RECADOS DE LÁ E DE CÁ…

Tem dias que a gente acorda mais sensível e a nossa antena parabólica parece captar ‘sinais’ vindos de longínquos lugares, aonde a nossa razão não alcança. Sim, meus amigos! Quando isso acontece, confesso, eu prefiro ficar recolhido, silencioso, ruminando sobre as etapas dessa vida. Nessas horas, eu chego a ter a sensação de que estou recebendo ‘recados’. Vindos de muitas partes e lugares…

Verdade é que eu não sei dizer como isso se desdobra com outras pessoas. Sei apenas que aprendi a respeitar isso em mim. E desde cedo, percebi que não devia me cobrar ‘lógica’, razão ou que quer que seja frente a essas manifestações. Afinal, sentir essas emoções não me faz melhor nem pior do que ninguém. Por isso, eu apenas deixo que elas me conduzam por outros mares, talvez, nunca dantes navegados por mim. Quem sabe alguma surpresa possa surgir? Quem sabe eu consiga enxergar àquilo que a minha razão não descortinou?!

Lembro até que foi por intermédio do Seu Rodrigo, velho amigo da minha infância, que eu experimentei as primeiras sensações ‘sem explicações’. Na época, eu tinha pouco mais de 14 anos de idade e não compreendia o que tudo aquilo representava. Percebia, ao menos, que muitas coisas não tinham explicação. Simplesmente, aconteciam…

Tempos depois, já adulto formado e bastante ‘racional’, eu comecei a travar uma ‘peleja’ que nunca mais findou. Foi quando eu iniciei a minha terapia, em busca das minhas identidades extraviadas, dos sentimentos desarrumados e da carga que havia herdado ou adquirido indevidamente. Pois é, meus amigos. Como tantas outras criaturas, eu também tive sonhos que não sei se existiram. Acreditei em histórias que talvez não tenham acontecido. É o tal negócio: o legado de cada um tem lá muitas verdades e, infelizmente, algumas mentiras. São histórias que vão sendo construídas e emaranhadas nas esquinas do mundo. O nosso querido Djavan foi um que percebeu isso. E ele expressou numa belíssima canção a terrível dúvida que está embutida em alguns de nós: “Só eu sei das esquinas que passei… Só eu sei! / Sabe lá, o que é não ter e ter que ter pra dar? / Sabe lá, o que é morrer de sede em frente ao mar?!”

No curso da vida, podemos observar que muitas pessoas optam pelo silêncio. Outras tantas, preferem acolher o cinismo. Mas a grande maioria, por certo, fica por conta da ignorância. Lamentavelmente. São criaturas que jamais vasculharão a “caixa-preta” em busca das verdades…  No entanto, devo reconhecer: eu não sei o que é melhor. Tampouco estou aqui a fazer julgamento de valor. No fundo, são questões muito individuais e que só a criatura envolvida pode responder, isso sim! E se eu trago estas reflexões à baila, creiam-me, é tão somente porque elas estão a ‘vazar do copo’ e encontro em cada um de vocês a solidariedade tácita. Afinal, todos nós somos vítimas de diferentes verdades e mentiras, não acham?!

O que sei dizer é que ontem à tarde eu estava procurando por uma foto antiga e, sem querer, acabei pegando uma pasta de documentos sobre a carreira artística da minha querida mãe, Jarina Menezes, falecida em 2005. Quando percebi que não era a pasta que eu queria, empurrei de volta para cima do armário. De repente, dois papéis caíram lá de cima. Então, desci para pegar e, para minha surpresa, eram duas gravuras pintadas por ela: uma de 1985 e a outra de 2002. Fiquei por um tempo admirando a qualidade dos desenhos, feitos de aquarela e bico de pena. Lindos! Foi quando percebi que em um deles, o mais antigo, tinha um recado dela para mim, escrito em dezembro de 1985. Era um lindo e comovente bilhete, em que anunciava que não iria passar o Natal conosco no Rio de Janeiro, uma vez que ela já morava na Lagoa da Conceição, em Florianópolis.

O bilhete estava carregado de carinho e amor aos filhos, algo que sempre nos acompanhou em sua passagem aqui neste plano. Ah, minha querida mãe, quantas saudades eu sinto de você. Sempre!

O FIO DA NAVALHA

Todos os sábados da minha infância, chovesse ou fizesse sol, por volta das oito horas da manhã, lá estaria a figura do seu Rivadavia em nossa casa. Ele era o barbeiro do meu pai e, de quebra, cortava o nosso cabelo. O meu cabelo não escapava de jeito nenhum, ainda que eu tentasse fingir que estava dormindo. Qual nada! Só escutava a voz firme do meu pai abrindo a porta do quarto e anunciando: “Chau, levante dessa cama e venha cortar o cabelo, que seu Rivadavia já chegou!”

