Laços & Entrelaços

Certamente esse é um assunto bastante delicado, difícil até. Isto porque, quase sempre a gente esbarra em suscetibilidades, vindas de todas as formas. Com isso, o tema acaba virando um verdadeiro tabu, cheio de ‘não-me-toques’, melindres e outras coisas mais.

Eu me refiro aos aspectos familiares, cujo protagonismo envolve as relações com os pais e os irmãos. Rapidamente, alguém poderá dizer: “Carlos, pelo amor de Deus, isso é ‘casa de marimbondos’, então, é melhor não mexer!” Sei bem disso, minha gente. E tampouco pretendo levantar o dedo em riste para qualquer familiar. Longe de mim essa intenção. Juro!

O que eu posso dizer é que o tema surgiu durante o confinamento, por conta da pandemia. É que para preencher o tempo, obrigatoriamente, nós temos assistido a muitos filmes. Alguns deles, devo reconhecer, foram maravilhosos e nos fizeram refletir sobre o entorno da história. Foram filmes que nos emocionaram e apontaram a mira na direção dos tantos ‘nós’ que existem por aí…

Como é habitual, nessas horas, a gente acaba parando pra pensar e avalia os ‘ecos’ provenientes. Ecos dos enredos das histórias que refletem na gente. No fundo, isso é algo bastante interessante, e sadio, à medida que desenvolve a nossa capacidade de observação.

Como pano de fundo dessa nossa conversa, meus amigos, eu irei evocar o belíssimo texto escrito pela blogueira Iviane Kuchpil, do site Biarticulando.

Segundo ela, “ao ler à sinopse do filme sul-africano, “Buraco na Parede”, pode-se concluir – precipitadamente, diga-se de passagem -, que estamos diante de mais uma história de ressignificação, quando o personagem principal descobre que tem poucos meses de vida e resolve aproveitá-los de forma intensa e reconciliadora. Porém, “Buraco na Parede” vai além disso: consegue ser intimista, sensível, engraçado, tudo sem flertar com o dramalhão ou a pieguice. No centro da história, temos Riaan, um sujeito independente, de espírito livre e hedonista que descobre ter um câncer de cólon no estágio quatro.”

“Com poucos meses de vida pela frente, Riaan, durante um de seus mergulhos diários no mar, conhece Ava e propõe a ela um emprego/aventura: o acompanhar na sua última viagem pela África do Sul, revendo amigos, amores e lugares.

Para isso, Riaan convoca o filho único, Ben, a quem não vê há três anos e que vive no exterior, para ser o terceiro elemento nesta jornada.

Nem tudo serão flores nesta pequena odisseia pessoal: ressentimentos e conflitos também vêm à tona, o que deixa a história ainda mais humana e sem idealizações.

Totalmente falado no idioma africâner e tendo como cenário as estonteantes paisagens de Transkei e KwaZulu-Natal, incluindo a fazenda de café do protagonista, o longa-metragem é um deleite para os olhos. Mas acima disso, deixa uma mensagem que vai além dos créditos finais: a vida é curta e inesperada!

Filme belo e que pode nos levar a uma breve autoavaliação… Recomendo.”

Ufa! Que bom ter pedido emprestado a Ivi Kuchpil um pouco do seu olhar talentoso. Poupou-me tempo e a agudeza de observação. Com isso, eu criei coragem para empunhar o tema central: família. Peço desculpas a quem se sentir melindrado. Mas meu desejo não é apontar falha ou culpa de alguém. Muito pelo contrário. Se houve enganos na relação familiar, quem sabe, caiba a mim a parcela maior dos movimentos ocorridos? Afinal, fui eu que me afastei dos entes, por motivos que nem vêm ao caso nesse momento.

Simplesmente, foram movimentos espontâneos, quase naturais, como as ondas do mar que criam diferentes desenhos a cada dia.

Todos eles, irmãos e irmãs, foram e continuarão sendo importantes na minha história de vida. No entanto, chega a hora em que é preciso ‘desatrelar’, quebrar viciados laços que não respondem mais pelos afetos presentes. São afetos que prescreveram com o tempo, isso sim. E não cabe nenhum desejo de ‘futucar’ antigas feridas ou episódios distantes…

Talvez seja o caso de apenas sugerir aos interessados que assistam ao filme e extraiam dele o que for conveniente e verdadeiro para cada um. O resto, meus amigos, é tão somente história. Com sorte, elas até podem ser usadas com respeito e imaginação!

Nas fotos: o querido Canelau, aos 7 e 8 anos de idade.

