Jazz: OS PRIMEIROS ‘BLUES’

Pode-se dizer que os primeiros “blues” apresentavam um estilo rude e estridente, quase desagradável de se ouvir, porquanto se assemelhavam muito aos ‘gritos’ do tempo da escravidão. Eram melodias construídas em compassos de doze notas, estabelecendo um padrão, e contavam as aventuras e os infortúnios dos que perambulavam pelo Sul dos Estados Unidos. Os homens foram os primeiros a cantar blues. Com guitarras penduradas nos ombros, primitivos cantores utilizavam a matéria-prima que vinha do reservatório das canções populares afro-americanas. As letras das canções eram tristes e pesarosas e, quase sempre, expressavam forte estoicismo. Mas, até onde se sabe, a origem do “blues” veio da música branca, por conta da influência dos cânticos religiosos…

Quanto às mulheres, elas só começaram a realizar temporadas em teatros e espetáculos de rua no início da década de 1900. No entanto, curiosamente elas alteravam muitas letras e mudavam os temas para os ‘problemas do amor’. Ah, sorte a nossa, isso sim, pois essas almas femininas selaram de vez os destinos do “blues” e nos legaram verdadeiras pérolas. É que ao aliviarem as suas dores com os fortes ‘gritos’, as mulheres renovavam as esperanças. Esperanças de que seus homens voltassem ‘vivos’ após a dura jornada de trabalho. Esperanças de que os carinhos pudessem vir com eles. E, sobretudo, esperanças de que o mundo estendesse a mão caridosa e abençoasse o imenso amor que continham por seus homens…

O que sei dizer, meus amigos, é que de um jeito ou de outro nós temos que agradecer intensamente a essas mulheres. Afinal, cada uma delas nos deixou forte legado: seja por seu amor, seja por seu lindo canto… Coisa linda!

Filme: Bessie Smith – St. Louis Blues (1929)

JAZZ: Grover Washington Junior e o dentista…

“O tratamento será rápido e indolor, Carlos. Fique tranquilo. E de mais a mais, eu tenho aqui um novo disco que você vai adorar!”

Olha, minha gente, só assim eu criei coragem para me deitar naquela cadeira. Confesso a vocês: sou profundamente “covarde” na frente de um dentista. Fazer o quê?! Vai ver que em outras vidas eu “aprontei” alguma. Vai saber…

Verdade é que o Gilmar Moretto, meu dentista, deveria ser psicólogo, pois tem uma tremenda “lábia” e convence qualquer um a aceitar a dor. Só ele!

O resto ficou por conta do sax de ‘Grover Washington Junior’, que lentamente foi me anestesiando. A primeira dose foi em “I’m glad there is you”. Meu Deus, que maravilha de música. Um tremendo sopro: contido e intimista, como convém. E ele segura o clima “noir” até a entrada do belíssimo vocal de Freddy Cole. Por sinal, mais parece uma daquelas canções de baile de debutantes, com a orquestra e o “crooner” seduzindo a galera. Onde a gente dançava de rosto colado e fazia juras de amor à moça. E elas fingiam que acreditavam… Ah, foram bons tempos, aqueles!

Ai, chegou a vez de “Overjoyed”. Céus, até parei de pedir guardanapo, pois já estava “babando” de todo jeito. E eu ali, literalmente de boca aberta. “Arrebatado” por aquela melodia e, já anestesiado, sonhava à vontade! Nos meus sonhos, ah! que delícia, ela me oferecia carícias maravilhosas, dessas que parecem não ter fim…

O que posso dizer, minha gente, é que até hoje não sei qual foi o dente que tratei o canal. O Gilmar jura que foi o último molar. Mas, agora… pouco importa, não acham?!
https://www.youtube.com/watch?v=GBmUgLvVtPY

https://www.youtube.com/watch?v=x5vkXoAa7ic

 

grover_washington

JAZZ: E  AFINAL, O  QUE  É O JAZZ?