Céus! Eu tinha pouco mais de dez anos de idade e odiava ouvir a expressão, “Príncipe de Gales”, que era o nome dado ao corte de cabelo nos anos 60. Eu nem sabia que ‘príncipe’ era obrigado a cortar o cabelo todos os sábados… Mas eu era!! E escutar o barulhinho daquela máquina infernal – “zzzuuuummmm”, “zzzuuuummmm” – era quase uma sentença de morte, meus amigos. Afinal, ela decretava o fim da minha vaidade e o desejo de me sentir como meus colegas “cabeludos’. Foram precisos muitos anos para que Antônio Belchior expressasse a dor que eu sentia numa belíssima canção: “Já faz tempo eu vi você na rua / Cabelo ao vento / Gente jovem reunida / Na parede da memória / Essa lembrança / É o quadro que dói mais…”

Sim ! A verdade é que chorava todos os sábados de minha infância. Chorava apenas por dentro, tudo bem, pois não tinha coragem de reclamar pra fora. Talvez, tivesse sido melhor para as minhas emoções. Paciência!

Tempos depois, já adolescente, eu fui conhecer outras ‘navalhas’, minha gente. Por certo, elas eram bem mais afiadas e perigosas que a do seu Rivadavia. E uma delas, eu conheci lá no Café Palheta, ponto de encontro para tomarmos um sorvete, o desejado “sundae”. Lembro até que isso era programa certo, aos domingos, ir ao cinema na Praça Saens Peña, na velha Tijuca do Rio de Janeiro. Quando saíamos do cinema, eu, Luiz Henrique e Edinho corríamos para pegar um bom assento no disputado “Café Palheta”.

No entanto, se na parte da frente ficava a sorveteria e o espaço para o café, na parte traseira ficava a salão de sinuca. Era palco de campeonatos e exibições, embora muitos “malandros” ficassem ali à espreita de um ‘otário’ para arrancar algum dinheirinho numa disputa. A técnica deles era quase infalível. Acertados os ponteiros de quantas partidas seriam jogadas, o ‘malandro, invariavelmente perdia a primeira e até a segunda peleja para dar o ‘gostinho’ de vitória ao oponente. A partir daí, surgia o ‘craque’ da sinuca e faturava a competição, extraindo o dinheirinho da pobre vítima.

É bem verdade que de vez em quando havia um ‘arranca-rabo’ dos diabos, o que acabava em briga e pancadaria generalizada. E foi numa dessas vezes que eu assisti a mais marcante briga. É que o ‘malandro da vez’ estava em apuros, apanhando fortemente da vítima do jogo. Só que sei que, de repente, um grande suspiro ecoou no salão. Foi quando o malandro puxou do bolso a navalha. Meu Deus, ela brilhava até no escuro, meus amigos. “Vumm, vumm, vumm… e a lâmina atingiu a bochecha do rapaz, espalhando sangue para todos os lados. Apavorado com a cena, eu saí correndo e peguei o primeiro bonde que descia para o Estácio. Horas depois, chegaram Luiz Henrique e Edinho. Pálidos. Ainda com semblante de apavorados. Edinho contou que não viu mais nada direito, em face do tumulto que se estabeleceu. Já Luiz Henrique, que tinha ‘sangue frio’, foi quem narrou para a turma da Zamenhof os detalhes da briga…

O que sei dizer é que todas as vezes que eu via o seu Rivadavia passar por nós, ah!, confesso: eu o cumprimentava com muita cerimônia e ‘gentileza’. Vai saber, né?!

A GRANDE NOTÍCIA!

O dia de hoje começou com uma notícia maravilhosa: a aprovação do nosso filho Gabriel, no Curso de Produção Multimídia, no Instituto Federal de Santa Catarina. Parabéns, filho. Sentimos muito orgulho de você!!

1966 E OS BALDES DE ÁGUA

Já faz um bom tempinho, eu sei. Mesmo assim, devo dizer, são poucos os que se lembram do que aconteceu naquele incontrolável ano e as suas consequências. E como hoje eu acordei com o espírito nostálgico, meus amigos, tirei alguns minutos para relembrar aquela época. Vejamos, então:

No âmbito musical brasileiro, nós tivemos a ocorrência de grandes revelações. Elis Regina lançaria o LP “Elis” e nele nós podíamos ouvir e nos deliciar com verdadeiras pérolas, como o “Sonho de Maria”, do Marcos Valle.