MEMÓRIAS NO DIVÃ

Eu bem sei que é difícil admitir determinadas posturas. Por sinal, eu também já me vi envolvido em diversas ‘contradições’. É até provável que isso seja algo comum na vida dos seres humanos. Por consequência, quem sabe, isso nem constitua motivo de culpa?! Quando muito, somente pequenos arrependimentos… vai saber?!

Ainda assim, posso afirmar que lembro muito bem do meu primeiro ‘conflito’. Sim! Muito embora eu fosse apenas um menino, de pouco mais de cinco anos, o certo é que já se anunciava em mim a dificuldade de lidar com o meu lado nordestino. Eu explico. É que para nós, ‘cabras da peste’, vir para o ‘sul maravilha’ é algo que carrega uma tremenda ambiguidade. Por um lado, a alegria de poder galgar novas oportunidades, por outro, o forte sentimento de ‘abandono e traição’ às causas nordestinas… Vai entender?!

Certo mesmo é que para muitos de nós isso se arrasta feito bola de prisioneiro, durante um longo tempo. E só consegue ser atenuado por intermédio da paciência e da resiliência desenvolvidas ao longo da vida. É o tal negócio: ainda que tenhamos gravado no gene aquele velho ‘estoicismo’, narrado por Euclides da Cunha, de que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, na verdade, isso nem sempre redime as nossas dores… tampouco os nossos destinos.

A partir daí, sim, é preciso desenvolver um grande ‘jogo de cintura’, com vistas ao que vem pela frente. E saiba que não é tarefa fácil, uma vez que a ‘seleção natural’, aliada ao esmeril do tempo, não poupa ninguém. Cedo, muito cedo, a gente aprende a se ‘virar nos trinta’. E a vender o almoço que é para pagar o jantar. E agora, José: sina ou vocação?!

Na verdade, eu não estou aqui a chorar pitangas. Muito menos para lamentar-me por algo ocorrido. Até porque, convenhamos: esse é o jogo da vida, minha gente. E tem que ser jogado como puder. Ou souber! Caso contrário, é como diz a canção de Chico Buarque:

“Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o destino pra lá…”

O que sei dizer é que foram necessários mais de setenta anos para que eu pudesse enxergar essa trajetória como um percurso válido. Talvez, até mesmo vitorioso… Pudera! Afinal de contas, nós somos a ‘soma’ de todos os medos, muito mais do que a soma de todos os êxitos. E, convenhamos: tudo isso soa muito injusto, não acham? Porém, novamente Chico Buarque vem ao meu socorro justificar o percurso:

“A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / O quanto deixou de cumprir / Faz tempo que a gente cultiva / A mais linda roseira que há / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a roseira pra lá…”

Pois é. De um jeito ou de outro, o que fica de aprendizado é que todos nós precisamos dessas referências para podermos navegar em mares mais serenos. Contudo, também é verdade que o timão desse barco deve estar sempre em nossas mãos. Mãos calejadas pelo tempo, por certo. Mãos que buscam dias melhores. Até conseguir. E assim, iremos celebrar com orgulho o verso final da canção: “Roda mundo, roda-gigante / Rodamoinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração…”

(Nas fotos, temos visões que atestam que meu coração vem pulsando desde os 5 anos. E continua, ainda mais, aos 74!)

O GRANDE ‘SENHOR’ DO MEU TEMPO

Nem seria necessário evocar os versos de Caetano: “És um senhor tão bonito / Quanto a cara do meu filho / Tempo, tempo, tempo, tempo / Vou te fazer um pedido / Tempo, tempo, tempo, tempo / Compositor de destinos / Tambor de todos os ritmos / Tempo, tempo, tempo, tempo / Entro num acordo contigo / Tempo, tempo, tempo, tempo…”

Ah, minha gente, ao lembrar desses versos, eu percebo o quanto eles desencadeiam em mim o desejo de celebrar os 74 anos de vida!

E agora, que eu estou bem próximo dessa data, eu fico a pensar sobre o que fiz e o que deixei de fazer nesse longo percurso. Para início de conversa, é bom que se diga, pouco mais de 1% da população masculina do Estado do Ceará atinge os setenta anos de idade. Convenhamos: em pleno século 21, é uma triste realidade! Apesar disso, não posso negar a imensa alegria que sinto por ter chegado até aqui. Sem dúvida, é um privilégio que a vida me concedeu, ainda que eu lamente a má sorte de outros conterrâneos.