Quando uma criatura ouve música, convenhamos, é bem possível de que ela já esteja sob o domínio do ‘encantamento’. Sim! Eu chego a acreditar que neste exato momento ela esteja sendo ‘tocada’. Pudera! Uma coisa é certa: é um momento muito especial, raro e de apurada felicidade. Isto porque, minha gente, a música sempre arrebatou os ‘espíritos desarmados’. E, por sorte, nós temos uma boa quantidade deles pairando por aí. Eles estão em todos os cantos. Estão em todos os ritmos. No entanto, creio, é no jazz que esses espíritos ficam completamente à vontade. Soltinhos! Não que os outros ritmos deixem de oferecer deleite, mas é que o jazz parece encarnar todos eles, isso sim… Talvez por conta do seu sofrido ‘nascimento’. Talvez porque carregue nas notas um sem número de dores acumuladas. E dor, minha gente, é o signo que mais atesta a condição humana. De um jeito ou de outro, o que sei é que no jazz eu encontro o meu ‘porto seguro’. Pois lá estão os meus anjos e os meus demônios. Lá está a minha salvação e a minha perdição. Por isso, toda vez que eu me sinto triste ou desassossegado, penso logo em ir pra casa. Aí, então, é só botar um ‘puro jazz’ saindo dos falantes, relaxar na poltrona e a vida toma um outro rumo. Coisa linda! E desse modo, acolhido e reconfortado, eu recebo todos os espíritos do universo com a mais profunda paz celestial.

Abençoados sejam!

Imagem_Curso

Memórias: A utopia nordestina! (republicado)

Eu tinha apenas cinco anos de idade e era uma criança franzina, como tantas outras nordestinas. Nem sequer imaginava qual futuro estava reservado para mim. Sabia, ao menos, que o mundo rico e civilizado ficava no ‘sul maravilha’ (Henfil que o diga!). E que o meu bom e velho Ceará seria, doravante, “apenas um retrato na parede”. Talvez, por não conhecer o poeta Carlos Drummond, eu não atinasse para a dor: a imensa dor que um ‘retrato’ pode conter. E pode, creiam-me… pode!

O mundo, então, girou mais um bocado. Seguiu a roda do seu caminho e me apontou alguns para escolher. Agora, se as minhas escolhas foram boas ou não… aí, são outros quinhentos. O certo é que venho pelejando nessa vida. Tentando fazer o meu melhor. Sabendo que tanto posso errar aqui, quanto ter medos, acolá. Aceitando que o destino é algo mágico e individual, por mais coletiva que seja a nossa trajetória.

A verdade, meus amigos, é que durante muitos anos eu arrastei, feito bola de prisioneiro, muitas culpas por conta daquela ‘prematura saída’ do Ceará. Ainda que as culpas fossem indevidas, no fundo, eu me sentia um traidor, uma vez que virara às costas ao meu povo, à minha cultura e, dessa forma, estabelecera a minha ‘herança vacante’.

A essa altura, é bem provável que algumas pessoas corram em minha defesa e digam: “isso não é motivo de culpa, Carlos. Quando muito, destino”. É possível até que afirmem que essa viagem não foi exclusividade minha, pois muitos outros ‘retirantes’ seguiram o mesmo rumo. Cada um com o seu motivo. Cada um com seu legado… E uma diferente ‘sentença’ a cumprir!

Pois é, minha gente… Eu sempre soube disso. Mesmo assim, devo confessar: tais pensamentos não me redimiam. Ao contrário, doíam, isso sim. Doíam. Intensamente!
Foram necessários incontáveis anos para drenar a dor e aprender como a transformar. Para tanto, eu precisei de muita ajuda e, por sorte, vieram de todos os lados. Vieram das angustiadas sessões de análise com o Alexandre Kahtalian, solidário e competente terapeuta. Vieram das maravilhosas pessoas que fui encontrando pela vida e que, de alguma forma, depositaram generosas ‘esperanças’ no meu coração. Criaturas que se tornaram verdadeiros ‘irmãos’ e, ao atravessarem o meu destino, deixaram marcas permanentes em minha alma.

Somente a partir daí é que eu comecei a ‘realizar’ o inventário afetivo. Ainda bem. Pois somente assim os episódios começaram a adquirir significado junto ao meu ‘patrimônio afetivo’. Convenhamos: não há nada mais belo nessa vida do que dar sentido a ela! Ingmar Bergman, o extraordinário diretor-cineasta, dizia que “a imaginação tece a sua teia e cria novos desenhos… e novos destinos”.