O ‘rebelde sem causas’, Roberto Carlos, no auge da sua “Jovem Guarda”, brandia para todos em verso e prosa o “Quero que vá tudo para o inferno”. Céus, foram necessárias algumas décadas para ele se arrepender e passar a se comportar como anjo. Inferno? Nunca mais!

Ao mesmo tempo, convocado por Mao Tse Tung, veio o sonho da sua “Revolução Cultural”, por meio da enorme mobilização da juventude chinesa, ao criar os “Guardas vermelhos”. Enquanto isso, aqui no Brasil, Geraldo Vandré esquentava os festivais com a bela e icônica “Disparada”, na voz de Jair Rodrigues. Meu Deus do Céu, foi um verdadeiro hino:

“Prepare o seu coração / pras coisas que eu vou contar / Eu venho lá do sertão, / eu venho lá do sertão / Eu venho lá do sertão / e posso não lhe agradar…”  e  logo a seguir, ele arremata: “Aprendi a dizer não, / ver a morte sem chorar / E a morte, o destino, tudo, / a morte e o destino, tudo / Estava fora do lugar, eu vivo pra consertar…”

Nos jardins da rainha-mãe, a mocidade preferia se deliciar com os jovens “Beatles” cantando suavemente a linda canção “Yesterday”. Afinal, se “Ontem / Todos os meus problemas pareciam tão distantes / Agora parece que eles vieram pra ficar / Oh, eu acredito / No passado…”

Ainda nas terras inglesas, nós tivemos outra tragédia nacional: o ‘fiasco’ da seleção de futebol que, sentada no sucesso de 1958 e 1962, achou que não precisava se preparar, pois ‘no final a gente sempre ganha’…

Na literatura, aqui no Brasil, a bola da vez era ‘Stanislaw Ponte Preta’, o “alter ego” de Sérgio Porto. Ao criar o maravilhoso “Febeapá – Festival de besteiras que assola o país”, ele deu asas à imaginação. De quebra, nós descobrimos que podíamos rir de nós mesmos. Sem culpas ou remorsos.

Outro sucesso estrondoso, veio pelas delicadas mãos de Cora Coralina, no seu livro “Poemas dos becos de Goiás e outras estórias mais”. Aos 75 anos de idade, Cora Coralina nos acolhia com lirismo e simplicidade, apontando as possíveis saídas.

No entanto, o que sei dizer é que aquela segunda-feira, dia 10 de janeiro de 1966, eu nunca mais vou esquecer. Pudera, minha gente! No Edifício Esperanto, na velha Zamenhoff, nós fomos acordados na madrugada pelos avisos para descermos. Segundo o alarme, devíamos ir para a garagem do prédio. E, com a ajuda de baldes, retirarmos o excesso de água da chuva, uma vez que havia o risco de inundar o subsolo, impedindo o funcionamento do elevador.

A verdade é que eu tinha pouco mais de quatorze anos e, confesso, senti bastante medo da situação. Talvez, por conta da inocência, ainda presente, as aflições adquiriram cores mais dramáticas e ameaçadoras. Então, foi preciso depurar esses medos e isso demandou tempo. Muito tempo!

No fundo, é aquele velho ditado: “O que não tem remédio, remediado está.”

OS “JARDIM BRAGA’ E EU

Ontem, a minha amiga Celina reclamou que nos meus escritos os Braga nunca apareceram em qualquer história. De alguma forma, isso apontava para certa ingratidão de minha parte, por conta da antiga amizade que sempre nos uniu.

Pois é, minha gente. Confesso que, inicialmente, eu refutei a argumentação dela, uma vez que guardo muito carinho pela família Braga. No entanto, ao meditar sobre a questão, eu acabei acolhendo a ‘denúncia’, porquanto percebi que a queixa de Celina, de fato, possuía procedência. Deixe-me explicar.

Nós estávamos nos anos sessenta, por volta de 1965 ou 1966, e Celina era minha colega de sala de aula, no curso ginasial. O que posso dizer é que o nosso encontro ‘espiritual’ ocorreu de modo espontâneo, talvez, movido pelas conversas sobre as paixões amorosas vividas por cada um. As nossas longas conversas ao telefone mais pareciam um verdadeiro ‘consultório sentimental’. E o certo é que isso nos uniu tremendamente, vindo daí uma forte ligação, além da confiança mútua.

Até que veio o convite para conhecer a grande família: o lado Jardim e o lado Braga. É bem verdade que os primeiros a serem apresentados foram os pais de Celina, seu Zé Orlando e Dona Maria. O seu Zé, por certo, merece um lugar de destaque em meu coração, que narrarei mais adiante. Depois dos pais, vieram os irmãos, Álvaro, que acabou se tornando mais tarde o meu melhor amigo, e o Orlando, que era muito pequeno na época. Havia também os avós maternos de Celina: a doce e querida Dona Celina Jardim e o seu esposo, o sisudo do seu Newton.

