionava a todos que a conheceram era o constante sorriso bondoso, estampado nas largas bochechas para quem quisesse apreciar. E posso assegurar a vocês que ela representou o que de melhor eu tive na infância distante. Aliás, Dona Maria chegava a nossa casa bem antes das sete da manhã, mesmo morando em outro município: Piabetá, próximo a Magé, no Rio de Janeiro. Muito embora já tenham se passado mais de cinquenta anos desde que aprendi a saborear as ‘especiarias’ de Dona Maria, o seu rosto, no entanto, eu tenho dificuldades para resgatar na memória. Já os aromas que ela esparramou ao meu redor, ah, eu jamais esqueci…

Abençoada seja, minha querida ‘Dona Maria’!

Mas o que eu estava querendo contar para vocês era sobre o Altair. Na época, eu devia ter uns sete ou oito anos de idade e a garagem do nosso prédio era repleta de esconderijos perfeitos para crianças com imaginação. E a turma de meninos do ‘Edifício Esperanto’ aprontava um bocado. Com isso, seu Severino, o porteiro do prédio, sofria em nossas mãos; ora era um vidro quebrado e barulhos de crianças correndo em disparada, ora era um morador aborrecido porque ‘alguém’ havia apertado todos os botões, fazendo o elevador parar em andar por andar.

Lembro que nessa época nós estávamos querendo abrir um ‘clubinho’ no saguão de entrada, porém, não conseguíamos adesão dos proprietários dos apartamentos do prédio. Embora fizéssemos forte campanha junto aos moradores, ainda assim, os resultados eram pífios.

Foi quando o Ênio, um brilhante colega da turma, chegou e, ao perceber o nosso desespero, argumentou: não são os pais que vão definir os rumos da votação, pessoal. São os filhos, nossos colegas, isso sim!

Eureka!! Ênio sempre tinha uma solução inusitada e, invariavelmente, brilhante. Algumas vezes, é bom que se diga, isso causava irritação até na gente, pois morríamos de inveja de sua alta criatividade.

Sabendo disso, ele se sentou na cisterna da garagem e começou a fazer desenhos em várias folhas. Quando terminou, Ênio pediu que afixássemos os cartazes no elevador, no “hall” de entrada, nas lixeiras e em todos os lugares de grande circulação. Eram desenhos de crianças brincando. Crianças com semblantes felizes. Moral da história: no dia marcado para a votação, houve alto comparecimento dos pais e fortíssima adesão à nossa reivindicação… Ganhamos de lavada, com 78% dos votos favoráveis. Agora, nós tínhamos um espaço só nosso: com mesa de totó, pingue-pongue e futebol de botão. Com isso, Ênio se tornou o nosso verdadeiro herói!

Sim, o certo é que eu estava querendo lembrar algo sobre o Altair. Pois bem. Para começo de conversa, Altair era o ‘faz-tudo’ do prédio. De encanador a pintor ou de marceneiro a eletricista, o que sei é que ele ‘jogava nas onze’. Era um negro alto e forte, dono do sorriso mais branco que eu já vi na vida. Do mesmo modo em que era corpulento, também era simpático e educado com todos. Uma verdadeira ‘dama’, como diziam os nossos vizinhos.

Eu tinha uma especial simpatia pelo Altair, porquanto ele sempre atendia os meus pedidos: fosse para preparar o ‘cerol’ para a linha da pipa ou até mesmo para construir um carrinho de rolimã e descer em disparada a íngreme ladeira da Zamenhof. Era com ele que eu contava!

Contudo, como eu disse no início da história, o diabo é que a vida nem sempre é justa. Pois não é que o coitado do Altair se casou com uma moça, da Baixada Fluminense, e ela infernizou a vida do pobre homem?! Pois é. Nunca se soube os detalhes. Sabíamos apenas que ele andava cabisbaixo, preferindo nem voltar para casa após os serviços no prédio.

