A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA (*)

Eu não sei dizer como ocorreu isso e por que aconteceu. O fato é que de um tempo para cá ficou muito importante a questão da memória. Melhor dizendo, das memórias, já que são muitas. A começar pelo extraordinário trabalho de Salvador Dali – “A persistência da memória” – que inadvertidamente eu esqueci no apartamento da praia que vendi no ano passado. Pois é. Tudo bem que era apenas uma reprodução da fabulosa obra do mestre Dali. Contudo, a verdade é que ela me acompanhou nos últimos cinquenta anos de vida. Ah! Lembro até que eu adquiri a reprodução ao visitar o simpático Museu da Chácara do Céu, na Fundação Raymundo Castro Maya, em Santa Tereza, no Rio de Janeiro.

Na época, eu tinha pouco mais de vinte anos e morava na casa da querida “Tante” Charlotte e do “Oncle” Ernest, um fantástico casal suíço que me alugou um quarto na envelhecida casa que eles tinham na ladeira da Aarão Reis. Eu morei na casa deles por apenas um ano, o suficiente para me deliciar com as incontáveis descobertas que experimentei. Sim! Elas iam do majestoso rito do brinde com “Kir Royal” que “Oncle” Ernest preparava com refinado requinte, passando pelas aulas de jardinagem e aos artesanatos criados por ele: pura arte. Bem perto da gente, na sala de jantar, “Tante” Charlotte nos observava com brilho intenso nos olhos. Além disso, foi ela que me confidenciou quando me despedi da casa que aquele ano havia sido o mais feliz que eles haviam vivido. E que eu era o ‘culpado’ por aquilo. Céus, que saudades sinto deles e daquele período mágico!

Ah, eu estava contando sobre a gravura do espanhol Salvador Dali. É que o Museu da Chácara do Céu possuía um grande acervo de Portinari e Debret e, de quebra, o milionário Raymundo de Castro Maya reuniu outras obras por conta de suas tantas viagens internacionais. Por ser um espaço destinado a apreciação de sua vasta obras de arte, a fundação vendia aos interessados um sem-número de gravuras dos renomados artistas. Foi nessa ocasião que eu me identifiquei com a icônica obra de Dali, “A persistência da memória”. Ela foi produzida em 1931 e é uma pintura surrealista em que relógios se derretem, aparentemente por nada…

Lembrei também de Picasso, que pintou “Guernica” alguns anos depois, em 1937. Acredito que essas duas obras surrealistas sejam as mais famosas e apreciadas no mundo.

Talvez, alguém possa indagar: “Carlos, o que essa obra de Dali tem a ver com a sua crônica?” E eu responderei: tudo, minha gente. Tudo. Na verdade, isso faz parte do surrealismo que, seja na literatura ou nas artes plásticas, não há lógica ou racionalidade. Porquanto dá lugar a tudo que a mente criadora de um artista possa tirar do seu imaginário. Aliás, muitos críticos até buscam explicações nas teorias da psicanálise. Quem sabe Salvador Dalí quisesse mesmo desafiar o próprio tempo? Afinal, os relógios derretidos parecem mostrar que o tempo pode ser outro em diferentes situações. A minha querida mãe, Jarina Menezes, foi profunda admiradora e praticante do surrealismo de Dali. E passou boa parte de sua vida questionando o mundo ao seu redor.

Como hoje eu acordei com essas imagens na cabeça, então, aproveitei para reverenciar essas grandes criaturas. Todas elas. Abençoadas, sejam!

MUITO  ALÉM DA FANTASIA

Já faz um tempinho que venho escrevendo sobre cinema. E, confesso a vocês: para mim esta tarefa tem sido muito prazerosa. Isto porque falar sobre cinema é falar sobre arte e, como se sabe, o cinema é reconhecido como a sétima arte. Aliás, com muita justiça. Afinal, foram muitos os atores e diretores que emprestaram seus talentos às filmadoras. Criaturas que buscaram ‘imitar a vida’ por intermédio da arte. Conseguindo retratá-la, recriá-la ou até mesmo subvertê-la. Porquanto assim é o cinema: aquela tela ‘encantada’ capaz de proporcionar a grande catarse coletiva. Seja para nos transportar no imaginário das histórias e nos emocionar com a fantasia, seja para denunciar a nossa recorrente dificuldade de sonhar. O que eu posso dizer é que o cinema nos oferece a rara possibilidade de lavar a nossa alma. Céus… Que maravilha!