A família Jardim Braga possuía uma casinha de praia em um balneário que ficava perto do Rio de Janeiro, na Estrada Rio-Santos: a calma Praia Grande. Era uma casinha bem pequena para o tamanho daquela família. Por isso, logo após a minha primeira ida para um fim de semana, surgiu neles o desejo de reformar e ampliar a casa. Céus, o resultado desse empreendimento foi fabuloso, originando uma casa de tirar o fôlego: linda e confortável.

Vale também dizer que eu participei ativamente dessa reforma, ajudando a carregar materiais, instalar a fiação elétrica, hidráulica e o que mais aparecesse pela frente. Naquela família, ninguém se furtava de ‘pegar no pesado’. Lá, isso não!

Por sinal, eu acredito que, de algum modo, esta participação foi responsável em criar elos ainda mais fortes com os “Jardim-Braga”. Como resultado, eles se tornaram a minha segunda família!

Hoje, ao me recordar deles, eu peço licença para resgatar a extraordinária figura do seu Zé Orlando. E se digo isso, é porque ele teve muita importância em minha vida. Seu Zé exerceu papel crucial em diversos momentos. Lembro bastante que as nossas conversas, intermináveis, eram regadas por inúmeras cervejas geladas. E além do mais, devo reconhecer que o seu Zé foi a primeira criatura que me ensinou a externar as emoções. Sem medos ou remorsos. Afinal, ele era uma pessoa extremamente sensível e sentimental. Vê-lo chorar ao contar causos e episódios se tornou algo marcante para mim. Aliás, foi somente ali, meus amigos, que eu descobri que ‘homem também chora”…

Com essas lembranças, eu aproveito para deixar registrado aqui o meu reconhecimento e a minha gratidão a toda família Jardim Braga!

A bela casa de Praia Grande que, guardadas as proporções, representou a minha “Macondo”…
Eu e o meu querido amigo “Zé Orlando”, em mais uma das maravilhosas conversas
que tivemos ao longo da vida. Abençoado seja!

HISTÓRIAS NÃO CONTADAS

Nem bem ele terminou a palestra que veio dar no SESC-Cacupé, aqui de Florianópolis, em agosto de 2013, já se via a longa fila de admiradores para os cumprimentos e autógrafos. E Ariano, sempre paciente, atendeu a todos com a habitual gentileza nordestina. Além do tímido sorriso, ele fazia questão de agradecer a presença na palestra. Isso rendeu mais de uma hora e a fome já batia fundo nele, tenho certeza. Saímos dali e fomos para a minha casa no Rio Vermelho, que é um bairro quase rural, distante mais de 30 km do centro da cidade. Ao entrarmos na garagem, minha esposa veio abrir a porta do carro para Ariano e o abraçou com extrema alegria. Anunciou que o almoço sairia em cinco minutos e que bastaria que lavassem as mãos e se sentassem na sala de jantar.

Como eu previra, Ariano confirmou que adorava camarão. Assim, iria experimentar o bobó feito pela minha mulher. Céus! Eu nunca vi o homem tão feliz como naquele dia, meus amigos. E após o almoço, ele se refestelou na rede da sala e, aproveitando o silêncio, tirou uma ‘pestana’ de meia hora.

Ao acordar, passeou pelo jardim, observando as árvores e o canto dos pássaros. Disse-me que não trocaria Recife por Florianópolis por dois motivos: primeiro pelo nome da cidade, que era indevido, pois homenageia um ‘cabra tirano’. E depois, por causa do frio que faz no sul, do qual foge feito ‘cão ressabiado’.

Fomos para a varanda da frente e nos acomodamos nas espreguiçadeiras. Eu, ele e minha mulher. Foi quando eu lembrei do ‘causo’ que contou na palestra. Segundo ele, toda cidade pequena que visita tem o ‘maluco-beleza’ bastante conhecido do povo. Numa dessas cidades, Ariano percebeu que havia um homem com o ouvido encostado na parede do muro. Vez por outra a criatura tirava e voltava a pôr o ouvido no muro. Foi quando o escritor se aproximou, sem nada dizer, e encostou também o ouvido no muro, na esperança de alguma ‘revelação’. Passados alguns instantes, virou-se para o cidadão e comentou: “não estou ouvindo nada!” Prontamente, o homem respondeu: “Pois é. Está assim desde ontem!”

