MEMÓRIAS NO DIVÃ

Eu bem sei que é difícil admitir determinadas posturas. Por sinal, eu também já me vi envolvido em diversas ‘contradições’. É até provável que isso seja algo comum na vida dos seres humanos. Por consequência, quem sabe, isso nem constitua motivo de culpa?! Quando muito, somente pequenos arrependimentos… vai saber?!

Ainda assim, posso afirmar que lembro muito bem do meu primeiro ‘conflito’. Sim! Muito embora eu fosse apenas um menino, de pouco mais de cinco anos, o certo é que já se anunciava em mim a dificuldade de lidar com o meu lado nordestino. Eu explico. É que para nós, ‘cabras da peste’, vir para o ‘sul maravilha’ é algo que carrega uma tremenda ambiguidade. Por um lado, a alegria de poder galgar novas oportunidades, por outro, o forte sentimento de ‘abandono e traição’ às causas nordestinas… Vai entender?!

Certo mesmo é que para muitos de nós isso se arrasta feito bola de prisioneiro, durante um longo tempo. E só consegue ser atenuado por intermédio da paciência e da resiliência desenvolvidas ao longo da vida. É o tal negócio: ainda que tenhamos gravado no gene aquele velho ‘estoicismo’, narrado por Euclides da Cunha, de que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, na verdade, isso nem sempre redime as nossas dores… tampouco os nossos destinos.

A partir daí, sim, é preciso desenvolver um grande ‘jogo de cintura’, com vistas ao que vem pela frente. E saiba que não é tarefa fácil, uma vez que a ‘seleção natural’, aliada ao esmeril do tempo, não poupa ninguém. Cedo, muito cedo, a gente aprende a se ‘virar nos trinta’. E a vender o almoço que é para pagar o jantar. E agora, José: sina ou vocação?!

Na verdade, eu não estou aqui a chorar pitangas. Muito menos para lamentar-me por algo ocorrido. Até porque, convenhamos: esse é o jogo da vida, minha gente. E tem que ser jogado como puder. Ou souber! Caso contrário, é como diz a canção de Chico Buarque:

“Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o destino pra lá…”

O que sei dizer é que foram necessários mais de setenta anos para que eu pudesse enxergar essa trajetória como um percurso válido. Talvez, até mesmo vitorioso… Pudera! Afinal de contas, nós somos a ‘soma’ de todos os medos, muito mais do que a soma de todos os êxitos. E, convenhamos: tudo isso soa muito injusto, não acham? Porém, novamente Chico Buarque vem ao meu socorro justificar o percurso:

“A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / O quanto deixou de cumprir / Faz tempo que a gente cultiva / A mais linda roseira que há / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a roseira pra lá…”

Pois é. De um jeito ou de outro, o que fica de aprendizado é que todos nós precisamos dessas referências para podermos navegar em mares mais serenos. Contudo, também é verdade que o timão desse barco deve estar sempre em nossas mãos. Mãos calejadas pelo tempo, por certo. Mãos que buscam dias melhores. Até conseguir. E assim, iremos celebrar com orgulho o verso final da canção: “Roda mundo, roda-gigante / Rodamoinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração…”

(Nas fotos, temos visões que atestam que meu coração vem pulsando desde os 5 anos. E continua, ainda mais, aos 74!)

Publicado por

Carlos Holbein

Professor de química por formação ou "sina" e escritor por "vocação" ou insistência...