Daí até se entregar à bebida, foi só questão de tempo, aliás, pouco tempo. Altair já não aparecia para efetuar os serviços contratados. E não tratava os moradores com a costumeira elegância. Sim! Foi muito triste acompanhar aquilo tudo, meus amigos. Afinal, observávamos a ‘derrocada’ de um homem de bem. Abruptamente. E quem procurasse pelo Altair, bastava ir à esquina de nosso edifício, bem debaixo da marquise, e veria um verdadeiro ‘trapo humano’, sujo e malcheiroso…

Até que um dia apareceu no tortuoso caminho do Altair um daqueles ‘maus espíritos’ que a D. Maria de Piabetá previra. Ele atendia pelo apelido de “Pará”. Céus! Ele era o ‘cão chupando manga’. Um sujeito perverso, capaz de terríveis maldades. Como diziam os os frequentadores da esquina da Zamenhof, ele era um tremendo ‘fio desencapado’!

Assim, ao perceber a decadência de Altair, Pará começou a insidiosa perseguição, fazendo toda a sorte de provocações. Que iam da obrigação de fazê-lo beber um copo cheio de cachaça, aos chutes para acordar o pobre coitado debaixo da marquise, impondo um tremendo martírio. Algo muito triste…

Lembro até que eu, Luiz Henrique, Ênio e Edinho nos mobilizamos para buscar ajuda nos apartamentos do prédio e pouco interesse houve dos moradores em socorrer o pobre Altair. Uma baita injustiça!

Três meses se passaram sem notícias do nosso ‘faz-tudo’. O que aconteceu de fato, ninguém ficou sabendo. Soubemos apenas, tempos depois, que o enterro ocorrera no Cemitério do Caju, numa cova destinada aos ‘indigentes’. E isso, meus amigos, era tudo que ele nunca fora: indigente.

Merda de vida!

Nota do autor: Ênio faleceu em 1974. Luiz Henrique tornou-se um respeitável e competente auditor da Receita Federal. Edinho transformou-se em um bem-sucedido empresário no ramo da limpeza. E ‘Pará’, após três mandatos consecutivos na Assembleia Legislativa, acabou sendo acusado de fazer parte de grupos de milícias. Afastado, foi submetido a julgamento, sendo condenado a vinte anos de prisão. Atualmente, cumpre sentença em regime semiaberto por conta de outros delitos.

 

* Texto dedicado a Luiz Henrique, Ênio (in memoriam) e Edinho, os ‘mosqueteiros’ da querida Zamenhof: porque também somos o que perdemos!

LuizHenrique

(Na foto: eu e Luiz Henrique, após sessenta anos de amizade )

O BARCO NAUFRAGADO

 

Esta semana eu revi o filme “Despedida em Las Vegas”, de Mike Figgis. Aliás, rever filmes é um hábito que eu sempre cultivei, quem sabe com a esperança de que consiga enxergar àquilo que as minhas emoções ainda não haviam percebido?!

O que sei dizer é que “Despedida em Las Vegas” é um desses filmes impiedosos, que revelam as nossas ‘doenças’, sem cerimônia, à medida que nos identificamos com cada um dos personagens, todos eles. Ainda assim (ou, quem sabe, por isso mesmo), nós preferimos ‘varrer os problemas para debaixo do tapete’. Cinicamente. Como se tal comportamento resolvesse alguma coisa…

Pois é, meus amigos. Nessas horas, eu lembro que os dramas são sempre individuais e que a dor – incômoda parceira – é solitária e particular. Somente a criatura envolvida no processo pode sentir o real espectro da angústia. Lá, isso é verdade!

Quando leio Cecília Meireles, por exemplo, vejo alguém derramar em poesia a imensa dor de se ver envelhecendo: “Eu não tinha este rosto de hoje / assim calmo, assim triste, assim magro / nem estes olhos vazios / nem o lábio amargo. / Eu não tinha este coração que nem se mostra… / Eu não dei por esta mudança / tão simples, tão certa, tão fácil / Em que espelho ficou perdida a minha face?”

