Canelau me confessou que tinha muita expectativa com relação a apresentação de Miles Davis para aquele sábado, 30 de novembro de 1957. Tanto é verdade que ele passou o dia inteiro ouvindo os discos de Miles, como se desejasse gravar na memória cada frase das melodias do fabuloso trompetista. E ele assegurava a todos os clientes da livraria em que trabalhava que aquela apresentação, sem dúvida, entraria para a história.
Por sinal, como morava perto do teatro, na Rue Joubert, logo atrás da Galeria Lafayette, Canelau conhecia muito bem aquela área. Afinal, desde que chegou em Paris, ele trabalhava na Livraria Monnier, que fica no caminho da “Gare Saint-Lazare”. Além disso, Canelau já ouvia falar da apresentação de Miles há mais de três meses. Por isso, então, ele procurou se inteirar sobre o repertório da noite, pois imaginava que o show seria gravado ‘ao vivo’ para o lançamento de algum disco.
Também foi preciso muito esforço e consultas variadas para que Canelau conseguisse um ingresso para a aguardada apresentação do Quinteto Miles Davis. Somente no sábado, após o almoço, é que o ‘bendito’ ingresso chegou às mãos de Canelau. Foi um presente da proprietária, Adrienne Monnier. Aliás, ela era uma mulher extremamente culta, que atraía escritores e intelectuais, como o escritor irlandês James Joyce e os escritores franceses Paul Valéry, André Gide, Jean Cocteau e André Breton, entre outros. Fundadora da famosa “La Maison des Amis des Livres”, na Rue de l’Odéon, Adrienne encantou não somente os franceses, mas os leitores de vários países que visitavam a França em busca de divertimento, conhecimento, criatividade, livros e, sim, de uma atmosfera cultural de inspiração. A livraria ‘recriou’ a Rua do Odéon, tornando-a famosa e icônica.
Exultante, Canelau não escondia o nervosismo em ver e ouvir o seu grande ídolo musical. Fechou a livraria e acelerando o passo, foi para o quarto da velha pensão em que vivia. Tomou aquele demorado banho, tirou um pequeno cochilo e, ao acordar, arrumou-se para a ‘grande noite’. Como soprava um ventinho frio, lembrou-se do agasalho que fora enviado por sua mãe para o primeiro inverno em Paris. Sorriu ao vestir o “blazer” de veludo, pois sentia naquele agasalho o imenso carinho de sua mãe…
O espetáculo estava marcado para começar as dezoito horas e, com apenas quinze minutos de atraso, Miles Davis adentrou no palco. Ele teve que esperar mais cinco minutos por conta dos frenéticos aplausos do público presente. Emocionado, agradeceu em francês pela bela acolhida. Virou-se para os músicos e com as mãos levantadas sinalizou o início do primeiro “hit”.
A canção que deu início ao show foi “Solar”, uma belíssima melodia em que Miles desfila todo o arsenal de frases melódicas, bem-marcadas pelo piano de René Urtreger, o baixo de Pierre Michelot, a bateria de Kenny Clarke e o envolvente sax tenor de Barney Wilen.
É bem verdade que as músicas deste show se tornaram testemunho perene do estilo envolvente e cativante de Miles Davis. Até porque, elas atestaram a incomparável capacidade de levar os músicos que o acompanhavam para além dos seus limites. Certo mesmo é que Miles Davis se superou nessa apresentação. E para a sorte de toda plateia, ele partilhou o seu talento e a incrível inspiração musical. De fato, foi uma noite para entrar na história.
Terminado o espetáculo, Miles agradeceu a todos e ainda presenteou o público com o bis da antológica composição de Thelonious Monk, “Round Midnight”. Um delírio!

