O SOBE-E-DESCE LADEIRA

Ah, eu queria dizer que hoje acordei com saudades de algumas criaturas especiais. Sim! Pessoas que, de algum modo, marcaram definitivamente a minha trajetória. Aliás, como é bom a gente perceber a importância que essas pessoas tiveram ou ainda têm em nosso percurso. É que, desse modo, as lembranças restauram em nós o desgaste que o tempo provoca. Afinal de contas, o tempo é um esmeril impiedoso e não poupa ninguém. Somente os tolos conseguem acreditar que passarão ilesos às intempéries da roda da vida…

Milton Nascimento e Fernando Brant, por exemplo, foram capazes de compreender esse drama. E registraram isso na belíssima canção, “Conversando no Bar”. Pedindo emprestado o talento de Elis Regina, eles perpetuaram essas lembranças:

“Lá vinha o bonde no sobe-e-desce ladeira

E o motorneiro parava a orquestra um minuto

Para me contar casos da campanha da Itália

E de um tiro que ele não levou

Levei um susto imenso nas asas da Panair

Descobri que as coisas mudam

E que tudo é pequeno nas asas da Panair

E lá vai menino xingando padre e pedra

E lá vai menino lambendo podre delícia

E lá vai menino senhor de todo o fruto

Sem nenhum pecado, sem pavor

O medo em minha vida nasceu muito depois

Descobri que minha arma é

O que a memória guarda dos tempos da Panair

Nada de triste existe que não se esqueça

Alguém insiste e fala ao coração

Tudo de triste existe que não se esquece

Alguém insiste e fere no coração

Nada de novo existe neste planeta

Que não se fale aqui na mesa de bar

E aquela briga e aquela fome de bola

E aquele tango e aquela dama da noite

E aquela mancha e a fala oculta

Que no fundo do quintal morreu

Morria cada dia dos dias que eu vivi

Cerveja que tomo hoje é

Apenas em memória dos tempos da Panair

A primeira Coca-Cola foi

Me lembro bem agora, nas asas da Panair

A maior das maravilhas foi

Voando sobre o mundo nas asas da Panair

Em volta dessa mesa, velhos e moços

Lembrando o que já foi

Em volta dessa mesa, existem outras

Falando tão igual

Em volta dessas mesas, existe a rua

Vivendo seu normal

Em volta dessa rua, uma cidade

Sonhando seus metais

Em volta da cidade…”

Céus! Que letra maravilhosa. Que interpretação pujante de Elis Regina. Sem dúvida, é algo memorável, que deve ser guardado nos escaninhos da memória.

Ao lembrar disso tudo, ao receber a agradável visita dessas magníficas criaturas em minhas recordações, eu me dei conta de que a vida é mágica e deslumbrante. E mais ainda: se desejamos crescer como seres civilizados, então, precisamos estar de bem com as nossas memórias. Para que tenhamos uma ordenação afetiva mais equilibrada e justa. E, quem sabe com isso, possamos deixar algum legado precioso aos nossos descendentes.

Eu não posso assegurar que eu consiga deixar ao meu filho Gabriel algo de muito valor. Mas ficarei muito feliz em saber que deixarei boas histórias para ele fazer uso com propriedade e valia. E se isso realmente acontecer, meus amigos, é sinal de que terá valido a pena atravessar esse grande percurso…

Na foto: Zelândia, Gabriel, João Pedro e o sorvete e eu após o almoço no Mercado de Florianópolis.

Publicado por

Carlos Holbein

Professor de química por formação ou "sina" e escritor por "vocação" ou insistência...