Na verdade, foram muitos os caminhos que o destino me ofereceu. Como consequência, inúmeros ‘atalhos’ que eu tive que desvendar. Agora, eu reconheço que não é uma tarefa fácil escolher os caminhos para trilhar. Lá, isso não! Isto porque a chance de cometermos erros de avaliação, decerto, é assustadora. Muitas vezes, é algo que nos paralisa…

Quando eu era menino, lembro que diversas vezes eu me perguntei: qual será o meu papel nesse mundão de Deus? E qual será o seu, amigo leitor? Céus… pelo visto, todos nós temos que pagar o irremediável pedágio para descobrir. E mais ainda: de um jeito ou de outro, nós temos que seguir em frente. Com ou sem medo. Com ou sem angústia. Nada disso impede, à medida que a própria vida vai nos dando coragem. E ao nos empurrar pelos becos e esquinas do mundo, ela acaba nos dando a chance de aprender a ‘soletrar o mundo’ de forma adequada.

“Ouve bem o que eu te digo / Tempo, tempo, tempo, tempo / Peço-te o prazer legítimo / E o movimento preciso / Tempo, tempo, tempo, tempo / Quando o tempo for propício / Tempo, tempo, tempo, tempo / De modo que o meu espírito / Ganhe um brilho definido / Tempo, tempo, tempo, tempo / E eu espalhe benefícios…”

O que eu posso dizer é que a vida tem me propiciado descobertas extraordinárias, dessas que nos dão a certeza de que vale a pena ‘pelejar’. Com sorte, nós descobrimos os parceiros certos para cada percurso e com eles firmamos interessantes pactos. Ah! Eis aí a grande beleza dessa vida. E no meu caso, posso assegurar, foram os amigos, a esposa e o filho que atestaram essa minha percepção. Sem eles, confesso: pouco coisa eu teria para comemorar nesse marco divisório da velhice…

“Ainda assim acredito / Ser possível reunirmo-nos / Tempo, tempo, tempo, tempo / Num outro nível de vínculo / Tempo, tempo, tempo, tempo / Portanto peço-te aquilo / E te ofereço elogios / Tempo, tempo, tempo, tempo / Nas rimas do meu estilo…”

Caetano parece compreender a grandeza dessa vida e do que ela é capaz de nos ofertar. Para muitos, o importante é ser bem-sucedido. Para outros, o que mais importa é a extasiante ‘troca’ que as relações permitem, saciando os corações. E não considero aqui a eterna dicotomia entre o bem e o mal ou a vida e morte. Não! Até porque, nesse momento da vida, eu não sei dizer o que nos cura, meus amigos. Tampouco o que nos mata. No entanto, ao longo desses 70 anos, o que venho percebendo é que há muitas outras riquezas interessantes. É tão somente uma questão de escolha, ainda que ela seja individual e particular. Sempre. Eu fiz as minhas e me sinto feliz com elas. E vocês?!

(Imagem: o velho e majestoso “Baobá” africano)

OS ESPELHOS DE CADA UM

Ah, minha gente, eu só posso dizer que já faz muito tempo, sim, foi muito antes de eu nascer. E foi Cecília Meireles que escreveu o antológico poema “Retrato”. Nele, a fabulosa Cecília derrama toda sua indignação contra o implacável ‘esmeril’ do tempo. Vale a pena lembrar:

“Eu não tinha este rosto de hoje,

Assim calmo, assim triste, assim magro,

Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração

Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

Tão simples, tão certa, tão fácil:

— Em que espelho ficou perdida

a minha face?”

Acredito que esses versos me vieram à lembrança quem sabe por estar próximo ao aniversário de 74 anos? Além disso, é fato que eu estou experimentando as primeiras dores narradas no extraordinário poema. Vai saber? O que sei é que as pernas já não são as mesmas de outrora e reclamam o tempo de serviço prestado. Do mesmo modo, a visão já não consegue descortinar aquelas paisagens que em outros tempos eu me deliciava em apreciar. Pois é. Talvez, alguém venha em meu socorro para dizer que “esse processo é natural e não pode ser evitado, Carlos”. Tudo bem, eu sei disso. Mas, ainda assim, não me sinto confortado, meus amigos.

Apenas para ilustrar, lembro que na tardinha de ontem, eu saí para comprar materiais de construção para a reforma do banheiro. E na volta para casa, ao fazer uso da Via Expressa, com seu movimentado trânsito, eu me dei conta de que não estou enxergando bem e tenho dificuldades em fixar a visão no veículo da frente. Por ser portador de glaucoma e pingar cinco gotas diárias de colírios há mais de quinze anos, eu percebo que meus olhos estão exauridos de tanta química. Chego a acreditar que os meus dias de condutor de automóvel estão se encerrando. Afinal, não quero correr riscos desnecessários e nem provocar acidentes!