Por tudo isso, eu imagino que a minha inserção nessa latinidade pode ser confirmada no testemunho do Gonzaguinha, em “Caminhos do Coração”. Vale a pena lembrar:

“Há muito tempo que eu saí de casa

Há muito tempo que eu caí na estrada

Há muito tempo que eu estou na vida

Foi assim que eu quis, assim eu sou feliz.

Principalmente por poder voltar a todos os lugares aonde já cheguei

Pois lá deixei um prato de comida, um abraço amigo, um canto pra dormir e sonhar.

E aprendi que se depende sempre de tanta muita diferente gente

Toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas…

É tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho por mais que pense estar”.

Então, se me permitem, eu gostaria de finalizar este texto fazendo algumas saudações. Primeiramente, ao meu querido Ceará, sem o qual a grande América pouco me diria. Depois, ao poeta Gonzaguinha que nos deixou esse maravilhoso legado e de alguma forma permitiu essa ‘expiação nordestina’. Saúdo, também, aos irmãos nordestinos, na figura do simpático Ariano Suassuna, que encantadamente acrescentam voz à nossa alma. Mas saúdo, principalmente, os que se comovem com essas vozes… e as libertam. Como fez o competente Alexandre Kahtalian!

https://www.youtube.com/watch?v=NnNPZX8i8RE

sertão

Disco: “O melhor de Belchior”

EU TENHO MEDO DE ABRIR A PORTA / QUE DÁ PRO SERTÃO DA MINHA SOLIDÃO”  ( Belchior )

Decerto que não sou uma pessoa mística. Pelo menos, eu não ‘viajo na maionese’ como alguns que eu conheço, que constroem ‘ligações celestiais’ em tudo que ocorre ao redor…

De fato, reconheço, eu tenho as minhas crendices, a minha fé e o meu jeito de ver o mundo sob o prisma mais espiritual. Porém, a verdade é que esse olhar não me empurra a aceitar teorias mirabolantes de ‘causas e efeitos’, de determinismos implacáveis ou irremovíveis. Ah, lá isso não!

Por outro lado, também é verdade, eu acredito que o ‘destino’ de uma criatura pode estar sujeito a bruscas mudanças, muitas vezes difíceis de se entender. E na base dessas questões, quase sempre, está a mão do próprio indivíduo promovendo ou boicotando possibilidades. Sei que é brabo aceitar, minha gente, mas nós somos ‘conspiradores’ de primeira ordem e não poupamos ninguém… Céus, quanta ironia!

Contudo, há um punhado de gente que ao observarmos a trajetória ficaremos intrigados ou, quem sabe, perplexos com o caminho que destino seguiu… Pois é. A grande questão é: o que fez delas se tornarem tão diferentes ou inusitadas ou até mesmo ‘iluminadas’?

Vejam o exemplo do meu conterrâneo Belchior. Meu Deus, que sequência foi essa que a vida aprontou para ele? Que força misteriosa foi essa que o destino pôs em suas mãos e de que forma ele a conduziu? Sim, meus amigos, se pensarmos que ainda durante sua infância, no velho e querido Ceará, ele foi cantador de feira e poeta repentista. Que estudou música coral e piano. Que seu pai tocava flauta e saxofone e sua mãe cantava no coral da igreja. Que em 1962 ele se mudou de Sobral para Fortaleza dando início aos estudos em Filosofia e Humanidades e, posteriormente, Medicina, abandonando o curso no quarto ano, em 1971, para dedicar-se à carreira artística. Depois disso, ligou-se a um grupo de jovens compositores e músicos, como Fagner, Ednardo, Teti, Cirino, entre outros, conhecidos como o ‘Pessoal do Ceará’.

Quis o destino que ele viesse, em 1971, para o Rio de Janeiro e se encontrasse com a ‘sorte grande’ e com ela estabelecesse um pacto de sucesso. O que se seguiu virou história. Afinal, ver o seu nome aparecer na posição 58 da lista das ‘100 Maiores Vozes da Música Brasileira’ pela especializada revista Rolling Stone Brasil, foi apenas um passo a mais na vida desse talentoso nordestino!

Explicação para tudo isso? Tenho não. Ou, quem sabe, o próprio Belchior nos responda sob a forma de melodia?!

