RETRATOS DO BRASIL

Hoje eu acordei com saudades do meu Ceará. Mas não do Ceará que fica no nordeste brasileiro. Não, meus amigos. Na verdade, eu acordei saudoso de um Ceará que a gente carrega no peito. Com muito orgulho e alguma teimosia, vá lá… Saudades daquele Ceará atávico, que insiste em visitar às nossas lembranças mais remotas. Ah, se todo o nosso país pudesse encarnar o amor que o nordestino tem por sua terra e por sua gente… Quem sabe as coisas fossem mais fáceis?!

É que nesses tempos de crises, em que ‘aceitamos’, inadvertidamente, que dividam nosso país e nossas convicções, que nos arrastem para insanas manifestações de radicalismos de lado a lado, eu me pergunto: precisamos disso?! É assim que retomaremos nosso destino?

Pois é. Nessas horas é que eu percebo o quanto ‘eles’ insistem em falar por nós. Falar sem nossa autorização à medida que não outorgamos a ninguém o direito de nos separar dos outros irmãos. E foi por tudo isso que eu me lembrei de Elomar e de sua maravilhosa canção “O canto do guerreiro Mongoiô”. Céus, que maravilha. E reconheço: ele sim entoou o canto de todos nós, guardado no peito. E esse canto, ah, eu assino embaixo!

“Um dia bem criança eu era / Ouvi de um velho cantador / Sentado na Praça da Bandeira / Que vela a tumba dos heróis / Falou do tempo da conquista / Da terra pelo invasor / Qui em inumanas investidas / Venceram os índios mongoiôs / Valentes mongoiôs!”

“Falou de antigos cavaleiros / Primeiros a fazer um lar / No vale do Gibóia no Outeiro / Filicia, Coati, Tamanduá / Pergunto então cadê teus filhos / Os homens de opinião / Não dói-te vê-los no exílio / Errantes em alheio chão.”

“Nos termos da Virgem Imaculada / Não vejo mais crianças ao luar / Por estas me bato em retirada / Vou ino cantar em outro lugar / Cantá pra não chorar…”

“Adeus vô imbora do rio Gavião / No peito levarei teu nome / Tua imagem nesta canção / Por fim já farto de tuas manhas / Teus filtros, tua ingratidão / Te deixo entregue a mãos estranhas / Meus filhos não vão te amar não / E assim como a água deixa a fonte / Também te deixo pra não mais / Do exílio talvez inda te cante / Das flores a noiva entre os lenções / Dos brancos cafezais”.

Adeus, adeus meu-pé-de-serra / Querido berço onde nasci / Se um dia te fizerem guerra / Teu filho vem morrer por ti!”

A saga nordestina, como se sabe, é carregada de muita dor e sofrimento. Uma triste sina, que somente o tempo poderá aplacar tamanha injustiça. Por isso, eu quero lembrar aqui algumas poesias, oriundas dos cordéis. E assim, fazer tantas ‘expiações’ quanto a imaginação for capaz de tecer. Confiram:

Reflexões nordestinas

(Catulo da Paixão Cearense)

Oh! Que saudade

Do luar da minha terra

Lá na serra branqueando

Folhas secas pelo chão

Esse luar cá da cidade tão escuro

Não tem aquela saudade

Do luar lá do sertão

(Catulo da Paixão Cearense)

Se Deus me ouvisse com amor e caridade,

Me faria esta vontade – o ideal do coração!

Era que a morte, a descantar, me surpreendesse,

E eu morresse numa noite de luar, no meu sertão!

(Patativa do Assaré)

Eu sou de uma terra que o povo padece

Mas não esmorece e procura vencer.

Da terra querida, que a linda cabocla

De riso na boca zomba no sofrê

Não nego meu sangue, não nego meu nome.

Olho para a fome, pergunto: que há?

Eu sou brasileiro, filho do Nordeste,

Sou cabra da Peste, sou do Ceará!

UMA NOITE INESQUECÍVEL

Canelau me confessou que tinha muita expectativa com relação a apresentação de Miles Davis para aquele sábado, 30 de novembro de 1957. Tanto é verdade que ele passou o dia inteiro ouvindo os discos de Miles, como se desejasse gravar na memória cada frase das melodias do fabuloso trompetista. E ele assegurava a todos os clientes da livraria em que trabalhava que aquela apresentação, sem dúvida, entraria para a história.

Por sinal, como morava perto do teatro, na Rue Joubert, logo atrás da Galeria Lafayette, Canelau conhecia muito bem aquela área. Afinal, desde que chegou em Paris, ele trabalhava na Livraria Monnier, que fica no caminho da “Gare Saint-Lazare”. Além disso, Canelau já ouvia falar da apresentação de Miles há mais de três meses. Por isso, então, ele procurou se inteirar sobre o repertório da noite, pois imaginava que o show seria gravado ‘ao vivo’ para o lançamento de algum disco.

Também foi preciso muito esforço e consultas variadas para que Canelau conseguisse um ingresso para a aguardada apresentação do Quinteto Miles Davis. Somente no sábado, após o almoço, é que o ‘bendito’ ingresso chegou às mãos de Canelau. Foi um presente da proprietária, Adrienne Monnier. Aliás, ela era uma mulher extremamente culta, que atraía escritores e intelectuais, como o escritor irlandês James Joyce e os escritores franceses Paul Valéry, André Gide, Jean Cocteau e André Breton, entre outros. Fundadora da famosa “La Maison des Amis des Livres”, na Rue de l’Odéon, Adrienne encantou não somente os franceses, mas os leitores de vários países que visitavam a França em busca de divertimento, conhecimento, criatividade, livros e, sim, de uma atmosfera cultural de inspiração. A livraria ‘recriou’ a Rua do Odéon, tornando-a famosa e icônica.

