UMA PORTA ENTREABERTA

Havia no Edifício Esperanto, lá na velha Zamenhof, do Estácio, um entendimento tácito com relação as divergências. Mas não com relação às questões do condomínio, já que essas eram mais fáceis de lidar. Sim! Bem mais amenas que as questões políticas da época. Calma aí que eu explico.

Nós estávamos no fim da década de 60 e o nosso país atravessava momentos complicados. Até mesmo turbulentos. Como o nosso prédio possuía criaturas com divergentes formas de pensar, o fato é que essas diferenças não passavam em ‘brancas nuvens’. No ‘cantinho’ do seu Severino, a portaria, sempre tinha um pequeno grupo a deitar falação contra esse ou aquele outro proprietário. Fosse para comentar o tamanho da saia de determinada adolescente ou para levantar suspeitas com relação a infidelidade de alguma pessoa do prédio. Tudo era motivo de fofoca e desentendimento.

Ainda assim, o assunto mais comentado à ‘boca pequena’, sem dúvida, era quanto a posição política de qualquer morador. Isto porque, nós vivíamos os famigerados “anos de chumbo”. Por conseguinte, a ‘delação’ era o instrumento mais comum da época. E alguns moradores, por certo, tinham a ‘preferência’ dos delatores, por variados motivos. Era bem o caso do Henrique, do 505, cujo pai estava exilado em outro país. Muito embora Henrique fosse completamente apolítico, bastava ter alguma situação tensa em qualquer lugar, lá vinham os soldados, marinheiros ou aviadores arrombar a porta do apartamento do coitado do Henrique. Sem pedir licença, eles a quebravam a fechadura e vasculhavam tudo em busca de algum vestígio. E nada era encontrado!

Algumas vezes, eles conduziram Henrique para as instalações do aparelho repressor, preferencialmente para o Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS. E Henrique tinha que suportar interrogatórios, constrangimentos e até mesmo torturas. Tudo para que esclarecesse o paradeiro do pai, um líder de grande expressão do cenário político. Embora isso fosse algo comemorado por pequena parte dos moradores do prédio, o certo é que para muitos outros esse processo foi encarado com dor e solidariedade.

Lembro que meu pai ficava profundamente indignado. E dizia para nós, os filhos, que no futuro teríamos vergonha desse período da história política brasileira.

Como consequência, certo mesmo é que Henrique se tornou uma pessoa triste e solitária. Pouco conversava com os outros. Afinal, para ele, os moradores passaram a ser ‘suspeitos’ de muitas delações. Por isso, a presença de Henrique nas festividades do prédio, como São João ou Natal, foi cada vez mais diminuindo. Até o isolamento total. A partir daí, ninguém mais o via entrar ou sair do prédio. Virou um fantasma. Literalmente!

Dizem até que para evitar gastos extras, Henrique passou a deixar a porta do seu apartamento sempre entreaberta. Com isso, ao menos, ele evitava o arrombamento e a quebra da fechadura… Céus! Foram tempos difíceis aqueles. Lá, isso sim!

Publicado por

Carlos Holbein

Professor de química por formação ou "sina" e escritor por "vocação" ou insistência...