É bem verdade que eu havia percebido aquela situação desde o primeiro encontro. E isso já faz muito tempo, reconheço. Porém, sabe como a vida é?! Basta uma ‘bobeada’ e a gente se esquece de certas coisas… E no campo emocional, então, céus, é pior ainda. Aí, o bicho pega. Mas, calma aí, minha gente… eu explico tudo.
O ano era 1975. Pela primeira vez eu fazia uma viagem ‘internacional’. É bem verdade que o país ficava bem ao nosso lado: a Argentina. Mas, para um ‘canelau’ feito eu, era como se fosse a Islândia, isso sim. Afinal de contas, a maior distância viajada por mim fora do Rio de Janeiro para Santa Catarina. Ou seja: 1.135 km! Se fosse na Europa, por exemplo, daria para ir de Viena a Roma ou de Budapeste a Turim, vejam vocês.
Contudo, aos 24 anos de idade, o certo é que aquela viagem parecia um sonho para um cearense feito eu. Sentado naquela poltrona do ‘ônibus-leito’, durante o percurso de quase 46 horas, o mundo era todo meu!
Sem considerar as pequenas interrupções para lanches, pode-se dizer que a primeira grande parada foi em Porto Alegre, após 1.570 km e 24 horas de viagem. Ufa! Na rodoviária, desci rapidamente para o banho ‘restaurador’ e fui jantar. Daí, seriam mais 1.310 km de Porto Alegre a Buenos Aires, que consumiriam outras 22 horas pela frente…
Ao chegar em Buenos Aires, com os ossos e músculos bastante moídos, eu só pensava em chegar ao hotel e descansar por algum tempo. O diabo é que fazia um frio de lascar e eu não possuía agasalho adequado para aquele clima. Então, essa foi a primeira providência tomada: dois casacos de ‘cashmere’ para aguentar os passeios pelas largas avenidas de Buenos Aires. Uau… que cidade linda!
No entanto, como dizem por aí, o universo nos testa a todo instante. E não demorou muito para chegar a minha vez. Isso porque, eu havia combinado com a minha namorada que entraria em contato com alguns parentes dela, que moravam em Ramos Mejia, um simpático bairro da capital portenha. Liguei e eles combinaram de me pegar no hotel.
A família se resumia a três interessantes pessoas: a tia Arlete, bem-humorada e comunicativa, o tio Emílio, que era confeiteiro formado na Suíça e Heide, uma linda e jovem universitária de vinte anos de idade.
Eles me levaram para a casa, que mais parecia um chalé suíço, e após o delicioso almoço servido, fomos para a sala conversar. Meu Deus do Céu, que família bonita era aquela: unidos e bem-humorados! Bastante diferente da minha família…
O que mais me impressionou, confesso, foi o grau de intimidade que criamos já no primeiro encontro. De tal modo que, por isso, não estranhei o convite de sair do hotel e me hospedar na casa deles pelos próximos quinze dias das férias.
Eu e Heide criamos rapidamente uma forte cumplicidade, uma vez que ela era estudante universitária de química e bastante politizada. Daí, nós passávamos os dias passeando por todos os cantos da grande capital.
O grande ‘problema’ é que a Argentina passava por uma instabilidade política preocupante, pois dava sinais de que haveria um golpe militar, com a iminente deposição da presidente Isabelita Perón.
Por conta da preparação do ‘golpe’, já se percebia o forte aparato de segurança e repressão. As universidades passaram a ser vigiadas e os líderes estudantis começavam a sofrer ‘sequestros’ e os consequentes ‘desaparecimentos’. O medo imperava em todos os segmentos da sociedade argentina e Heide dava sinais de que entraria no ‘movimento’.
Como eu já vivera algo semelhante no Brasil em 1964, sabia que o futuro seria negro para boa parte dos irmãos argentinos. Lembro até que tentei demover o desejo de Heide ingressar no movimento estudantil. Mas foi em vão. Porquanto ela era uma moça corajosa e bastante determinada. Ainda assim, eu procurei alertá-la sobre os métodos operacionais da ‘repressão’ militar no Brasil. E com um sorriso, ela me respondia que lá seria diferente…
Logo a seguir, eu retornei ao Brasil e ao meu ofício de professor de química. Tentei algumas vezes telefonar para a família argentina, sem lograr êxito. Nunca mais tive notícias de D. Arlete, seu Emílio e da querida Heide. Nem mesmo nas outras vezes que viajei para Buenos Aires, eu desisti de obter notícias deles. Eu sempre arrumava um jeito de visitar Ramos Mejia e passar em frente ao 144 da ‘Calle Garay’. Desafortunadamente, nenhum vizinho sabia sobre o paradeiro da família.
Desconsolado, eu lembrava apenas da apresentação de tango a que assisti ao lado de Heide, em uma casa de espetáculo em Palermo. “Por una cabeza”, era a melodia que retornava com forças em meus pensamentos…