De fato, não é preciso muita acuidade para perceber que somos pessoas diferentes. Se pensarmos bem, é essa pluralidade que nos torna tão interessantes. Além disso, mais do que diferentes, somos contraditórios, assim como contraditória é a vida. E a vida de “Ben”, personagem de Nicolas Cage, com certeza não foi bem tratada por ele ou pelo destino. Uma pena! Contudo, isso não faz dele um perdedor. Quando muito, mais uma vítima… Sim! Muitas vezes nós somos vítimas de processos que acontecem à nossa revelia: seja por circunstância, seja por inocência ou até mesmo ignorância. Também é verdade que, de uma forma ou de outra, nós ‘ajudamos’ esses boicotes. Ademais, já se disse por aí que nessa vida ninguém é absolutamente santo ou carrasco. No fim das contas, somos todos portadores de impulsos generosos e destrutivos. E, cá entre nós, essa é apenas mais uma contradição humana. Tão somente!

Na longa história do homem, muitas injustiças já aconteceram. Ainda que elas sejam encaradas com ‘repúdio’, não cessarão por aí. Seguramente, muitas outras virão. Paciência! O que é preciso, então, é aprender como drená-las. E assim, ao conquistar tal ‘sabedoria’, poderemos dar prosseguimento às belezas da vida. Quem sabe se não é essa a nossa ‘seleção natural’? Isto porque somente alguns de nós terão êxito e saberão colher o ‘néctar’ da vida. Os outros, ah!, os outros irão ‘tropeçar’ e pagarão um alto preço, onde a moeda contábil raramente é o dinheiro! O nosso querido Manuel Bandeira pode lá ter sofrido muitas dores, que alimentam os poetas, mas, apesar disso, ele exclamava com orgulho: “Uns tomam éter, outros cocaína. / Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. / Tenho todos os motivos menos um de ser triste”.

O filme Despedida em Las Vegas não pode ser visto apenas como a ‘crônica de uma morte anunciada’. De um modo irônico e cruel, ele acaba revelando uma das maiores contradições humanas. É que ao se relacionar com a morte de ‘Bem’, somente assim ‘Sera’, personagem de Elizabeth Shue, consegue retomar a vida. Porquanto ela consegue recuperar a autoestima que fora extraviada nos caminhos do mundo.

O que sei é que se por um lado o filme nos deprime com um enredo massacrante, por outro, ele nos oferta profundas reflexões, trazidas à baila por conta dessa linda história de amor. E desse modo, ele nos possibilita a aproximação a algumas questões que há tempo nos afligem? São perguntas que aguardam respostas e que, de alguma maneira, um dia precisaremos atender. Por sinal, foi Nietzsche que, diante do absurdo da vida e do mundo, escreveu: “o absurdo de uma coisa não é uma razão contra a sua existência. É mais uma condição!”

E agora, minha gente?! Talvez a resposta para tudo isso esteja, simplesmente, no verso cantado por Caetano Veloso: “…cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é!”

 

Las Vegas

A CULPA É DO 43

 