Por outro lado, também é verdade que a ‘maior idade’ me trouxe coisas preciosas. Como a capacidade de deixar as emoções fluírem mais intensamente em meu coração. Sim! Isto porque, quando se é jovem, parece que colocamos uma enorme barreira à nossa frente. De tal maneira, que o direito de viver as emoções fica quase interditado…

No entanto, não estou aqui a lamentar o meu destino. Muito ao contrário, sinto-me um privilegiado nessa vida. E tenho procurado ‘zelar’ pela minha trajetória fazendo o que está a meu alcance. Boa alimentação. Exercícios diários na academia de ginástica. E aproveitar, ao máximo, as vantagens da bendita aposentadoria: viagens, bons livros, filmes e amigos ao redor.

O resto… bem… o resto é com aquele senhor lá de cima. Digo isso porque se o meu pai chegou a completar 100 anos de vida, quem sabe a genética possa fornecer aquela preciosa ‘ajudinha’?!

( Imagem: a inesquecível Corfú, na Grécia )

“O QUE FOI FEITO DA VIDA?”

Ah, meus amigos, já faz mais de quarenta anos que eu ouvi essa pergunta, na emocionante interpretação de Elis Regina e Milton Nascimento:

“O que foi feito, amigo, / de tudo que a gente sonhou? / O que foi feito da vida, / o que foi feito do amor? / Quisera encontrar aquele verso menino / que escrevi há tantos anos atrás. / Falo assim sem saudade, / falo assim por saber…”

Pois agora. Não é que eu estava fazendo a caminhada matinal na Beira-mar de São José e, de repente, esses versos tomaram meu coração?! Emocionado, eu continuei os meus passos observando o mar e deixando os versos ecoarem dentro de mim. Isto porque, havia uma dúvida presente: que respostas eu teria hoje para esses versos? E quais sonhos eu deixei de realizar?

Enquanto tomava fôlego para responder a essas questões, eu acariciei a mão de minha esposa. Com um leve sorriso, agradeci ao bem que ela me faz. Seja pela forte parceria e cumplicidade, seja pelo desejo de estar sempre ao seu lado. Afinal, com ela eu tenho vivido as melhores passagens na minha vida!

“Falo assim sem tristeza, / Falo por acreditar / Que é cobrando o que fomos / Que nós iremos crescer / Nós iremos crescer.”

Novamente os versos da melodia invadiram os pensamentos. Então, eu olhei para o mar e me lembrei do menino que fui outrora. Lembrei dos sonhos da infância, das manhãs ensolaradas soltando pipas, subindo em muros e correndo pela ladeira da rua Zamenhof, no velho Estácio. Ah, o que foi feito daquele menino inquieto e sonhador? Em que esquinas do mundo ele extraviou os melhores sonhos?

Certo mesmo é que o processo de envelhecimento é difícil demais, minha gente. Muitas vezes, é até doloroso. Porquanto ele não perdoa aqueles que renunciam aos sonhos e, com isso, acabam empilhando velhos desejos na memória distante. Mas, fazer o quê?!

Para muitos, o jeito é tocar a vida em frente, sem olhar para outras direções. Procurando se agarrar com unhas afiadas aos lampejos de felicidade, que teimosamente insistem em desgarrar… Assim, com sorte, nós poderemos descobrir outras formas de sonhar. E quem sabe esses sonhos consigam, então, redimir os enganos cometidos no percurso?!

Embevecido pela bela caminhada, eu lembrei também dos versos do poeta Mário Quintana, a “Casa Grande”:

“…eu queria ter nascido numa dessas casas de meia-água. / Com o telhado descendo logo após as fachadas / só de porta e janela / …Porém, nasci em um solar de leões. (… escadarias, corredores, sótãos, porões, tudo isso…) / Não pude ser um menino da rua… / Aliás, a casa me assustava mais do que o mundo, lá fora. / A casa era maior do que o mundo! / E até hoje – mesmo depois que destruíram a casa grande – / até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos…”

Nesse momento, a caminhada de ida terminou. Daí, fizemos a volta, tendo agora o sol em nossas costas. Aliás, foi sentindo aquele agradável calor no corpo que eu saudei os versos finais de Fernando Brant e Milton Nascimento:

“Outros outubros virão / Outras manhãs, / plenas de sol e de luz. / Alertem todos alarmas / que o homem que eu era voltou…”

Por fim, ao relembrar essa sucessão de versos, eu compreendi que é preciso confiar na vida. Sim! Confiar nas belezas esparramadas pelo mundo. Simplesmente confiar…

Então, que assim seja!

AS HERANÇAS COMPARTILHADAS

Lembro que em 2001 eu ainda era fumante. Céus! Que maldição foi aquela?! E morava na bela Lagoa da Conceição, aqui em Florianópolis. Por sinal, tinham completados quatro anos que eu havia me mudado do Rio de Janeiro para essa ilha paradisíaca. Na bagagem, reconheço, além de muitas dores pelo fim do casamento, eu carregava também fortes esperanças em me redimir. Sim, no fundo, a gente sempre imagina que os caminhos serão alvissareiros e que atravessaremos todos eles com serenidade e galhardia.

Não é que passados dois anos, sem querer, eu encontrei o grande amor da minha vida?! E com ela pretendo viver o resto dos meus dias. Ah, não sem antes trazer ao mundo um lindo e desejado filho. O filho que tanta falta me fez nos dois casamentos anteriores. Pois é. O amor, pelo visto, resolveu me oferecer uma terceira chance e me presenteou com a chegada de Gabriel, ainda que eu não atinasse para o que isso representaria em minha vida. Somente aos poucos eu fui percebendo que aquela criança iria mudar o mundo. Ao menos, o meu mundo!

Logo de cara, ele me fez parar de fumar. Pudera! Afinal, era perceptível que se eu quisesse acompanhar a vidinha dele por um longo tempo, por certo, não conseguiria sendo fumante. O que eu não sabia era que a força do amor por um filho fosse capaz de retirar de mim tamanho apego tabagista. Representou o primeiro sinal de uma nova vida…

O diabo é que a gente não recebe da cegonha o ‘manual de instruções’. Daí, então, apanha um bocado na criação dos filhos. Paciência. Mas, se por um lado a gente comete uma infinidade de enganos na educação deles, por outro, vale a pena deixar aflorar os sentimentos escondidos nos escaninhos da paternidade. Isso porque, a eterna luta entre o ‘discurso’ e ‘prática’ acabam encontrando as soluções para cada embate.

De fato, eu acredito que errei bem mais do que acertei na educação do Gabriel. É algo que eu consigo perceber agora. Contudo, também percebo que a natureza humana é generosa o suficiente para ‘perdoar’ os deslises cometidos. Tanto é verdade, que hoje em dia, no auge dos seus 20 anos de idade, constato que ele se tornou uma criatura muito interessante. Dessas que dão orgulho em participar na trajetória dele. Aliás, um velho amigo, certa vez me sentenciou: “os filhos não são nossos, Carlos. São do mundo! E não há muito o que fazer por eles. Basta apenas não atrapalhar o caminho escolhido…”

Sendo assim, meus amigos, de um jeito ou de outro, acertando aqui e errando acolá, o que eu posso dizer é que Ednardo tinha lá muita razão. Afinal de contas, na peleja dessa vida, Gabriel precisará encontrar os parceiros certos para as empreitadas. Assim como necessitará aprender como estabelecer com a vida boas relações de confiança e conduzir o seu valioso destino. Aí, quem sabe, ele possa declarar o seu amor à vida, tão bem anunciado por Ednardo: “Não temas, minha donzela / Nossa sorte nessa guerra / Eles são muitos / Mas não podem voar…”

Gabriel, aos 6 meses de idade.

Na festa junina da Escola Autonomia, aos 7 anos.

Gabriel conosco em Paris, em 2019.

UMA ESPIADINHA EM ‘GODOT’


É atribuída a Arquimedes a declaração de que “Brincar é a condição fundamental para ser sério”. Isso, porém, não mudaria a certeza de que suas teorias sobre o “Centro de Gravidade” e a “Lei da Alavanca”, de fato, mudaram o mundo. Lá, isso é verdade!

No entanto, é preciso reconhecer que muita água passou por debaixo dessa ponte. Depois dele, por sorte, muitos outros gênios surgiram. Como um tal de Samuel Beckett, que resolveu ‘ressignificar’ aquela declaração. Para tanto, ele criou uma extraordinária novela, escrita em francês, bem no final de 1949, intitulada “À espera de Godot”. Céus! O livro e a peça teatral vieram nos confirmar como os ‘jogos’ são capazes de revelar as criaturas. Sim, meus amigos! Porquanto eles podem até ser perigosos, subversivos ou mesmo ‘absurdos’, mas, ainda assim, de algum modo, os jogos também servem para dar sentido às conversas e as interações.

