UMA ESTRANHA FOGUEIRA

Lembro que era um ensolarado domingo, dia 29 de março de 1964. Na época, eu tinha pouco mais de doze anos de idade, ainda sem ter a compreensão sobre algumas dores desse mundo.

Lembro também que o seu Amaral, do 707, acordou cedinho e rogava aos vizinhos do andar que ajudassem a levar os livros para a garagem. Mesmo sem entender o porquê da missão, eu desci e subi umas dez vezes carregando inúmeros livros. Inclusive eu cheguei a perguntar para a D. Anita, esposa do seu Amaral, qual era o motivo daquela frenética ação, sem obter uma resposta convincente. Ela apenas me acarinhava o rosto e pedia que acelerasse o transporte…

O mais surpreendente de tudo foi ver a fogueira na garagem do prédio, bem em frente a grande cisterna. Inicialmente, o fogo era lento e brando. Porém, aos poucos, ele foi assumindo uma intensidade assustadora, gerando alvoroço nas crianças que, ao mesmo tempo, gritavam e saudavam a fogueira. Afinal, fogueira é algo sempre cativante para uma criança, pois remete às festas de São João.

No entanto, havia muita tensão por parte dos adultos e não sabíamos o motivo. Percebíamos somente o misto de desespero e alívio vindos do seu Amaral. E em determinados momentos, eu fiquei reparando as expressões faciais dele. Por isso, notei que aquela queima era motivo de profunda tristeza, já que eu o flagrei chorando.

Orientados pelo seu Amaral, esse processo da queima dos livros mais parecia uma ‘cerimônia fúnebre’. E consumiu boa parte da manhã daquele dia. Por outro lado, também havia a necessidade de varrer e lavar a garagem após uma grande quantidade de livros queimados. Isso porque não podíamos deixar marcas no piso.

Só sei que ao efetuarmos a varredura do chão, em um dado momento, eu peguei uma capa de um livro ainda inteira. Era de um tal de “Vladimir Maiakóvski”, e pelo que percebi era um livro de poesia, intitulado “A nuvem de Calças” . Logo ao lado dessa capa havia outra página não queimada. Nela, então, eu pude ler:

“Se quiserem, serei apenas carne louca e, como o céu, mudarei de tom, / se quiserem, serei impecavelmente delicado, / não serei homem, mas uma nuvem de calças!”

Fiquei atônito com tanta beleza narrada naquele pequeno pedaço de papel. Pus-me a procurar outras páginas e encontrei somente mais uma em que estava escrito: 

“Querida!
Não te assustes que no meu costado de louco / haja sentadas mulheres de saias molhadas, / – é uma carga que levo comigo pela vida fora: / milhões de amores puros e enormes / e milhões de milhões de pequenos amores sujos. / Não temas que de novo caia na infidelidade habitual, / me atire a milhares de caras bonitas, / – as amantes de Maiakovski
são uma dinastia de rainhas entronizadas no coração de um louco.”

Bem, lá se foram muitas décadas até que eu pudesse entender o que de fato aconteceu naquela manhã. E por certo, até hoje eu me sinto solidário à dor que todos experimentaram naquela manhã. Em especial ao seu Amaral e sua esposa, moradores do velho Estácio da minha infância distante.

O que eu posso dizer a vocês, meus amigos, é que nem toda fogueira é motivo de comemoração, até mesmo para uma criança. Afinal, é preciso reconhecer que ‘aquilo que é queimado’ nunca mais se recupera… Nunca mais!

Publicado por

Carlos Holbein

Professor de química por formação ou "sina" e escritor por "vocação" ou insistência...