Exultante, Canelau não escondia o nervosismo em ver e ouvir o seu grande ídolo musical. Fechou a livraria e acelerando o passo, foi para o quarto da velha pensão em que vivia. Tomou aquele demorado banho, tirou um pequeno cochilo e, ao acordar, arrumou-se para a ‘grande noite’. Como soprava um ventinho frio, lembrou-se do agasalho que fora enviado por sua mãe para o primeiro inverno em Paris. Sorriu ao vestir o “blazer” de veludo, pois sentia naquele agasalho o imenso carinho de sua mãe…

O espetáculo estava marcado para começar as dezoito horas e, com apenas quinze minutos de atraso, Miles Davis adentrou no palco. Ele teve que esperar mais cinco minutos por conta dos frenéticos aplausos do público presente. Emocionado, agradeceu em francês pela bela acolhida. Virou-se para os músicos e com as mãos levantadas sinalizou o início do primeiro “hit”.

A canção que deu início ao show foi “Solar”, uma belíssima melodia em que Miles desfila todo o arsenal de frases melódicas, bem-marcadas pelo piano de René Urtreger, o baixo de Pierre Michelot, a bateria de Kenny Clarke e o envolvente sax tenor de Barney Wilen.

É bem verdade que as músicas deste show se tornaram testemunho perene do estilo envolvente e cativante de Miles Davis. Até porque, elas atestaram a incomparável capacidade de levar os músicos que o acompanhavam para além dos seus limites. Certo mesmo é que Miles Davis se superou nessa apresentação. E para a sorte de toda plateia, ele partilhou o seu talento e a incrível inspiração musical. De fato, foi uma noite para entrar na história.

Terminado o espetáculo, Miles agradeceu a todos e ainda presenteou o público com o bis da antológica composição de Thelonious Monk, “Round Midnight”. Um delírio!

OS ‘FEITICEIROS’ DO NOSSO TEMPO

É certo que cada criatura carrega no seu imaginário alguns mitos e heróis. E mesmo que a gente não queira confessar, no fundo, o ‘encantamento’ por determinadas pessoas ou causas quase sempre ultrapassa os limites da simples admiração.

De fato, meus amigos, desde muito jovem eu me senti ‘abduzido’ em diversos momentos. Algumas vezes, foram ‘causas’ que me encantaram e eu as defendi com profunda determinação. Foi o caso dos movimentos estudantis. Eu ainda era um estudante secundarista e me vi abraçando essa bandeira. E assim, eu lutava pela nossa liberdade e participação nos destinos da educação. Até porque, no mundo inteiro ocorriam manifestações em busca de uma educação de qualidade.

Pouco tempo depois, novamente me vi enredado pelo ‘fascínio’, só que dessa vez era pelo cinema. Sim! Aquela telinha mágica, capaz de nos transportar por mares nunca dantes navegados. Meu Deus, o que foi aquilo? Eu parecia muito mais um daqueles ardorosos membros de fã-clubes que cultuam seus ícones. Afinal, eu e meus amigos aficionados íamos assistir diversas vezes aos filmes “cult” de Jean-Luc Godard, como o “Acossado”, na esperança de aprender a ‘soletrar o mundo’.

Nessa mesma época, eu também descobri o gosto pela leitura e o prazer que ela nos oferece. E durante as descobertas, eu fui encontrando os meus gurus: Rubem Fonseca, Vargas Llosa, Camus, Faulkner, Gabriel Garcia Márquez e tantos mais. Ah, que maravilhoso encantamento! Quanta sedução pode haver em um bom texto?!

Rubem Fonseca, por exemplo, escreveu histórias surpreendentes. Sedutoras. Por isso, é um verdadeiro mestre para mim. Aliás, foi com ele que eu comecei a entender o que é o bom uso das palavras em favor de uma ideia. Rubem mais parece um artesão, pois consegue construir com imensa paciência e dedicação o enredo de suas comoventes histórias. Seus livros estão aí para o deleite de todos. “O cobrador”, “Feliz Ano Novo”, “Lúcia MacCartney”, “Histórias de amor”, “A grande arte” e muitos mais.

Pois é. Já houve quem afirmasse que uma arte só tem total legitimidade quando é capaz de ‘ferir mortalmente’ as percepções alheias, deixando registros permanentes na alma de quem acolheu. Céus… Que verdade! São poucos os que possuem tal virtude. E eles, podemos dizer, são os verdadeiros ‘feiticeiros’.

Se pensarmos bem, essa é uma das grandes razões porque vale a pena viver!

Foto: Em 2003, Rubem Fonseca e Gabriel Garcia Márquez no Prêmio de Literatura Latinoamericana e do Caribe.

PRESTANDO CONTAS A ‘ZEO’

Zeo foi meu irmão. Mas somente até os sete anos de idade. Porquanto ele quis partir mais cedo, talvez em busca de outros acolhimentos, vai saber?! Certo mesmo é que nós tivemos muitas conversas interrompidas. Sim! Conversas que poderiam me propiciar uma visão de mundo mais ajustada. No entanto, não ocorreram… Foi uma pena!

Por conta disso, eu fui obrigado a desbravar as estradas sem saber muito bem como agir, como adequar as rotas. Buscando tornar a travessia mais confortável. