Ele devia ter pouco mais de trinta anos quando fez o primeiro tratamento de canal. Era um molar inferior. Na época, lembro bem, ele nem ligou para essa questão. Achava que era um procedimento banal e que fazia parte do cotidiano de qualquer criatura.
Então, muitos anos se passaram. Até que um dia ele se deu conta sobre o que representara aquele tratamento. Céus! O fato é que ele ficou deprimido com a fala de uma amiga psicoterapeuta: “Canelau, uma parte de você morreu. Simples assim!”
O que sei dizer é que depois disso outras duas partes iguais também morreram na boca do pobre homem. Paciência! Por certo, alguém haveria de dizer: “os dentes também envelhecem, não é verdade?!” Pois é. Só que ninguém se prepara para isso e, quem sabe, acredita até que eles vão durar para sempre.
O fato é que ele nunca havia observado a coisa por esse prisma. E tampouco saberia dizer se isso é uma verdade, um acidente de percurso ou apenas uma grande bobagem. Contudo, devemos reconhecer que seja o que for, isso fustiga as emoções da gente, não acham? Há pessoas, por exemplo, que são mais ‘pragmáticas’ e não perdem tempo com essas questões. Sim. Sabemos disso. No entanto, tal percepção não alivia em nada as dores sentidas e tampouco justifica a ‘tranquilidade’ dessas criaturas. É apenas o jeito de cada um lidar com as ‘perdas’. Ou de escamoteá-las…
É curioso perceber que muitas crianças sonham em ter um braço quebrado na infância. Eu não saberia explicar o porquê desse comportamento. Mas que ele acontece frequentemente, lá, isso é verdade! Canelau já havia me contado que morria de inveja quando encontrava um colega seu com o braço da tipoia. Segundo ele, aquilo mais parecia uma condecoração de ‘bravura de guerra’. Vai entender?!
Esta semana, ao encontrá-lo casualmente na rua, ele me informou de que seria submetido a uma cirurgia. Por delicadeza ou constrangimento, eu não tive coragem de perguntar sobre o tipo de cirurgia. Apenas desejei a ele boa sorte e confiança no procedimento. Canelau, então, sorriu levemente e me respondeu: “é coisa corriqueira, feito um dente careado. O importante, contudo, é não deixar o dente possa ‘aprontar’ alguma com a gente…”