Eu estava arrumando a minha estante, aproveitando o tal do ‘confinamento social’ e não é que eu dei de cara com esse CD “Steamin’ with The Miles Davis Quintet”. Caramba… eu nem lembrava mais desse álbum. Isto porque ele fazia parte de uma remessa de CDs usados que adquiri no ano passado. De fato, na época, como eu estava envolvido com a finalização do segundo livro de crônicas, não tive tempo para apreciar os discos.
Contudo, o que importa é que ao limpar a estante eu vislumbrei o CD de Miles Davis e seu fabuloso quinteto. Na verdade, devo confessar, esse foi um daqueles discos que eu nem quis ouvir na casa do Flávio, pois achei que era ‘compra certeira’. Por isso, preferi me debruçar na análise dos outros álbuns. E ao guardá-lo na estante, eu sabia que mais dia, menos dia ouviria o CD e me deliciaria. Bem… esse dia chegou: hoje!
Por conta disso, eu me sentei na poltrona do escritório e liguei o computador. Como agora ele dispõe de uma abençoada ‘SSD’ para dar partida, tudo ocorre muito rápido e só deu tempo de pegar a garrafa de “43”, o meu licor preferido. Ah! Benditos espanhóis!
O que sei dizer, minha gente, é que eu resolvi escutar o disco pelo final, na sexta faixa, que é um clássico do jazz: “When I Fall in Love”. Céus!, foi um verdadeiro delírio. Miles Davis, em estado de graça, derrama todo o lirismo que a melodia requisita. E além do trompete de Miles, temos também o piano de Red Garland acolhendo discretamente a melodia, como um bom mestre de cerimônia. A quinta faixa, “Well, You Needn’t”, é bem ‘nervosa’ e trabalha o limite de cada músico. Joe Jones, na bateria, por exemplo, teve que se virar um bocado para ditar o ritmo. Obrigando Coltrane a soltar o fraseado, talvez, de modo inquieto e sobressaltado demais…
Já a quarta faixa, “Diane”, foi o intervalo que eu necessitava para a segunda dose do licor. Ufa… Já mais relaxado na poltrona, ela me lembrou do Miles Davis de Paris, na segunda metade dos anos 50. “Não toque o que está lá, e sim o que não está!”, conclamava Miles ao seu quinteto. Creio que deu certo, uma vez que Coltrane, Paul Chambers, Joe Jones e Red Garland entenderam bem direitinho o recado dado pelo chefe!
Quando os primeiros acordes da terceira faixa, “Something I Dreamed Last Night”, foram soltos pelo suave trompete de Miles Davis, eles ecoaram livremente pelo escritório. Porém, reconheço, eu já estava na terceira dose do “43” e o mundo ao meu redor se mostrava leve e solto. Coisa linda!
A partir daí eu já não lembrava mais do vírus e nem do confinamento. Só pensava nas águas claras de Maragogi, em Alagoas. Debaixo daquela barraca, deitado na espreguiçadeira, a única coisa que eu percebia era o inebriante cheiro de camarão vindo da cozinha do bar. O que era aquilo, meus amigos?!
Foi quando veio a segunda faixa, “Salt Peanuts”. Chegou ‘atropelando geral’. Eu não tive nem tempo de pegar a bandeja de queijos, cortados em cubos. Afinal, Joe Jones estava ‘quebrando o barraco’, com um solo de mais de dois minutos de bateria! E eu, já sem fôlego, preferi encerrar a audição e deixar a primeira faixa para outro dia…
Afinal, eu já estava dormindo na rede cearense, talvez, sonhando com as águas verdes e cristalinas de Maragogi!

PÉ NA ESTRADA – crônica.

Que ele era um homem diferenciado, ah! disso ninguém duvidava. Mas o fato é que nem mesmo os filhos conheciam suas andanças, suas paixões e seus amores extraviados. Porquanto ele era uma criatura bastante reservada. Tímida, até. E o que eu posso dizer, meus amigos, é que reencontrá-lo na pacata e hospitaleira Petrópolis foi algo inusitado e emocionante. Aliás, somente após aquela tarde, ouvindo suas histórias, é que eu pude perceber o quanto a vida muitas vezes pode ser incompreensível ou até mesmo injusta… Lá, isso é verdade!

Afinal, ali ao meu lado estava uma das mais incríveis criaturas que eu conheci na vida. Por certo, um homem brilhante. Ético. Culto e generoso. No entanto, devo reconhecer, nem mesmo tais atributos são suficientes para tornar um homem feliz e realizado. E Luiz sabia disso. Tanto é verdade que ele não se surpreendeu quando Glória, sua companheira, mais uma vez reclamou sobre a desarrumação da sala de estar… Sem nada dizer, Luiz foi para o quarto, organizou as duas malas e, ao passar pela cozinha, anunciou: “eu estou indo embora. Vou para Jackson!”

– E por diabos, onde fica isso?, perguntou Glória.

– Tennessee!

– Tá bom… pode ir. Mas, ao menos, penteia o cabelo!