Se uma pessoa é capaz de se modificar a partir de um bom filme ou livro fora do comum, é sinal de que ela possui sensibilidade necessária ao crescimento. E quando essa mesma criatura também é capaz de crescer a partir de um relacionamento marcante ou por conta de um acontecimento especial, então, é sinal que já foi ‘tocada’. Melhor ainda: deixou-se ‘tocar’. Sim! É preciso reconhecer que este é um momento mágico. Momento de apurado valor espiritual, uma vez que raramente deixamos acontecer, o que é uma pena. Pode-se dizer que foi estabelecido nesse momento o real processo da ‘purificação’. De fato! É que nessas horas, nós conseguimos harmonizar a nossa alma e, de alguma maneira, deixamos vazar o lado mais sensível que há nela. Por sinal, quantas pessoas conhecemos nessa vida que não permitem isso? Pior ainda: quantas nem sequer ‘atinam’ para a beleza desse movimento? Muitas, lamentavelmente. Tornam-se os verdadeiros errantes!

O nosso estimado poeta, Vinícius de Moraes, orgulhosamente nos dizia que “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Com certeza, meu poeta, uma vez que observamos que a grande ‘dificuldade’ dos homens é exatamente ‘viver’ e, com isso, se encontrar. Poucos conseguem. Desafortunadamente, a grande maioria se desencontra e apenas ‘sobrevive’…

Riobaldo, personagem icônico de Guimarães Rosa, dizia com extrema propriedade: “Viver é muito perigoso!” Pois é, companheiro… talvez seja. No entanto, assim como ele se atreveu no proibido afeto que sentia por Diadorim, nós também precisamos ‘ousar’. Só que para isso, nós precisamos nos ‘expor’ ante a vida, se desejamos nos emocionar com ela. Caso contrário, cumpriremos o percurso de forma previsível e enfadonha, sem jamais percebermos as belezas espalhadas nos caminhos que trilhamos.

Também é verdade que a grande sabedoria humana não está registrada em nenhuma enciclopédia, visto que é algo subjetivo e requer sensibilidade. É bem provável que a ‘sabedoria’ desta vida esteja em aprender a ler o livro, o ‘livro da vida’, de forma correta. O acesso a esse invisível livro é aparentemente fácil. Contudo, são raras as criaturas que alcançam esta capacidade e que desfrutam desse Nirvana. De modo geral, o que se percebe é que somente as pessoas iluminadas ou aqueles indivíduos ousados são capazes de decodificar o livro da vida. Com isso, ah, eles não só se deliciam com a mágica leitura como também nos proporcionam ‘mensagens especiais’. Então, deixo aqui um convite especial: que tal abrir o seu coração e se desarmar com as outras pessoas? Que tal modificar um pouco a sua rotina em favor de novas descobertas?! De minha parte, juro, eu torcerei pelo seu êxito. Basta que confie em você e no mar tranquilo que lhe aguarda pela frente!

Ao meu velho e querido pai (aonde estiver).

Meu pai,
dá-me os teus velhos sapatos
manchados de terra
dá-me o teu antigo paletó
sujo de ventos e de chuvas
dá-me o imemorial chapéu
com que cobrias a tua paciência
e os misteriosos papéis
em que teus versos inscreveste.
meu pai,
dá-me a tua pequena
chave das grandes portas
dá-me a tua lamparina de rolha,
estranha bailarina das insônias
meu pai, dá-me os teus
velhos sapatos.

( Vinicius de Moraes )

OS RIOS DE OUTRAS ALDEIAS

Após muitos anos de uma vida acelerada, muitas vezes de modo bastante frenético, boa parte vivida no Rio de Janeiro, eu acabei me mudando para Florianópolis em busca de sossego e qualidade de vida.

Ainda assim, foi preciso perambular por algumas moradias nessa encantada ilha. Inicialmente, foi na Lagoa da Conceição que ancorei o meu barco. E ali eu tirei a sorte grande e conheci o amor de minha vida. Casamos e tivemos um lindo filho que vem nos acompanhando nessa estrada.

Depois disso, construímos uma bela casa que nos abrigou por mais de uma década. No entanto, por ser um lugar bastante calmo e ermo, atraiu a atenção de quem não devia: os famosos “amigos do alheio”. A ponto de preferirmos morar em um apartamento em outro bairro. Assim, perdemos o espaço e beleza da casa mas ganhamos praticidade e segurança, ainda que a um preço elevado…

Porém, o que eu queria contar é que nesse fim de semana, animados pelo convite de um casal de amigos, fomos conhecer a casa de campo que possuem no município de São Bonifácio, a 90 km de Florianópolis. Meu Deus do Céu, que maravilhosa sensação foi conhecer aquele cantinho sossegado, com direito ao canto dos pássaros e ao som das águas do rio que passa em frente à casa de madeira. Com isso, podíamos apreciar essa beleza de todos os cantos da casa. Até do nosso quarto de dormir. Sim! Um contato pleno com a natureza: a imensa floresta de eucaliptos, o rio da cachoeira e as duas nascentes de águas cristalinas bem aos nossos pés. Quem pode querer mais?!

Aliás, ainda havia um outro motivo para nos deleitar: ao passarmos o fim de semana na casa do Édson e da Renata, que são avós maternos do nosso neto, tivemos a companhia do João Pedro, no auge dos seus sete anos, e do irmão do Édson, o Cristiano, que nos acolheu com profundo carinho.

Ocorre que lá, na casa de campo, não tem Internet e tão pouco rede de telefonia celular ou de televisão. Desse modo, nós ficamos dois dias incomunicáveis. Sendo que, para muitos, poderia ser considerado uma tortura. Contudo, para nós, ah, foi motivo de comemoração essa desintoxicação digital. Porquanto nos ‘obrigou’ a exercer um hábito antigo e agradável: conversar!!

Pois é. O que percebemos é que de quando em quando o ser humano precisa dessa ‘trégua’. Foi bem-vindo o tempo para as conversas, os jogos de bocha e ping-pong e dos desenhos que o João Pedro produziu.

Pudera! Eu e a minha mulher nos alimentamos, durante dois maravilhosos dias, com os sabores e aromas da mãe terra. Portanto, o nosso muito obrigado ao casal Edson e Renata e o sócio (e irmão do Edson), o querido Cristiano. Eles foram os grandes anfitriões dessa jornada…

BOM DE BRIGA

Todas as vezes que íamos jogar bola na ladeira da Zamenhof, sempre havia o risco de alguma briga. Isto porque, como todos os jogadores tinham entre 13 e 16 anos de idade, já viu, né? Os tais ‘hormônios masculinos’ apareciam em qualquer disputa de bola. Por conta disso, mais da metade dos jogos não terminavam bem, ou seja, o ‘pau comia’ antes da partida acabar.

Como eu era bem franzino, para não dizer ‘magrelo’, procurava não entrar em disputa ‘dividida’, daquelas cujo tornozelo quase sempre arca com as consequências. Mas, é o tal negócio: não adianta se esconder, pois quando chega o dia certo, ah, você pode jogar uma moeda para o alto e dizer que ao cair no chão dará cara ou coroa. Porém, não é que a maldita moeda é capaz de cair em pé?!

O que eu posso dizer a vocês é que o Durval já andava na minha ‘cola’ a algum tempo, louco para jogar contra o meu time e me acertar uma cacetada daquelas. E foi o que aconteceu naquela tarde de sábado. O jogo mal começara e logo na primeira disputa de bola Durval acertou um pontapé na batata da minha perna. Eu caí no chão me contorcendo de dor e um grande calombo se formou na hora. Ele, sorrindo cinicamente, apenas levantou o polegar e seguiu em frente.

Um detalhe importante é que quase todos da rua sabiam que eu tinha um irmão mais velho, bastante forte. Assim, para minha sorte, esse ‘detalhe’ me blindou por longo período das confusões na Zamenhof. Só que Durval era novo na rua e não sabia que eu tinha irmão, muito menos que fosse mais forte do que eu. Daí, como eu marquei o gol da vitória no último minuto da partida, além dos tapinha nas costas vindo dos meus companheiros da equipe, recebi também um soco na barriga vindo do Durval. Aí, a confusão se formou. E todo mundo abriu espaço para a nossa briga acontecer. Durval tinha ‘sangue nos olhos’ e queria me ver morto ou quase morto. Já eu, confesso, nunca havia brigado com ninguém e fiquei sem saber como reagir ao soco recebido.

Foi preciso tomar o segundo pontapé na coxa para perceber que não poderia evitar mais a briga. Ainda ganhei alguns segundos girando de um lado para o outro, tentando evitar o conflito. Até que o Durval pulou em cima de mim, buscando me derrubar. Só que ele errou a distância do pulo e bateu com a boca no meu joelho. Caiu estatelado no chão, com o olhar perdido. Imediatamente, começou a sangrar e rapaziada gritava para eu bater firme, já que ele estava zonzo. Mesmo não querendo fazer isso, pois nunca batera em ninguém na vida, senti muita raiva e uma vontade enorme de dar o troco. Foi o que eu fiz quando ele se levantou: devolvi o soco igual na barriga dele. Durval, que era maior do que eu e bem mais forte, nesse momento, parecia assustado com a minha reação. Então, virou-se de costas e saiu correndo para a casa. A turma do futebol comemorou a surra com gritos e assobios. Levantaram-me nos ombros, como um herói, e saudaram o novo ‘rei da briga’ da velha Zamenhof…

Por um certo tempo, Durval evitou se encontrar comigo na rua. Até que um dia ele me perguntou: “Chau, como você deu aquele golpe com o joelho na minha boca?” E eu, sem pestanejar, menti com convicção: “aprendi nas aulas de jiu-jitsu da academia.” Foi quando ele consentiu: “logo vi que você dominava as artes marciais!”

CARA OU COROA

Sim. Eu sei que tem vezes que as nossas escolhas na vida seguem um minucioso critério de avaliação. Outras vezes, porém, a gente acaba optando pelo caminho mais fácil ou menos arriscado, não é verdade? Pois é. Há, também, a questão da sorte ou da pura escolha aleatória, sem passar por nenhum filtro interno. O certo mesmo, como dizem por aí, é que ‘quando tem que ser, não adianta remar contra’. A coisa simplesmente acontece.

O fato é que sem considerar esses aspectos que foram explicitados acima, eu e Marquinhos sempre nos acertamos na hora de escolher o banco do automóvel. Fosse ao lado do motorista como copiloto ou mesmo no banco de trás. Mas, calma aí que explico.

É que na nossa adolescência, nas caronas que pegávamos para ir à praia, o ‘acordo’ tinha que ser rápido. Caso contrário, nós perderíamos aquele sinal fechado e o condutor do veículo arrancaria sem a nossa companhia. Por isso, então, quando o semáforo luminoso anunciava o amarelo e a seguir o vermelho, nós já saíamos pelo meio dos automóveis perguntando: “amigo, pode nos sar uma carona para Laranjeiras, Botafogo ou Copacabana?”

Lembro que esse processo costumava levar, normalmente, de vinte a quarenta minutos, dependendo do movimento de carros. E também da nossa sorte! Tinha dia, por exemplo, que mal chegávamos na sinaleira e logo aparecia um carro. Outras vezes, céus, a gente mofava ali no sol escaldante. No entanto, o importante era se mostrar simpático na pergunta e estar sempre com um sorriso preparado. E nesse aspecto, reconheço, o Marquinhos era mais talentoso. Ou falso. Porquanto vencia 70% das disputas comigo para ver quem conseguiria o bendito transporte…

Havia ocasiões que nós nos dávamos ao ‘requinte’ de escolher o automóvel, optando por modelos mais espaçosos ou aqueles com ar-condicionado. Aí, já viram, né? Quando isso acontecia, era festa no parquinho. Afinal, nós chegávamos em Copacabana exultantes, como verdadeiros vitoriosos!

Mas o diabo é que o Marquinhos era mais liso que sabonete e, se eu bobeasse, ele aplicava algum golpe para cima de mim. Foi bem o que ocorreu naquela quinta-feira ensolarada. Ao se aproximar da caminhonete de luxo, Marquinhos perguntou para o motorista se podia nos dar carona. O rapaz disse que sim. Rapidamente, Marquinhos entrou e se sentou no banco da frente, ao lado do jovem motorista. Eu nem liguei para a escolha dele e me dirigi para a porta de trás da caminhonete novinha. Abri a porta e me sentei rapidamente para não atrasar a partida, uma vez que o semáforo acabara de piscar o verde.

Nem bem eu me ajeitei no banco, senti a presença daquele ‘bicho enorme’ ao meu lado. Caramba! Era um baita pastor-alemão que me cheirava de cima a baixo, de minuto em minuto. E eu, impávido e quase borrado de medo, nem olhava para o cão feroz com medo dele cismar comigo. Sabe como é?!

Lá na frente, conversando animadamente, Marquinhos era só risadas. O pilantra tinha percebido a presença do cachorro quando pediu carona. Por isso, ele entrou bem ligeiro na frente e me deixou na maior ‘encrenca’. Tanto é que ao chegarmos em Copacabana, já refeito do susto, eu disse para ele: “a partir de agora vai ter que ser no ‘cara ou coroa’. Senão, eu estou fora, companheiro”.

O que eu sei dizer é que isso ocorreu há mais de cinquenta anos. Mas até hoje, confesso, eu não consigo olhar para um pastor-alemão sem me lembrar do pilantra do Marquinhos!

UÍSQUE PARAGUAIO

Sim, é verdade! Eu nasci em Fortaleza, no Ceará, nos idos de 1951. No entanto, confesso a vocês: no meu imaginário, ah!, eu devia ter nascido em 1851, às margens do Mississipi, em New Orleans. E ao completar seis anos de idade, por certo, eu receberia de meus pais um trompete de presente. Porém, paciência! Quis o destino que eu nascesse cem anos depois e às margens do barrento Jaguaribe, no velho Ceará. Pior ainda: não recebi presente algum de aniversário… Com sorte, apenas um aperto de mão.

Não, meus amigos, eu não estou aqui a reclamar da infância distante e tampouco das minhas raízes nordestinas. No fundo, eu tenho até muito orgulho de ser pau-de-arara. Porquanto isso legitima as vocações, restituindo o ‘espírito guerreiro’ que há em mim. Ao menos, já houve. De fato, com o passar dos anos, eu percebo que a gente vai perdendo um pouco daquela fibra e da coragem. E como agravante, o diabo desse uísque paraguaio me pegou de jeito e botou as emoções na roda. Aí, sabe como é?! Troquei o disco de “blues” que estava ouvindo e coloquei o conterrâneo Belchior para cantar:

“Meu bem, mas quando a vida nos violentar / Pediremos ao bom Deus que nos ajude / Falaremos para a vida / Vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil / Meu coração é como vidro, como um beijo de novela…”

Ainda assim, eu lhe digo: se eu tivesse nascido no Mississipi, tudo seria diferente. Pois eu teria ao meu lado outros amigos. Sim! E talvez, nesse momento, eu estaria ouvindo Mahalia Jackson cantar “Just a closer walk”. Coisa linda! Mahalia cantaria com a mesma emoção dos “bluseiros” do velho Mississipi em New Orleans.

O que sei dizer é que ainda continuo sonhando com o trompete. Céus! Eu ali, sentado nas improvisadas cadeiras, esperando que alguma alma solidária apreciasse o som e nos oferecesse sorrisos, palmas e, de quebra, algum dinheirinho para o almoço que insiste em reivindicar o atendimento.

Pois é. Destino é destino e não se pode cobrar muito dele, não é verdade? Além do mais, não estou aqui para reclamar de nada. Muito ao contrário. Eu acredito que tenho recebido bem mais dessa vida do que mereço. E de mais a mais, convenhamos, a nossa missão nesse percurso, quando muito, é procurar aprender a ‘soletrar o mundo’ de modo correto.

Se tivermos um bocadinho de sorte, eu acredito que chegará o dia em que poderemos ler tudo aquilo que aprendemos no caminho em voz alta. Oxalá, meu bom Senhor!

A CAMINHADA DOS MEUS PAIS

Naquele bairro, ele era conhecido como “Professor Pardal”. E todos os vizinhos tinham muito apreço por ele e por sua esposa. É que, invariavelmente, às seis da manhã, eles iniciavam os exercícios de aquecimento e a posterior corrida de dez mil metros. Isso representava o equivalente a dez voltas completas pelo quarteirão no bucólico bairro em que moravam.

Após os exercícios, que terminavam por volta das sete e meia, eles voltavam para casa. Tomavam um demorado banho e se sentavam para o longo e saboroso café da manhã. Muitas frutas, cereais, pães e torradas e iogurtes naturais. Daí, cada um ia para o seu canto, ou seja, papai abria a sala de música e mamãe deitava-se na rede cearense de tucum e lia as notícias de artes no segundo caderno do jornal, antes de ir para o seu ateliê.

O que eu posso dizer é que a rotina daqueles dois, seguramente, era prazerosa e bastante movimentada. Sim! Ninguém jamais duvidou da excelente ‘qualidade de vida’ que eles usufruíam. Aliás, tanto o seu Holbein quanto Dona Jarina eram altamente bem-informados e ‘antenados’ no mundo moderno. Isso, é claro, sem perder de vista os valores serenos que eles elegeram como prioritários.

Os seis filhos já estavam formados e encaminhados e, com isso, meus pais tinham todo o tempo do mundo para os interesses escolhidos. Papai, por exemplo, estava sempre às voltas com alguma experiência sonora. Para tanto, ele montava e desmontava o sistema de som, inúmeras vezes. Ora introduzindo alguma modificação ou troca de cabos ou componentes. Ora promovendo ‘novos’ equipamentos desenvolvidos por ele. Segundo dizia, somente assim ele iria encontrar o “som de reprodução ideal”, isto é, o mais próximo possível da reprodução ao vivo, presencial.

Já a minha mãe, por seu turno, trabalhava em algum novo projeto artístico, fosse desenho ou à óleo. E o mais interessante no seu processo criativo é que, invariavelmente, ela se envolvia com mais de um trabalho. Ao mesmo tempo. Isto porque, quando percebia que alguma ideia ‘travava’, ela o deixava em banho-maria e assumia outro desafio pela frente. Desse modo, a sua produção artística era intensa e prazerosa.

O mais importante de tudo não foi ver minha mãe recebendo a ‘medalha de ouro’ no Salão Brasileiro de Desenho. Tampouco saber do sucesso da publicação de um artigo técnico sobre ‘reprodução sonora’ em uma revista de grande circulação entre os audiófilos. Importante mesmo, cá entre nós, era constatar que os nossos pais eram felizes. Sim! Felizes naquela vida e, quem sabe, na ‘nova vida’ que eles usufruem agora… E isso não tem preço!

PS. Na foto, mamãe, meu filho Gabriel e papai em momento de deleite.

AROMA DE CAFÉ

Viajar talvez seja um dos mais belos prazeres dessa vida. E muito cedo eu identifiquei esse desejo incontido de ver além das minhas janelas. É que a gente aprende um bocado com os outros, não é verdade? Se tivermos paciência, interesse e curiosidade, aí, então, a coisa vai longe…

Lembro até que esse tema surgiu em uma sessão de terapia, com o saudoso Alexandre Kathalian, um ‘mago’ no trato das emoções. Na época, eu dizia para ele que gostaria muito de me sentir um ‘cidadão do mundo’, desses que que perambulam pelos quatro cantos em busca de aventuras e aprendizados. Desses que não se sentem ‘estrangeiros’ em nenhuma parte do mundo.

