OS ESPELHOS DE CADA CRIATURA

Ah, minha gente, eu só posso dizer que já faz muito tempo. Sim! Foi muito antes de eu nascer. E foi Cecília Meireles que escreveu o antológico poema “Retrato”. Nele, a fabulosa Cecília derrama toda sua indignação contra o implacável ‘esmeril’ do tempo. Vale a pena lembrar:

“Eu não tinha este rosto de hoje,

Assim calmo, assim triste, assim magro, / Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo. / Eu não tinha estas mãos sem força, / Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração / Que nem se mostra. / Eu não dei por esta mudança,

Tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida a minha face?”

Pois não é que eu acordei hoje lembrando desses versos? Quem sabe, por estar próximo ao aniversário de 72 anos, eu esteja experimentando as primeiras dores narradas no impiedoso poema? Vai saber? Afinal, as pernas já não são as mesmas de outras épocas e reclamam o tempo de serviço prestado. Tão pouco a visão consegue descortinar aquelas paisagens que em outros tempos eu me deliciava em apreciar. Pois é. Talvez, alguém corra para me dizer que “esse processo é natural e não pode ser evitado, Carlos”. Tudo bem, sei disso. Mas, ainda assim, não me sinto confortado, meus amigos.

Só para ilustrar, lembro que na tardinha de hoje, eu saí para comprar materiais de construção para a reforma do banheiro. E na volta para casa, ao fazer uso da Via Expressa, com seu movimentadíssimo trânsito de veículos, eu me dei conta de que não estou enxergando bem e tenho dificuldades em fixar a visão no veículo da frente. Por ser portador de glaucoma e pingar cinco gotas diárias de colírios há mais de quinze anos, eu percebo que meus olhos estão exauridos de tanta química. Chego a acreditar que os meus dias de condutor de automóvel estão se encerrando. Não quero correr riscos desnecessários e nem provocar acidentes!

Por outro lado, também é verdade que a ‘maior idade’ me trouxe coisas preciosas. Como a capacidade de deixar as emoções fluírem mais intensamente em meu coração. Sim! Isto porque, quando se é jovem, parece que colocamos uma enorme barreira à nossa frente. De tal maneira, que o direito de viver as emoções fica quase interditado…

No entanto, não estou aqui a lamentar o meu destino. Muito ao contrário, sinto-me um privilegiado nessa vida. E tenho procurado ‘ajudar’ a minha trajetória fazendo o que está a meu alcance. Boa alimentação. Exercícios diários na academia de ginástica. E aproveitar ao máximo as vantagens da bendita aposentadoria: viagens, bons livros, filmes e amigos ao redor. O resto…  bem…  o resto é com aquele senhor lá de cima. Afinal, se o meu pai completou 100 anos de vida, quem sabe a genética forneça aquela preciosa ‘ajudinha’?!

( Imagem: a inesquecível Corfú, na Grécia)

Publicado por

Carlos Holbein

Professor de química por formação ou "sina" e escritor por "vocação" ou insistência...