Ele sorriu com a lembrança e declarou que sente uma enorme identificação com os doidos. Isso porque, tanto os doidos quanto os escritores veem o mundo por uma ótica original, particular. Ao ouvir o seu argumento, acabei concordando com ele. De fato, ambos experimentam sensações diferentes, mas com semelhante olhar alternativo.

Passamos algumas horas proseando a valer e eu nunca mais esquecerei o jeito dele, quando calmamente anunciou: “Carlos, meu amigo, não quero que se assuste… mas o seu filho Gabriel acaba de subir no telhado!”

Já acostumados a isso, eu e minha mulher demos uma longa gargalhada. É que já imaginávamos que o inquieto Gabriel pudesse ‘aprontar alguma’ para cima de Ariano Suassuna!

Pelo sim ou pelo não, eu posso imaginar que algum leitor desconfiado queira me indagar: “Ô, Carlos… isso tudo realmente aconteceu ou é conversa fiada?!”

E eu, minha gente, apenas respondo:- “Não sei. Só sei que foi assim!”

As Criaturas da Vida

Ontem, eu enviei uma foto para minha irmã mais velha, já que estamos há mais de um ano sem nos ver. E ela, com muita gentileza, me respondeu: “Carlinhos, o tempo tem sido generoso contigo. Novinho em folha!”

Pois é. Foi somente aí que eu me dei conta que a vida, de fato, tem sido bastante generosa comigo. Mas, não por causa da aparência, muito embora a genética esteja sendo ‘cúmplice’, aos quase 70 anos. Na verdade, a generosidade tem sido a ‘sorte grande’ de encontrar no caminho um sem-número de criaturas incríveis. Dessas que deixam marcas (ou retiram!) na alma da gente. Vem daí a minha gratidão a todos elas por esse ‘presente’ especial…

A FEIJOADA DO “PAIXÃO”

Há quem acredite que o sujeito mais inventivo desse mundo é o ‘pobre’. E que isso não se deve pelo talento inato e sim por conta da necessidade. Céus… Pode isso, Arnaldo?! Sei não. Talvez, por força das circunstâncias, desde cedo o pobre se vê obrigado a improvisar tudo na sua vida. E por conta disso, ele se torna capaz de desenvolver e até mesmo determinar o rumo das coisas… Mas, e agora, José?!

A bem da verdade, eu não estou convencido disso. No entanto, eu reconheço que tais aspectos são capazes de influir na trajetória de uma criatura. Isto porque, quando se nasce em berço ‘nada esplêndido’, convenhamos, a gente é obrigado a descobrir onde ficam os atalhos, não acham? E isso, de um jeito ou de outro, acaba desenvolvendo essa capacidade mais determinada, mais focada na realidade da vida. Lembro até que na minha infância, relativamente pobre, eu fui capaz de aprender certos ‘truques e artimanhas’, que para muitos colegas não tinham a menor importância. Hoje, sim, eu identifico as ‘vantagens’ que levei ao exercitar a minha criatividade para dar conta de situações. Lá, isso sim!

Aliás, foi no início da fase adulta que eu comecei a ver a cor do dinheiro. Eu tinha 22 anos de idade e havia me tornado professor de cursinho pré-vestibular. O meu primeiro salário, caramba, foi de dois mil cruzeiros. Podia não ser muito, mas, comparado aos outros professores do cursinho, um ‘pé-rapado’ como eu, caramba, parecia festa no arraial. E foi com esse dinheiro que eu comprei o primeiro carro… opa, melhor dizendo, o primeiro ‘fusca’.

Contudo, como um bom ‘retirante’ nordestino, a gente não perde a noção de humildade e tampouco ‘esbanja’ dinheiro à toa. Afinal, nunca se sabe o dia de amanhã, não é verdade? Quem sabe, por isso, eu passei a dar valor ao meu suado dinheirinho? Não aceitava ser passado para trás e nem cair no canto da sereia, sabe como é?

Foi quando eu descobri, perto de minha casa, um restaurante que praticava ‘preços módicos’. Sendo que, aos sábados, havia a tradicional feijoada, bem ao estilo mineiro. Daí, eu chamei o Carlinhos, meu xará, para vir almoçar comigo naquele restaurante. O combinado era que após a praia, iríamos comer a bendita feijoada, descansar um pedacinho e depois partirmos para o Maracanã para assistirmos ao grande Fla-Flu decisivo!

Dito e feito. Sentamos na única mesa disponível do restaurante, bem no canto. Conferimos o cardápio e, então, Carlinhos declarou: “Caracas, feijoada completa por ‘sete reais’! Não dá para acreditar, xará…”

Então, pedimos uma cerveja e os copos bem gelados. No entanto, os copos eram de geleia de mocotó e a cerveja não veio tão gelada assim. Paciência. O principal era comida, já que estávamos famintos. Carlinhos, bem animado, só falava do preço baixo. Foi quando chegaram as cumbucas e travessas: uma de arroz, uma de farofa, de couve e a de feijão.