Certo mesmo é que Beckett fez parte do conhecido “Teatro do Absurdo”, que surgiu no contexto de pós Segunda Guerra Mundial. Época em que a humanidade estava envolta por um clima de destruição, de pessimismo e descrença. Não somente descrença nos Homens. Mas, sobretudo, nas instituições, que não foram capazes de evitar a guerra e o insano fratricídio. É pouco provável que esse estilo teatral tivesse nascido no contexto de qualquer movimento artístico ou escola de teatro. O que ocorreu, de fato, foi que os artistas simplesmente escreveram peças que vieram a ser catalogadas de “absurdas”. Além do mais, ficou claro que isso se deu por conta da ausência de sentido, da negação e recusa política da história, da religião e da sociedade como elementos unificadores. Afinal, ao redor, tudo era fracasso, tudo era absurdo… Foram tempos difíceis, minha gente!

Pode-se até dizer que “À espera de Godot” representava o caos e as problemáticas existencialistas associadas às condições humanas de vida. Afinal, o belíssimo texto reflete, também, a quebra dos códigos linguísticos, que resultam numa incapacidade de transmitir ideias coerentes. Aliás, como pano de fundo, o tempo e o espaço são frequentemente incoerentes. Ou indefinidos. E o que resta, desafortunadamente, é apenas a solidão e o abandono como ‘alternativas’ para suprir a lógica do pensamento. Assim, tudo se torna confuso e esclarecedor. Ao mesmo tempo. Onde a esperança e a negação desenham os antagônicos vieses de qualquer discurso. Ou de qualquer sentimento. Em qualquer sociedade!

Por sinal, não foi à toa que eu peguei o livro para reler. Talvez, quem sabe, eu até acreditei que tivesse sido “por acaso”. Porém, o nosso prezado Doutor Freud, com um desconfiado sorriso estampado nos lábios, diria: “qual o quê, Carlos, nada é casual”! Isto porque, estando eu às vésperas de um grande desafio, já dei início ao processo de negar a indesejada presença de qualquer ‘sinistro’ em meu corpo. Do mesmo modo, as esperanças afloraram de modo incontido e sorrateiramente me conduzem para o labirinto criado por Godot. O jeito, então, é deixar tudo por conta de Vladimir e de Estragon. Eles se entendem!

O que sei é que de um jeito ou de outro não custa nada pedir ajuda aos céus. Para tanto, faço coro com o conterrâneo Ednardo – enquanto ele “engoma a calça” -, pois não me custa cantar:

“Porque cantar parece com não morrer / É igual a não se esquecer / Que a vida é que tem razão..”


(Imagem da magistral peça de Samuel Beckett, “A Espera de Godot”)

TEMPOS DIFÍCEIS…

(A querida Fátima Guedes, responsável pela expiação a seguir)

Ao longo dessa vida, algumas vezes eu me perguntei se nasci no tempo e local corretos. Isso porque, ultimamente, eu tenho visto tantas coisas ruins. Dessas, que minam as nossas emoções e nos derrubam. E o pior é que elas penetram de tal modo, que se não adquirirmos a capacidade de drenar tais dores, ah, a coisa se complica.

Quando se é jovem, de fato, temos a ingênua crença de que ‘aquilo tudo’ passará rapidamente. Logo a seguir, percebemos que não é bem assim. Ao contrário disso, certos movimentos são permanentes e, quando muito, mudam apenas a forma ou protagonismo, já que a ação continua a mesma.

Ao acompanhar o desenvolvimento do meu filho Gabriel, com os seus 22 anos de idade, eu me dou conta de que ele necessitará de muita sorte. Sim! Sorte e bons espíritos celestiais para protegê-lo. E ficar torcendo para que as escolhas dele sejam assertivas e proveitosas.

É importante salientar que nunca fui uma criatura pessimista. Não. Sempre confiei no meu destino e no que eu poderia ajudar. Assim, mantive-me atento e disponível, para que os processos emocionais pudessem adquirir um melhor encaixe e ordenação afetiva. Para tanto, paguei um preço justo por essa busca, nos sete anos de tratamento analítico. E deixei por conta dos búzios do destino a condução dessa jornada.

Só que ainda assim, dói. Dói muito, minha gente. Basta observamos os caminhos que esse mundo moderno tem nos apontado. Por certo, são tantas insanidades cometidas em nome do poder, da mais-valia, e das vaidades e perversões praticadas pelos quatro cantos do mundo… Céus, chega a ser quase ‘estúpido’ me considerar humano. Afinal, de que humanidade nós estamos nos referindo?