Sim! De fato, eu demorei algum tempo para perceber que Mário Quintana tinha razão. Porquanto a sentença dele era procedente: “…eu queria ter nascido numa dessas casas de meia-água / com o telhado descendo logo após as fachadas / só de porta e janela… Porém nasci em um solar de leões. / Não pude ser um menino da rua… / Aliás, a casa me assustava mais do que o mundo, lá fora. / A casa era maior do que o mundo! / E até hoje – mesmo depois que destruíram a casa grande – / até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos…”

Talvez, por conta disso, o destino quis me presentear. Oferecendo-me a companheira ideal para os desafios que estariam à nossa frente. Sendo assim, caímos na ‘estrada’ e fizemos um pacto de exploração para além dos nossos muros. Desse modo, aceitamos que a ‘riqueza’ dessa vida não se traduz pelo vil metal. Assim, tudo ficou mais acessível. Não temos carros novos, nem apego material. Preferimos acumular milhas aéreas (e terrestres!) ao invés de roupas caras ou objetos de grife. Não que sejamos contra essas coisas. Mas é apenas uma questão de prioridades. Cada um com a sua, né?!

Esse ano, nós queríamos explorar dois países: França e Itália, com distintas intenções. Na França, elegemos Paris e o Vale do Loire. Afinal de contas, como disse Rick Blaine, personagem interpretado por Humphrey Bogart, em Casablanca: “…sempre haverá Paris!” E na Itália, eram duas as regiões de interesse: a Toscana e a Costa Amafiltana.

Começando pelo Vale do Loire, o que se sente é uma verdadeira viagem no ‘túnel do tempo’, uma vez que o século 21 deles se mostra mais interessado nos séculos X ao XVI. Por isso, eles mantêm uma vida calma e saudável, indiferentes aos turistas que atropelam os caminhos dos camponeses da região. Chega a dar pena ver a rotina daquela gente tão aviltada pelos ônibus de turistas… fazer o quê?!

No entanto, foi na Itália que tivemos as melhores experiências. A começar pelo passeio nos vales e montanhas da Toscana. Que tiro foi aquele, minha gente?! Coisa linda. Em cada subida e descida nas estradas éramos contemplados com paisagens deslumbrantes. Merecedoras de mais filmes maravilhosos criando ambientes para os dramas tão bem elaborados pelos cineastas. Um brinde a Toscana e ao cinema!

Demos início a nossa jornada começando por Montalcino, um vilarejo imerso na paisagem deslumbrante do Val d’Orcia e conhecido em todo o mundo pela sua produção do precioso vinho “Brunello”. Dali, fomos para Pienza que é a capital do queijo “Pecorino”, uma verdadeiro tesouro gastronômico. E terminamos a excursão ao Val d’Orsia conhecendo Montepulciano, que fica no topo de uma colina. É uma cidade medieval linda de se ver e apreciar, com fortalezas e casas de pedras tão bem conservadas quanto os vinhos.

Aliás, após a degustação de queijos, pães e vinhos na sede da vinícula “Contucci”, onde o inesquecível almoço foi feito pela proprietária, seguimos rumo a Florença, já que no dia seguinte iríamos conhecer o incrível Lago de Garda. Um verdadeiro colírio para os nossos ávidos olhos…

Embarcados no trem de alta velocidade (de 200 a 300 km/h), fomos para o sul da Itália em direção a Nápoles, e dali para Sorrento. Os nossos quatro últimos dias foram de muita movimentação pela Costa Amalfitana. Desde Conca dei Marini, passando por Positano, San Cosma, Amalfi e Ravello. Cada cantinho desses tem a sua beleza própria.