Pois é, meus amigos… já se passaram vinte anos desse episódio. E confesso a vocês que eu gostaria de ter notícias do amigo Luiz. Saber se a vida foi generosa com ele… essas coisas que o destino apronta. Mas quem consegue entender?! Talvez, somente bebendo um “Jack Daniel’s” e ouvindo um emocionado “country-blues”, Jackson, embalado pelas vozes de Johnny Cash e June Carter:

“Nós nos casamos numa febre, mais quente que um broto de pimenta,
Nós temos conversado sobre Jackson desde que o fogo se foi.
Estou indo para Jackson, eu vou arrasar,
Sim! Eu vou para Jackson,
Se cuida, cidade de Jackson.

Bem, vá para Jackson; vá em frente e acabe com a sua saúde.
Vá tentar a sua sorte, seu grande tagarela, faça um grande bobo de você mesmo,
Sim! Vá para Jackson, vá pentear seu cabelo!
Querida eu vou curtir em Jackson
Veja se eu me importo!

Quando eu chegar naquela cidade, as pessoas vão me reverenciar.
Todas as mulheres vão querer que eu as ensine o que elas não sabem,
Eu vou para Jackson, não tente me impedir.
Porque estou indo para Jackson.
‘Tchau’, foi tudo o que ela escreveu.

Mas elas vão rir de você em Jackson e eu vou estar curtindo um barril de cerveja.
Elas vão te levar pela cidade como um cão escaldado,
Com o seu rabo enfiado entre as pernas,
Sim, vá para Jackson, seu grande tagarela.
E eu vou estar esperando em Jackson, atrás do meu leque japonês.

Nós nos casamos numa febre, mais quente que um broto de pimenta,
Nós temos conversado sobre Jackson desde que o fogo se foi.
Estou indo para Jackson, e isto é um fato.
Sim, nós vamos para Jackson, para nunca mais voltar…”

JDaniels

OS SONS DO CORAÇÃO – crônica.

Existe a crença de que somente crianças bem pequenas são capazes de se comunicar com os espíritos. E ao fazerem uso dessa capacidade, elas conseguem estabelecer a mais pura ‘troca de impressões’. Talvez, por isso, elas sejam tão felizes, risonhas e espontâneas. Quem sabe não seja assim?! Quem sabe nós extraviamos esse dom ao longo do percurso da vida?

Pois é, meus amigos. O que eu posso dizer é que eu tenho um filho, hoje com dezessete anos, e pude acompanhar algumas dessas manifestações quando ele era criança. Muitas vezes, é verdade, eu observava o comportamento dele nas mais variadas situações e me surpreendia inúmeras vezes.

Hoje eu tenho um lindo netinho, João Pedro, que é filho do irmão mais velho do meu querido Gabriel, e percebo que ele repete semelhantes manifestações. Céus! Lembro até da primeira vez que ele entrou no meu escritório, ainda engatinhando, e ao se deparar com os quadros pintados pela minha falecida mãe, Jarina Menezes, parecia estabelecer uma longa ‘conversação’ com eles. Além disso, João Pedro gostava imensamente de tocar naquelas pinturas, balbuciando incompreensíveis sons. O que ele desejava comunicar, eu não sei dizer. Sei apenas que eram fortes os laços estabelecidos…

Aí, alguém perguntará: o que isso tem a ver, Carlos? Eu, então, responderei: tudo, minha gente! Deixem-me justificar. Eu percebi isso quando eu fui a Curitiba assistir ao “1º Festival de Jazz Manouche”, a convite do meu amigo Mauro Albert. Foram três maravilhosos dias de profundo deleite. Afinal, eu ouvi melodias que se inspiravam nos melhores sons do jazz cigano. Era como se eu retornasse ao convívio dos ‘sons naturais’, lindos e arrebatadores. Dignos da pureza dos anjos!

Mauro me presenteou com o mais recente álbum, fruto do encontro que teve com o extraordinário músico, Louis Plessier, falecido em 2014. Intitulado “La musique toujours vivant de Louis Plessier”, o CD é composto por treze magníficas faixas, entre as quais eu destaco a primeira, “La peinture” e a de número 11, “Pour un monde meilleur”. Sim! Ao ouvir as canções, eu fiquei com a certeza de que Gabriel e João Pedro tinham razão: nós precisamos ‘de um mundo melhor’, minha gente. Precisamos das pinturas… e das melodias que emanam delas!