A minha sorte, se isso é verdade, foi ter aceitado a literatura como parceira fiel e encantadora. Pois é ela que enfeitiça a minha visão ficcional e põe na roda outros componentes. Vejamos:

“Por engano, vingança ou cortesia / Tava lá morto e posto, um desregrado / Onze tiros fizeram a avaria / E o morto já tava conformado…”

Pois então. Fátima Guedes é a autora magistral dessa obra-prima. E foi Elis Regina que emprestou o seu talento ao interpretar tão bem essa narrativa impactante sobre a violência urbana e a banalização da morte.

Onze tiros e não sei porque tantos / Esses tempos não tão pra ninharia / Não fosse a vez daquele, um outro ia…”

Sobre o que e onde a letra dessa música está clamando? Qualquer lugar, creio. Em qualquer tempo. Que vai do asfalto do Rio de Janeiro aos confins da Palestina. Que passa ao lado da Ucrânia e resvala nas ruas da minha cidade natal, Fortaleza. Enfim, está em todos os cantos. Está em inúmeros discursos retóricos de líderes medíocres pelo mundo afora.

“Deus o livre morrer assassinado / Pro seu santo não era um qualquer um / Três dias num terreno abandonado / Ostentando onze fitas de Ogum.”

Ah, meu Padim Padi Ciço, socorra esse seu conterrâneo que hoje acordou ‘acometido de muitas dores’. Traga sossego ao meu espírito e ao meu coração. E, se não for pedir muito, meu Santo Padroeiro, benza os nossos conterrâneos e abra os caminhos para eles…

Eu peço desculpas aos leitores desavisados por essa ‘expiação’ quase involuntária. É que algumas vezes, confesso, eu necessito retirar essa ‘venda’ que muito nos cega!

Imagem da internet, Copacabana – Rio de Janeiro.

UMA ESTRANHA FOGUEIRA

Lembro que era um ensolarado domingo, dia 29 de março de 1964. Na época, eu tinha pouco mais de doze anos de idade, ainda sem ter a compreensão sobre algumas dores desse mundo.

Lembro também que o seu Amaral, do 707, acordou cedinho e rogava aos vizinhos do andar que ajudassem a levar os livros para a garagem. Mesmo sem entender o porquê da missão, eu desci e subi umas dez vezes carregando inúmeros livros. Inclusive eu cheguei a perguntar para a D. Anita, esposa do seu Amaral, qual era o motivo daquela frenética ação, sem obter uma resposta convincente. Ela apenas me acarinhava o rosto e pedia que acelerasse o transporte…

O mais surpreendente de tudo foi ver a fogueira na garagem do prédio, bem em frente a grande cisterna. Inicialmente, o fogo era lento e brando. Porém, aos poucos, ele foi assumindo uma intensidade assustadora, gerando alvoroço nas crianças que, ao mesmo tempo, gritavam e saudavam a fogueira. Afinal, fogueira é algo sempre cativante para uma criança, pois remete às festas de São João.

No entanto, havia muita tensão por parte dos adultos e não sabíamos o motivo. Percebíamos somente o misto de desespero e alívio vindos do seu Amaral. E em determinados momentos, eu fiquei reparando as expressões faciais dele. Por isso, notei que aquela queima era motivo de profunda tristeza, já que eu o flagrei chorando.

Orientados pelo seu Amaral, esse processo da queima dos livros mais parecia uma ‘cerimônia fúnebre’. E consumiu boa parte da manhã daquele dia. Por outro lado, também havia a necessidade de varrer e lavar a garagem após uma grande quantidade de livros queimados. Isso porque não podíamos deixar marcas no piso.

Só sei que ao efetuarmos a varredura do chão, em um dado momento, eu peguei uma capa de um livro ainda inteira. Era de um tal de “Vladimir Maiakóvski”, e pelo que percebi era um livro de poesia, intitulado “A nuvem de Calças” . Logo ao lado dessa capa havia outra página não queimada. Nela, então, eu pude ler:

“Se quiserem, serei apenas carne louca e, como o céu, mudarei de tom, / se quiserem, serei impecavelmente delicado, / não serei homem, mas uma nuvem de calças!”

Fiquei atônito com tanta beleza narrada naquele pequeno pedaço de papel. Pus-me a procurar outras páginas e encontrei somente mais uma em que estava escrito: 

“Querida!
Não te assustes que no meu costado de louco / haja sentadas mulheres de saias molhadas, / – é uma carga que levo comigo pela vida fora: / milhões de amores puros e enormes / e milhões de milhões de pequenos amores sujos. / Não temas que de novo caia na infidelidade habitual, / me atire a milhares de caras bonitas, / – as amantes de Maiakovski
são uma dinastia de rainhas entronizadas no coração de um louco.”