“Quando eu não tinha o olhar lacrimoso  /  Que hoje eu trago e tenho  /  Quando adoçava meu pranto e meu sono  /  No bagaço de cana do engenho  /  Quando eu ganhava esse mundo de meu Deus  /  Fazendo eu mesmo o meu caminho  /  Por entre as fileiras do milho verde  /  Que ondeia, com saudade do verde marinho.

Eu era alegre como um rio  /  Um bicho, um bando de pardais  /  Como um galo, quando havia  /  Quando havia galos, noites e quintais  /  Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo  /  O mal que a força sempre faz  /  Não sou feliz, mas não sou mudo  /  Hoje eu canto muito mais!”

https://www.youtube.com/watch?v=dGzXuHr9uf0

Bechior_small

Memórias: “DORI  CAYMMI  E  A  HARLEY-DAVIDSON”

Outono de 1988. Eu ainda morava no Rio de Janeiro, no Arpoador. Como era um jovem professor, de apenas 27 anos de idade, eu descobrira a paixão pela motocicleta. Porquanto a ‘Cagiva-Harley-Davidson’ acabara de ser lançada no mercado brasileiro, com 125 cilindradas, quadro alto e motor de dois tempos. Nossa! Era uma baita moto e me proporcionou momentos de raro prazer, minha gente.

Guardo na memória incríveis passeios e aventuras que eu costumava fazer aos domingos de tarde. Bastava o sol baixar um pouco e, aí, eu pegava a moto e subia a Vieira Souto em direção ao Leblon. Na sequência, vinha a Delfim Moreira e, ao final dela, eu sempre optava pela Avenida Niemeyer, que nos brinda com um visual maravilhoso. Então, vinha São Conrado e eu tomava a direção da Estrada do Joá, que naquela época era confiável e segura. Pronto. Dali até o topo da Estrada da Pedra Bonita era bem rapidinho, ainda mais de moto, não é verdade?! E o ‘gran finale’, meus amigos, era a subida até o local em que os ‘malucos’ pulavam de asa delta… Céus…‘adrenalina pura’, isso sim! Eu permanecia ali por horas, apenas observando as pessoas e os voos…

Mas havia um toque especial nesse outono. É que as folhas das amendoeiras estavam bem amareladas e começavam a cair dos galhos, proporcionando uma visão espetacular durante o trajeto. Outro detalhe, também extraordinário, é que eu fazia este percurso com um fone de ouvido ligado ao “walkman”. E naquele outono de 1988, meus amigos, adivinhem qual era a fita de minha preferência? Sim! Era o recém-lançado álbum de Dori Caymmi. Meu Deus do Céu, quando eu acelerava a moto e subia o volume ‘Gabriela’s song’, parecia que eu flutuava nas nuvens. ‘Porto’, então, era outra melodia que eu reservava para a lenta volta, já que ela me remetia ao encantado mundo de ‘Gabriela’, na primeira versão da novela, de 1975, com o grupo vocal MPB4 deslumbrando a todos…

De um jeito ou de outro, o que eu posso dizer é que a minha vida sempre esteve atrelada aos Caymmis, seja Nana, Dori, Danilo ou mesmo ao velho e saudoso Dorival.

Abençoados, sejam!

https://www.youtube.com/watch?v=7W5r47snXhY

Dori_Caymmi_small

Disco: “Baião Erudito”, com Nonato Luiz.

SUA BÊNÇÃO, MEU PADIM PADI ‘CIÇO’…

Foi Nonato Luiz que me confirmou a regra. Segundo ele, para se conhecer um cearense de verdade bastam apenas duas perguntas. A primeira é: você gosta de mulher? Se ele disser que sim, então, você volta à carga e arremata a segunda: e de farinha? Se ele soltar um retumbante ‘vixe!’, pronto: é sinal que você estará em frente a um legítimo pau-de-arara!

Pois é. O que sei dizer é que tenho muito orgulho das minhas raízes cearenses, isso sim. E eu já encontrei pau-de-arara em todo canto desse mundão de Deus. Só vendo como cearense é bicho nômade. Aparece em tudo que é lugar e em todas as atividades humanas…

Certa vez eu estava na fila dos correios na Basiléia, Suíça, em 1976, quando alguém começou a ‘mangar’ (no dicionário cearês é o mesmo que zombar!) da atendente que parecia mal-humorada pra ‘dedéu’.