– Porra, cadê a carne seca e o paio, perguntou Carlinhos.

– Por sete reais, convenhamos, dá para aceitar… respondi.

– E o torresmo, não tem também?!

– Oh, Carlinhos, o importante é o sabor… e a economia que faremos para ir ao Maraca, retruquei sem muita convicção.

– Mas está uma merda isso aqui, xará… O feijão é só caldo, não tem caroço, não tem linguiça, paio e o escambau… Além disso, esse garçom, o “Paixão”, é um cara de pau, isso sim!

Pois é. Só sei que saímos dali com a certeza de que tinha sido uma tremenda furada. E que somente o cachorro-quente do Maracanã poderia salvar a nossa persistente fome…

É tal negócio, meus amigos: você pode até deixar de ser pobre, mas a pobreza não sai de você! Fazer o quê?!

PS. O restaurante não era lá um primor… Mas está igualzinho!

“Galeto ao Primo Canto”

Foram muitas as pessoas que tiveram especial importância em minha infância e adolescência. De certo modo, isso comprova o quanto eu fui sortudo nessa vida, uma vez que outras criaturas não tiveram oportunidades semelhantes. Vem daí, talvez, o meu gosto por amizades sinceras, dessas que marcam a trajetória da gente. Amigos de verdade!

Orlando, o Cuca, foi um desses casos especiais, pois bem antes de se casar com minha irmã, ele já nutria simpatia por mim. Era um descendente de família italiana, calabreses de quatro costados. E pela tradição deles, meus amigos, ‘lealdade’ é algo irrenunciável, algo para se orgulhar feito uma condecoração de valor.

O mais interessante é que aquela família ‘calabresa’ era composta por muitos irmãos: quatro homens e uma mulher. E todos eles apresentavam como traço familiar o semblante carrancudo, herança do velho patriarca. Nessa época, eu tinha pouco mais de dez anos de idade e, devo reconhecer, morria de medo quando encontrava alguém daquela família pelo caminho. A exceção era Orlando, que era o caçula e o mais simpático da família. Orlando sempre me tratou com um carinho pra lá de especial. Quem sabe, ele já antevisse o grau de parentesco que teria comigo?!

O que sei dizer é que Orlando pertencia a uma família rica, muito rica mesmo para os padrões da época e do bairro. E os irmãos dele faziam questão de viver ‘abastadamente’, com carros de luxo, roupas caras e tudo aquilo que alguém como eu jamais teria acesso. Afinal, nossa família era de classe média baixa, embora meu pai tivesse um bom emprego. É que nós éramos oito: seis filhos e meu pai e minha mãe. Com isso, por melhor que fosse o emprego do pai, ainda assim, existiam muitas bocas para alimentar… Tempos difíceis!

Eu nunca soube avaliar se Orlando fazia questão de nos presentear com toda sorte de ‘mimos’ para compensar o nosso sufoco ou se por outro motivo. Pouco importa. O fato é que ele sempre nos pareceu sincero e autêntico. Além disso, ‘gato escaldado’ não renega peixe. Só que, no nosso caso, o ‘peixe’ era o galeto do “Cantinho Baiano”, que ficava ali na Rua Pareto, no coração da Tijuca. Meu Deus do Céu! Quando ele chegava lá em casa e nos convidava para comermos o tal do “Galeto ao Primo Canto”, ah! minha gente, era uma verdadeira festa. Ou melhor: um legítimo banquete para estômagos tão sedentos.

Ao me lembrar desses episódios, confesso: imediatamente, eu senti saudades do Orlando. Sim! Que criatura boa foi aquele sujeito. E o que eu posso assegurar é que Orlando deixou ‘gravado’ em minha memória afetiva esse ‘desejo’ de retribuir. Retribuir ao meu filho e ao meu neto o maravilhoso gosto pelos “presentes”, sejam eles quais forem. Algo para vestir ou comer. Algo para ler ou observar. O importante é que consigam usufruir com o mesmo gosto que um bom chocolate é capaz de oferecer. E que possam ‘acalentar’ as nossas carências e nos propiciar, ainda que por alguns instantes, sentir o desejado ‘nirvana’…

Hoje, meus amigos, eu percebo que o prazer não tem preço e nem etiqueta de grife. Por certo, ele advém da nossa acuidade de sentir gostos, visões e sensações. Da nossa capacidade de resgatar antigos episódios e dar a eles novas oportunidades. No fundo, se pensarmos bem, veremos que a vida é bastante generosa com todos. Porquanto ela disponibiliza a cada criatura a possibilidade de bem cuidar da memória. Até porque, no fim das contas, é o bem mais precioso que podemos guardar, não acham?!