(Dedicado ao meu querido amigo Mauro Albert e ao ‘inspirador’ Louis Plessier)

ANJOS, SOPROS E CORNETAS – PARTE 2

“Há noites em que os músicos tocam tão bem, individual e coletivamente, que parecem ter simultaneamente uma experiência fora do corpo. Em 12 de fevereiro de 1964, no Lincoln Center’s Philharmonic Hall, em Nova York, foi uma daquelas abençoadas noites em que o grande quinteto do trompetista Miles Davis tocou com uma beleza incandescente, mesmo para um conjunto tão brilhante quanto o dele…”
Pois é, meus amigos… Essa é a primeira parte do texto que vem escrito na contracapa do disco “My Funny Valentine”, de Miles Davis. Lançado em 1965, o disco original saiu pela Legacy/Columbia e, para nossa sorte, ele atravessou mais de cinco décadas com justo reconhecimento pelos amantes do jazz. Afinal, é uma dessas preciosidades que deveriam passar de geração em geração com o selo de “tesouro” ou “raridade”.
E não é que eu estava arrumando as prateleiras da minha nova estante para CDs e LPs e bati os olhos neste disco. Meu Deus do Céu, que alegria! Que coisa linda foi ouvir o disco mais uma vez…
Para que você, leitor amigo, tenha ideia do que foi aquele encontro memorável, saiba que o quinteto era formado por Miles Davis no trompete, George Coleman no sax tenor, Ron Carter no contrabaixo, o mágico Herbie Hancock no piano e o fenômeno da bateria, Tony Williams, com apenas 18 anos!
O que sei dizer é que a interpretação alcançada pelo quinteto em “My funny Valentine” revela de modo definitivo como músicos de alta qualidade podem nos conduzir “para fora do corpo” quando estão sob o domínio do “encantamento”. Tudo isso, é claro, só acontece quando nos permitimos efetuar esta ‘abduzida’ viagem. No fundo, creio, são os nossos verdadeiros anjos a nos guiar por caminhos celestiais!

 

 

ANJOS, SOPROS E CORNETAS – PARTE 1

 

“Há noites em que os músicos tocam tão bem, individual e coletivamente, que parecem ter simultaneamente uma experiência fora do corpo. Em 12 de fevereiro de 1964, no Lincoln Center’s Philharmonic Hall, em Nova York, foi uma daquelas abençoadas noites em que o grande quinteto do trompetista Miles Davis tocou com uma beleza incandescente, mesmo para um conjunto tão brilhante quanto o dele…”

Pois é, meus amigos… Essa é a primeira parte do texto que vem escrito na contracapa do disco “My Funny Valentine”, de Miles Davis. Lançado em 1965, o disco original saiu pela Legacy/Columbia e, para nossa sorte, ele atravessou mais de cinco décadas com justo reconhecimento pelos amantes do jazz. Afinal, é uma dessas preciosidades que deveriam passar de geração em geração com o selo de “tesouro” ou “raridade”.

E não é que eu estava arrumando as prateleiras da minha nova estante para CDs e LPs e bati os olhos neste disco. Meu Deus do Céu, que alegria! Que coisa linda foi ouvir o disco mais uma vez…

Para que você, leitor amigo, tenha ideia do que foi aquele encontro memorável, saiba que o quinteto era formado por Miles Davis no trompete, George Coleman no sax tenor, Ron Carter no contrabaixo, o mágico Herbie Hancock no piano e o fenômeno da bateria, Tony Williams, com apenas 18 anos!

O que sei dizer é que a interpretação alcançada pelo quinteto em “My funny Valentine” revela de modo definitivo como músicos de alta qualidade podem nos conduzir “para fora do corpo” quando estão sob o domínio do “encantamento”. Tudo isso, é claro, só acontece quando nos permitimos efetuar esta ‘abduzida’ viagem. No fundo, creio, são os nossos verdadeiros anjos a nos guiar por caminhos celestiais!