– Olha só a cara dessa bichinha. Parece ‘abestada’!

Eu nem precisei falar nada. Apenas uma discreta risada demonstrou a minha cumplicidade ao conterrâneo…

O fato é que tudo isso me lembrou o amigo Nonato Luiz, que há tempos não aparece por essas bandas. Para minha sorte, eu tenho aqui em casa uma bela coleção de CDs do Nonato, alguns deles enviados pelo meu primo Henilton, como esse maravilhoso “Baião Erudito”. Meu Deus do Céu, que coisa linda!

O disco é em homenagem a Humberto Teixeira e Luís Gonzaga, que produziram uma obra extraordinária e perene. Afinal, quem consegue ouvir o ‘pot-pourri’ de “Juazeiro – Assum Preto – Algodão” e não se emocionar com as ricas melodias? Isso sem falar de “Légua tirana”, que na interpretação de Nonato adquire profunda dramaticidade. Algo incrível, meus amigos!

No entanto, a música que mais me comoveu foi a faixa “Vida de viajante”. Sim! Além da beleza da melodia, minha gente, ela também me remete ao apurado gosto que o cearense tem de viajar, viajar e viajar. O resultado não poderia ser outro: chorei um bocado com saudades do meu Ceará!!

Nonato_Luiz_small

https://www.youtube.com/watch?v=Virzk-XBcMw

https://www.youtube.com/watch?v=AsMnjyjXUiU

Memórias: OS  NÁUFRAGOS,  JOHN  LEE  HOOKER  E  O JACK DANIEL’S

Verdade é que eu já cheguei em casa esbaforido, bastante irritado com o trânsito infernal do trabalho até o bairro. E aí, após o banho restaurador, liguei o velho aparelho de ar condicionado que, embora barulhento, ainda soprava um bom ventinho frio… Bendita tecnologia de 1978!

Ao passar pela sala, vislumbrei a garrafa de ‘Jack Daniel’s’. Sim, porque não, pensei?! Afinal, aquele momento era bem apropriado e, por certo, merecia a dose redentora. Algumas pedras de gelo e o copo largo e baixo de cristal, presente de minha querida mãe, foram suficientes para iniciar os ‘trabalhos’. E o primeiro gole foi precioso: céus! Parecia até ‘néctar dos deuses’, tal o relaxamento provocado. Além disso, como uma coisa leva a outra, do sofá eu divisei o CD adquirido na semana anterior, ainda lacrado… John Lee Hooker, porque não, perguntei-me mais vez?!

Contudo, cá entre nós, tem coisas que precisam de ‘rito’. Porquanto não podem ser banalizadas. Por isso, fui até a cozinha, que ficava a quatro passos da sala, que também era quarto de dormir… um mundo pequeno, né? Paciência!

Cortei umas quatro fatias de queijo provolone e piquei em pequenos cubos, espetados por palitos. Após isso, deitei-me na rede cearense que atravessava o quarto, pus a banqueta ao meu lado e respirei profundamente, como se precisasse expelir aquela atmosfera de tensão e raiva para fora dos meus pulmões. Ufa!

Nessa altura do campeonato, a guitarra de John Lee Hooker já ecoava pelo ambiente, tornando a atmosfera contaminada pelo aroma do Gudan e do Jack Daniel’s algo íntimo e convidativo. E pelo jeito, tudo isso conspirava. Rapidamente. Portanto, não havia como evitar as recordações. Eram lembranças da última viagem pelos Cânions do São Francisco, entre Alagoas e Sergipe, em 1977. O que ninguém sabia é que dentro daquele barco que nos conduzia pelas barrancas do rio, vazavam muitas angústias represadas, envoltas em tácito silêncio.

Lembro apenas que me debrucei na grade do barco enquanto ele penetrava pelo rio adentro. No meu pensamento, somente o filho ou a filha que eu poderia ter se ela tivesse aceitado o momento… Hoje, esse filho ou filha teria quarenta anos. Meus Deus, quem pode imaginar o que isso representaria para minha vida?!