Abençoado seja, meu querido Orlando!

PS. Era nessa esquina que ficava o “Cantinho Baiano”: um lugar que eu jamais esquecerei…

“O MUNDO É UM MOINHO”

(CARTA A ZAMIRA)

É quase certo que você, Zamira (personagem de Labina Mitevska), nunca tenha ouvido falar do nosso querido mestre Cartola. Por isso mesmo, não teve a felicidade de conhecer os maravilhosos versos do grande sambista e poeta. Foi uma pena, amiga, porquanto você perdeu a oportunidade de se emocionar com essa belíssima canção:

“Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora da partida / Sem saber mesmo o rumo que irás tomar / Preste atenção, querida / Embora saiba que estás resolvida. / Em cada esquina cai um pouco a tua vida / E em pouco tempo não serás mais o que és. / Ouça-me bem, amor / Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos / Vai reduzir as ilusões a pó…”

Pois é. Sem dúvida alguma, foi uma lástima você não ter ouvido esses versos. Saiba, então, Zamira: Cartola compôs essa música para demover o desejo da filha de sair de casa precocemente. E ele conseguiu! Se você tivesse sido acalentada por essa melodia, quem sabe pudesse compreender e até perdoar o duro destino que a vida estava a lhe reservar? No entanto, a dor que Cartola sentiu não pode ser comparada à sua. Lá, isso não. Ainda que toda dor seja triste, pois dor é sempre dor, o certo é que o seu infortúnio bateu mais fundo. Como prova, basta assistir ao melancólico filme e perceberemos que esta dor sempre esteve presente em sua vida. Impiedosamente, é verdade. Presente, também, no destino das tantas vítimas de guerras, como a do seu sofrido país. Convenhamos, tudo isso serve apenas para denunciar o lado mais obscuro da natureza humana: o sofrimento. E não há nada mais sombrio do que isso, esteja certa!

O que posso dizer, minha menina, é que até mesmo os poetas se sentem impotentes diante da intolerância, da injustiça e da capacidade de destruição que há no homem. Até parece uma ‘vocação’ inata, não é verdade? Você talvez pudesse indagar com rancor: o que caberia a nós – pobres mortais – fazer diante de tudo isso? O que é preciso?

Olha, Zamira, eis aí uma questão antiga. E a despeito de tudo, ela ‘ainda’ nos aflige de forma insidiosa. Meu Deus, até quando?!

Se observarmos bem, perceberemos que o homem, desde que começou a habitar este controvertido planeta, desenvolveu uma destreza crescente. É bem verdade que, por vezes, tal capacidade serviu para a sua própria sobrevivência. Contudo, temos que reconhecer que na maioria das vezes o que falou mais alto foi o lado destrutivo e predador de nossa raça. Sim! Que infortúnio!

É sabido, também, que o ‘homem’ é portador de fortes instintos. Ao longo da sua passagem pela história da civilização, o homem empreendeu práticas que têm variado de acordo com as necessidades atreladas. Até aí, tudo bem. Afinal, foram muitos os momentos vividos por ele. Momentos de glórias e conquistas. Porém, por outro lado, nós tivemos momentos vergonhosos, Zamira. De pura insanidade. E não há como esconder isso… lamentavelmente.

Nos primórdios da era humana, por conta da seleção natural, nós fomos impelidos a desenvolver diversas ‘autodefesas’. Algumas delas foram imprescindíveis à manutenção do “homo sapiens”. Porquanto as condições eram difíceis e, sendo assim, somente os ‘mais fortes’ conseguiriam lidar com as adversidades.

Centenas de anos se passaram para que o homem criasse o fogo e pudesse se aquecer. Dessa forma, mantinha-se a salvo das intempéries do clima e das possíveis ameaças. Logo a seguir, ele experimentou as suas primeiras habilidades manuais, confeccionando os instrumentos de caça. Foram bens extraordinários, sem dúvida, que favoreceram a alimentação e o vestuário. Propiciavam, também, mais oportunidades na formação das tribos, uma vez que a caça coletiva ensejava maior êxito. E com esse espírito gregário assumido, o homem pôde se locomover e ocupar diferentes regiões do planeta. Assim, surgiram os ‘amigos’. O diabo é que na esteira da disputa pela caça vieram, igualmente, os “inimigos”! É que no bojo das lutas por alimento (e mulheres) surgiu a ‘famigerada’ ganância. Como consequência, criou-se o gosto pela dominação e diversos conflitos foram estabelecidos. Tribos ‘irmãs’ tentando dominar os vizinhos. A partir daí, nunca mais cessaram os litígios. Nunca mais…

Até hoje nós estamos no mesmo ponto, apesar dos progressos alcançados em outras áreas. Desafortunadamente, nós empreendemos uma permanente luta para dominar o outro. Lutamos para subjugar o suposto oponente. Estupidamente, lutamos… Contra quem? Qualquer um! Contra o quê? Não importa! Em prol de quê? Não sabemos! Por quanto tempo? Só Deus sabe!