Ao final de toda essa bem planejada viagem, no fundo, eu sentia que alguma coisa ainda estava faltando. E foi preciso eu chegar em casa, exausto pela longa viagem de volta, de quase vinte e quatro horas com as conexões. O que sei dizer é que eu estava faminto mas pouca coisa havia de comida em casa. Restou-me apenas os biscoitos envelhecidos e um xícara de café. Humm… aí, sim, eu me dei conta da falta que o nosso cafezinho brasileiro faz. Principalmente, do aroma que emana. Ah! Inigualável aroma!!

Castelo de Chambord, em Blois – França.

Jardins do Château de Villandry.

Fortaleza de Montalcino.

Lago de Garda, perto de Verona.

Val d’Orsia – Toscana.

UMA LONGA CAMINHADA

Já faz um bom tempo que eu frequentei aquela interessante sala de música, lá no apartamento do Rio Comprido, no velho Rio de Janeiro. Lembro até que embora não morasse mais lá, por certo, fazer uma visita ao meu pai e a minha mãe tinha sempre um sabor especial. A começar pelos ‘mimos’ que mamãe reservava para mim. Ah, o que posso dizer é que ela foi a mais doce criatura que eu tive a sorte de conviver. Isto porque, Dona Jarina estava sempre bem-humorada e oferecia a quem chegasse em sua casa um inigualável sorriso de aconchego. Sim! Ver e abraçar a minha mãe era uma dessas coisas da qual nunca se esquece. Porquanto aquele abraço possuía um aspecto mágico, profundamente restaurador para quem recebia. E eu tive a sorte grande de recebê-lo incontáveis vezes. Coisa linda!

Passados os quinze minutos iniciais da visita, dedicados inteiramente a minha mãe, eu me dirigia à sala de música, onde o meu pai estaria envolvido com alguma montagem ou desmontagem de projetos sonoros. Como um experiente ‘cientista’, ele encarnava o velho “Professor Pardal”, que Walt Disney tão bem criara. E como ato contínuo, eu sempre indagava o porquê daquela mudança. Não que isso fosse importante para mim. Mas, certamente, seria para ele! Assim, o meu gesto representava o primeiro sinal de admiração que regaria a longa conversa posterior. Pois é. São os códigos de qualquer relação, pensava eu. E papai admirava isso. Profundamente.

Em contrapartida, ele colocava um disco de jazz para tocar e me convidava para sentar nas confortáveis poltronas da sala de música. Com isso, nós procurávamos relaxar todos os músculos e ideias. A partir daí, ficávamos por conta do sopro intimista de Miles Davis ou de John Coltrane. Muito embora meu pai preferisse ouvir música erudita, ele sabia que o meu gosto musical de maior deleite era o jazz. E novamente os “códigos afetivos” da nossa relação eram seguidos com respeito e reverência. Sempre em favor do outro.

Além disso, havia na mesa ao lado uma garrafa de vinho Guglielmone, o “Velha Capital”. Ele permanecia ali, pacientemente, aguardando a nossa sede de conversas e, quem sabe, ajudasse a soltar represadas conversas? Desse modo, já envoltos pelo ambiente criado, nós dávamos início a prosa do dia. É que papai era um exímio contador de história e de causos, nem sempre muito verídicos. Mas isso, pouco importava. O que valia mesmo era ouvir as suas histórias, que iam das andanças no Partido Comunista aos primórdios das aventuras familiares no sítio do vovô Ezequiel, no distante Ceará. O mais interessante é que tudo aquilo era comemorado com cerimônia e prazer. E eu, por meu turno, embevecido pelo vinho e pela história da família, sempre consentia ao final das nossas conversas. E para minha sorte, foram muitas e proveitosas conversas de pai e filho.

Aliás, devo confessar: dessas lembranças, o que me dói é saber que somente eu testemunhei tais acontecimentos. Considero uma grande injustiça, já que eu gostaria muito que meu filho fosse vivo, à época, para que ele pudesse acompanhar ao nosso lado o que de melhor os “Menezes” conversaram nessa vida… Saudades suas, meu pai!

Meu velho e querido pai, Holbein Menezes, que viveu 100 anos!