 

Disco: “Momentum”, de Luiz Gustavo Zago.

Exceto na física, ‘Momentum’ NÃO é “momento” (moment), mas sim ‘impulso’, embalo, fôlego…

Pois é, minha gente. Nessa altura da vida, aos 67 anos de idade, eu posso assegurar a vocês que não há nada mais prazeroso do que perceber que conquistamos bons amigos. Ah, lá isso é verdade. Até porque, talvez seja a maior ‘condecoração’ que uma criatura pode almejar. O resto… convenhamos, é apenas paisagem!

E um desses amigos que conquistei aqui em Florianópolis é o extraordinário músico Luiz Gustavo Zago. Além de exímio pianista, Zago, embora jovem, já figura na galeria dos melhores arranjadores desse país. Tanto é verdade que ele é procurado por muitos expoentes da MPB.

Ao fazer uso de requintado bom gosto musical, Zago consegue transitar por uma gama enorme de ritmos, que vão do erudito ao tango, passando pelo jazz, rock e o que mais se consiga imaginar. Tudo isso, amparado em encantada leveza e profundidade melódica. Talento é que não falta ao homem…

O mais recente álbum de Luiz Zago, lançado em novembro de 2018, intitulado “Momentum”, merece atenção especial do ouvinte. Porquanto as treze faixas que compõem o CD apresentam incríveis variações, ainda que mantenham o mesmo clima intimista. A começar pela belíssima composição “Inverno”. Meu Deus, eu fiquei de boca aberta com o fôlego empreendido por Zago e os primorosos músicos Tie Pereira, Richard Montano e Daniel Galvão. Aliás, em algumas passagens, devo confessar, eu me lembrei com saudades do estilo melancólico de Astor Piazzolla…

Coisa linda!

 

 

Memórias: DAS RAZÕES E CONTRARRAZÕES!

Eu devo reconhecer que, nessas questões, normalmente era Luiz Henrique ou Ênio que davam o veredicto. E, no caso, a sentença proferida por Ênio foi imediata: “Chau, pelo amor de Deus… isso é um comportamento pequeno-burguês!”

Céus! Eu nem sabia onde esconder a vergonha… Poxa, mas que mal havia em almejar aquela calça Lee e a camisa LaCoste? Só porque eram estrangeiras, minha gente, representam ‘símbolos imperialistas’? O importante não seria o nosso pensamento socialista, alinhado às causas comuns?! E afinal de contas, porque é que em toda revolução socialista o povo tem que ser miserável, quase indigente, heim?! O fato é que elas eram lindas, isso sim, e bem superiores à nossa calça FarWest e as camisetas Hering da “Impecável Maré Mansa”, da Rua Uruguaiana, uma verdadeira loja de suburbanos, de pura sem-gracice…

Pois é, meus amigos. O grande problema, porém, é que os meus argumentos não eram suficientemente consistentes, a ponto de demover os preparados discursos de Luiz Henrique ou de Ênio. Então, eu acabava acatando as ‘orientações’ deles. Sempre. Mas, no fundo, juro a vocês: aquilo tudo me deixava à flor da pele, revoltado.

No entanto, vejam vocês a ironia do destino: foram necessários vinte e poucos anos para aparecer no cenário político brasileiro um ‘espoleta’ que representou a ‘libertação’ das minhas angústias juvenis. É bem verdade que ele apareceu com uma fala ‘arrumadinha’, declarando-se ‘caçador de marajás’ e outras coisas mais. Com tudo isso, deu no que deu!

Agora que já se passaram quase trinta anos e mundo girou mais um bocado, convenhamos: ideologia não tem nada a ver com bom-gosto ou requinte. Tanto é verdade que hoje Luiz Henrique bebe os melhores vinhos importados e veste ternos de fino trato… Ah! quanto desperdício tivemos em nome de sistemas falidos, rotos e contraditórios, não é mesmo?

E mais ainda: em que lugar da memória ficaram guardados os sonhos de sociedades ‘mais justas e equânimes’? O que foi feito das nossas ‘bandeiras’ e dos nossos líderes socialistas? Afora a queda daquele emblemático muro, o que mais ruiu além dos nossos sonhos, meus amigos?

passeata_dos_100_mil