Ah, Zamira, você não sabe como dói acompanhar à sua história mostrada em um filme, mesmo que ela seja contada de modo belo e impecável. É que, irônica e cruelmente, a sua história denuncia as nossas ‘doenças’, revelando as atávicas dificuldades dos homens. Dificuldades essas que nenhuma diferença étnica pode justificar. Ou que religião alguma consegue atinar, porquanto está no nosso interior.

Sim, minha pobre criança, ao que tudo indica, nós introjetamos de tal maneira àquela antiga destreza, herdada dos nossos ancestrais, que não mais conseguimos nos livrar dela. Céus, quanta ironia!

Apesar disso, devo confessar, eu sou um otimista ‘incorrigível’. Sim, porquanto eu continuo acreditando no homem. Acredito porque percebo que a sua história consegue, como tantas outras, comover muitas criaturas. Então, é sinal de que há esperança. É sinal de que não morreu, de todo, o lado humano de nossa raça. Talvez, ainda tenhamos que pagar com muitas vidas, como em seu país, para descobrirmos a nossa real natureza e vocação. Ah, companheira… Decerto há um outro lado em nossa alma que não é apenas destruidor, e nós já demos provas disso. Deve haver, seguramente, mais solidariedade em nossos corações do que supõe a insensibilidade de muitos. Talvez ela esteja escondida em algum lugar pouco explorado por nós. Quem sabe, estejamos bem próximo de revelar o nosso lado generoso?! O que sei dizer é que é preciso acreditar nisso. Do contrário, tudo aqui perderia o sentido. Perderia, também, a importância e a razão da nossa existência.

Por tudo isso, eu quero deixar aqui um beijo bem carinhoso para você, Zamira. E se possível for, pedir-lhe que perdoe a nossa recorrente insanidade!

Bem, meus prezados leitores, desculpem-me tê-los afastado da conversa que tive com a menina Zamira. Emocionado, eu devo declarar: essa conversa era urgente e necessária, além de muito pessoal. No fundo, há tempos eu me devia esta conversa. Agora, torço apenas para que tenham sido tolerantes comigo e entendido o momento especial.

Voltando ao nosso encontro mensal, o filme em questão é “Antes da chuva”, dirigido por Milcho Manchevski e muito ajudado pelos talentosos Rade Serbedzija, Labina Mitevska, Katrin Cartlidge e Grégoire Colin.

Belíssimo. Comovente. Humano. Corajoso. Sei lá mais o quê!

São três histórias de amor que se cruzam, em meio à guerra fratricida na Macedônia. “Palavras” é o título do primeiro episódio, que descreve a dor de Zamira e do jovem monge Kiril (personagem de Grégoire Colin). Em “Rostos”, o segundo episódio, surge o ‘fotógrafo de guerra’, Aleksandar (personagem de Rade Serbedzija). Envolvido numa difícil relação amorosa em Londres, ele não consegue permanecer distante e sofre com os duros acontecimentos desenrolados em seu país. “Imagens” é o terceiro episódio, que tem o pano de fundo no retorno de Aleksandar à sua terra natal, a Macedônia. Ironicamente, neste último episódio, os caminhos de Aleksandar se cruzam com os de Zamira e Kiril, desenhando de forma impiedosa a intolerância presente nos conflitos entre macedônios ortodoxos e muçulmanos albaneses. O retrato da dignidade daquela gente é, enfim, aviltado e revelado…

Sim, meus amigos, “Antes da chuva” é um filme impiedoso. Desafiador. E ao mesmo tempo, delicado. Um filme produzido com a nítida intenção de ‘impressionar’. E ele consegue!

Ainda bem que podemos fazer pequenas expiações enquanto o mundo não se ajuíza. Sorte a nossa que tivemos o querido Cartola para nos consolar e ainda temos, afortunadamente, o poeta Nei Duclós para nos dizer sem medo:

“Estamos na mesma fogueira / na mesma lenha / usando a mesma coleira / pulando com a mesma raiva / sofrendo a mesma seca / plantando a mesma semente / esperando com a mesma demência / que ela cresça…”