“TINHA UMA PEDRA NO MEIO DO CAMINHO…”

Eu devo reconhecer que Canelau nunca foi uma criatura religiosa. Aliás, por conta da herança comunista, patrocinada pelos pais, ele até se declarava ateu. Ao menos, até os quarenta anos de idade isso era verdadeiro. Já depois disso, é bom que se diga, ele começou a sofrer algumas transformações, que foram lentamente o levando para o lado espiritual. Mas, calma aí que eu explico.

Na verdade, o ‘rompimento’ com o ateísmo e a gradual aproximação ao espiritualismo, de fato, ocorreram no final dos anos 90. Como resultado, Canelau deu início a uma ‘guinada’ na vida. Não como aquela anunciada por um inocente amigo, que declarava: “vou dar uma guinada de 360 graus na minha vida, podem acreditar!” E, de bate-pronto, alguém retrucou: “360 graus? Então, sua vida vai continuar no mesmo rumo…”

No caso de Canelau, ele começou pela mudança de cidade. Sim! Ao receber a bendita “Carta de Concessão” da aposentadoria do INSS, após 25 anos de magistério, e impulsionada pela separação do segundo casamento, Canelau intuiu que havia chegado a hora de alçar novos voos. Daí, ele resolveu vender o apartamento, juntar a mudança no caminhão da transportadora e buscar outros caminhos para explorar. A cidade escolhida por ele era bastante familiar: Florianópolis. Afinal, Canelau conhecera a cidade na adolescência, quando ia passar as férias na casa de um tio. Como guardou na memória afetiva boas recordações desses períodos, a escolha se justificava inteiramente.

Além disso, em seus ombros pesava o forte desejo de ‘passar a limpo’ alguns desencontros experimentados. Pois é, minha gente, no fundo, ninguém escapa. E o que se sabe é que o coração de muitas criaturas parece guardar mais desgostos do que esperanças, o que é uma pena. Somente após alguns anos de terapia é que Canelau aprendeu a drenar essas dores e transformá-las em ‘pulsos’ mais proveitosos. Desses, que são capazes de abrir novos horizontes na vida. Convenhamos, meus amigos, isso é uma tarefa bastante difícil. Por vezes, até mesmo inalcançável. Mas, não para Canelau! Desde cedo ele desenvolveu um forte estoicismo e aprendeu a superar as dificuldades com elegância e bom humor. Até mesmo em ocasiões inusitadas, como no primeiro passeio que fez à Praia Mole, assim que chegou em Florianópolis.

Tudo aconteceu ao visitar a majestosa praia. Querendo se inteirar, Canelau resolveu conhecer as pedras que separam as duas praias, a Mole e Galheta. Tratava-se de um passeio maravilhoso, ainda que tivesse o risco dos ‘escorregões’, pois pedra é pedra, não é verdade? A ida até que foi tranquila, sem grandes surpresas. Devagar, sobe-se uma a uma. E ao chegar em algumas delas, pode-se deslumbrar o imenso mar azul, verdadeiro cartão postal da ilha. Mas é o tal negócio: Millôr Fernandes, o extraordinário escritor e crítico, com seu humor mordaz, já havia dito que “o pior do alpinismo é a volta!”. Tinha ele razão, meus amigos. Se pensarmos bem, a famigerada ‘volta’ concentra apenas o risco de cair, uma vez que o ‘deslumbramento’ oferecido pela vista é prerrogativa apenas da subida…

O fato é que Canelau não se preocupou com nada disso. E tão pouco se lembrou de Millôr Fernandes. No entanto, chegada a hora da volta, bateu aquele frio na barriga. Porquanto ele percebeu que algumas passagens eram fáceis de empreender em uma dada direção. Já no sentido contrário, ah, exigia muita habilidade e destreza.

Aí, minha gente, foi quando Canelau descobriu que era o poeta Carlos Drummond de Andrade que ditava as suas recordações: “Nunca me esquecerei desse acontecimento / Na vida de minhas retinas tão fatigadas / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / Tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho…”

De um jeito ou de outro, o que posso dizer a vocês é que naquele momento de profunda aflição, céus, Canelau descobriu o caminho para Deus. Com o coração na boca, ele pedia aos santos protetores que abrissem os caminhos e o fizesse sair dali. Inclusive, em suas fervorosas orações, na etapa mais difícil de uma pedra baixa para a outra bem mais alta, Canelau se lembrou do Salmo 1:9 de Josué: “Seja forte, corajoso e destemido!”

Praia Mole, em Florianópolis / SC

Publicado por

Carlos Holbein

Professor de química por formação ou "sina" e escritor por "vocação" ou insistência...