Foi o nosso querido Carlos Drummond de Andrade que afirmou em seu extraordinário poema, “Resíduo”, que “de tudo fica um pouco”. Pois é: tinha ele razão, meus amigos. Aliás, muitas razões! Vale a pena lembrar:
“De tudo ficou um pouco / Do meu medo. Do teu asco. / Dos gritos gagos. Da rosa / ficou um pouco. Ficou um pouco de luz / captada no chapéu. / Nos olhos do rufião / de ternura ficou um pouco (muito pouco).Pouco ficou deste pó / de que teu branco sapato se cobriu. / Ficaram poucas roupas, / poucos véus rotos / pouco, pouco, muito pouco.Mas de tudo fica um pouco. / Da ponte bombardeada, / de duas folhas de grama, / do maço – vazio – de cigarros, ficou um pouco.De tudo fica um pouco. / Não muito: de uma torneira / pinga esta gota absurda, / meio sal e meio álcool… / este vidro de relógio / partido em mil esperanças… / este segredo infantil……Oh! abre os vidros de loção / e abafa / o insuportável mau cheiro da memória…”
O mais interessante de tudo é que ao reler este poema, nesta chuvosa manhã de domingo, eu tinha, ao fundo, a suave e inebriante companhia de Ana Caram, interpretando canções de Tom Jobim. O CD se intitula “The other side of Jobim” e o encontrei, por acaso, no fundo da estante, indesculpavelmente esquecido por mim. Ah, meu maestro soberano, queira me perdoar. Saiba, contudo, que isso não foi intencional. Porquanto o dia a dia da gente, muitas vezes, acaba nos infringindo alguns ‘esquecimentos’. E eu lamento por isso, pode acreditar.
Então, para me redimir, eu coloquei o disco a tocar enquanto folheava a antologia de poemas de Drummond. Dessa forma, a deliciosa voz de Ana Caram acabou acalentando os meus pensamentos, fazendo-me lembrar das belezas que ele escreveu. Sim! Desde muito cedo eu fui ‘tocado’ por Drummond, já no “Poema de Sete Faces”, quando eu ainda nem atinava para as dores do mundo. Vejam:
“Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida…. Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração.Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo.”
Assim, minha gente, eu prefiro ficar com as melodias que estão esparramadas pelo universo. No fundo, elas são sábias. E me embalam nesta chuvosa manhã de domingo. E a partir de agora, na voz de António Zambujo, todos os anjos sussurram em meus ouvidos o testemunho deixado por Chico Buarque, em “Futuros amantes”:
“Não se afobe, não / que nada é pra já / o amor não tem pressa / ele pode esperar / em silêncio, num fundo de armário / na posta restante / milênios, milênios ao ar……Sábios em vão / Tentarão decifrar / O eco de antigas palavras / Fragmentos de cartas, poemas / Mentiras, retratos / Vestígios de estranha civilização.”
