UMA HISTÓRIA SEM GRAÇA

Eu bem que alertara ao terapeuta o quanto isso ainda me incomodava, apesar dos mais de quarenta anos decorridos. E aí, fazer o quê?! Pode ser que para outras pessoas isto não tenha tanta importância assim… mas, para mim, que sofri na pele o sufoco… ah, deixa disso! Verdade é que nem sei por que estou falando desse episódio. É que, no fundo, vira e mexe, essas lembranças voltam aos meus pensamentos… Então, calma aí, que eu explico!

O ano era 1955. Eu e toda minha família estávamos viajando do velho Ceará com destino ao Rio de Janeiro, onde o meu pai nos aguardava. Só que naquela época o Mar Morto não estava nem doente, ou seja, o famigerado avião tinha que pousar de hora em hora para abastecer, pois era uma verdadeira carroça! Muito bem. É até fácil imaginar a cena: a pobre coitada da mãe carregando seus cinco filhos sob as asas, sendo que o mais velho tinha apenas dez anos. Já viram, né?! Na segunda das quatro paradas para reabastecer a bendita “aeronave” da Real Aerovias Brasil, todos tinham que desembarcar e ir para o saguão do aeroporto, como era o procedimento. A seguir, aguardava-se meia hora e depois embarcávamos novamente. Só que de lá para cá esse ritual se repetiu algumas vezes. Então, é fácil prever que em alguma parada dessas haveria ‘encrenca’. Pois é. Sucedeu em Recife, meus amigos. Lembrem-se que eu tinha apenas quatro anos e jamais imaginaria ser protagonista do “Esqueceram de mim – Zero”… O que sei é que todos os cinco, minha mãe e os quatro irmãos, entraram naquele ‘14 Bis’. Menos eu! Ao que tudo indica, eu fiquei perambulando pelo saguão do aeroporto, atrás de comida ou coisa assim, e não me dei conta da partida. Só sei que o avião estava taxiando na pista para levantar voo e minha mãe virou-se e contou os filhos: “Céus! Está faltando um! Tá faltando um filho meu, aeromoça!”

Vocês podem imaginar o ‘alvoroço’ que deve ter ocorrido a bordo. O piloto dizendo que não poderia mais voltar e minha mãe ameaçando até puxar a ‘peixeira nordestina’ que não possuía. Mas, naquele momento de sufoco, ela jurava que estava guardada na enorme bolsa que conduzia. A confusão foi tanta que até ‘Boletim de Ocorrência’ foi lavrado na delegacia do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, local de chegada. Enquanto eu, devo confessar, já me encontrava algemado pelo segurança do aeroporto do Recife, pois o escarcéu que aprontei não estava no mapa… Bem, minha gente, para encurtar a prosa, o que eu posso dizer é que naquela época era comum tratar os meninos de rua de ‘moleques’ ou, como se dizia no Ceará, de ‘canelau’. O fato é que eu, no percurso da vida, demorei um bocado para expurgar o ‘canelau’ que havia em mim. Para isso, foram precisos mais de sessenta anos vida, muita ajuda e uma ‘sorte’ enorme marcada no meu destino. Lá, isso sim!

Em fevereiro próximo, eu retornarei pela primeira vez ao aeroporto de Recife para uma temporada de férias com a minha nova família. Espero, contudo, que os velhos ‘fantasmas’ não estejam lá… Não mais!

Publicado por

Carlos Holbein

Professor de química por formação ou "sina" e escritor por "vocação" ou insistência...