Bem, lá se foram muitas décadas até que eu pudesse entender o que de fato aconteceu naquela manhã. E por certo, até hoje eu me sinto solidário à dor que todos experimentaram naquela manhã. Em especial ao seu Amaral e sua esposa, moradores do velho Estácio da minha infância distante.

O que eu posso dizer a vocês, meus amigos, é que nem toda fogueira é motivo de comemoração, até mesmo para uma criança. Afinal, é preciso reconhecer que ‘aquilo que é queimado’ nunca mais se recupera… Nunca mais!

A HERANÇA DO ‘DESCONTENTAMENTO’

(Para a minha querida amiga Mi Vilela)

É certo que as nossas emoções são imprevisíveis. Quase sempre! E por vezes, elas sofrem ainda mais quando estamos diante de acontecimentos desconhecidos. Tudo bem. Pode ser que isso seja apenas uma autodefesa construída para tentar barrar os ‘perigos ou agressões’ externas. Vai saber?! No entanto, creio que em algum lugar da nossa alma se esconde aquele ‘diabinho’ que, sorrateiramente, fica fustigando o nosso espírito. E cobrando da gente um pouco mais de ousadia, de destemor…

Também é verdade que com o passar do tempo nós vamos adquirindo mais cautela e conservadorismo. Há quem considere que isso seja algo bom. Ou, nem tanto assim. É que se formos ouvir o tempo todo a voz da sensatez, no ouvido direito, ah, nós corremos o risco de ver a vida passar muito sem graça, não acham? Além disso, perderemos a capacidade auditiva do ouvido esquerdo.

O que posso dizer é que esse ‘intrincado processo’ não é exclusividade de ninguém. Eu mesmo não me sinto confortável com essas artimanhas. Até porque, ao que tudo indica, essa parece ser a grande peleja da vida, não acham?! Assim sendo, cabe a cada criatura o direito do entendimento e a capacidade de como lidar com essas questões. Bem como o direito de fazer escolhas, sejam elas certas ou erradas. Afinal, de um jeito ou de outro, a vida acaba nos conduzindo e nos ensinando. E vai, também, dando a cada criatura a coragem necessária para enfrentar os desafios. Pois é. O nosso Riobaldo, do Guimarães Rosa, foi um que nos alertou com sabedoria: “…O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

Chico Buarque foi outro que deixou um contundente testemunho: “Arrisquei muita braçada / Na esperança de outro mar / Hoje sou carta marcada / Hoje sou jogo de azar.” E agora, minha gente, onde está a saída?! Ah, eu não sei dizer. Sei apenas que a roda da vida não costuma esperar por ninguém. E nem mesmo aceita que a gente queira ganhar tempo para entender o processo.

Céus! Pelo visto, tudo tem que ser resolvido da melhor maneira que puder. Ou como conseguir. Feito aquele sujeito que ‘vende o almoço que é para pagar o jantar”. Sim! De novo, vem a lembrança da sentença de Riobaldo: “O que a vida quer da gente é coragem!”

Agora, confesso a vocês: toda essa digressão veio por conta da emoção que experimentei ao ver a exposição de fotografia do mestre Bruno Neves. Foi montada na inconfundível Estação Central de São Bento, na cidade do Porto, em terras portuguesas. Aliás, a exposição, intitulada como “As crianças da minha Sé”, foi amparada em um conjunto de fotografias maravilhosas. Eram imagens de crianças brincando nas ruas do Porto, na década de 1970. Segundo o texto no cartaz de apresentação, com o forte título de “A Cidade do Descontentamento”, o fotógrafo Bruno conseguiu captar nas lentes de sua câmera todo o espectro da marginalidade que circundava aquelas crianças. Eram semblantes pobres e sofridos, ainda que não demonstrassem dor. Pois somente as crianças são capazes de escapar das garras da ingrata realidade. Indiferentes, elas conseguem brincar e partilhar o espaço comum. E conseguem até mesmo extrair prazer com suas bolas de futebol de pano, seus improvisados carinhos de madeira e toda sorte de brinquedos que a imaginação infantil pode produzir.

E eu, como um observador envelhecido pelo tempo, e com a infância já distante o suficiente, acabei me comovendo com aquelas belíssimas imagens. Como consequência, reconheço, aquelas fotos foram capazes de retirar a mordaça que o tempo colocou em mim. E nem mesmo o meu velho e conhecido ‘Canelau’ foi capaz de impedir…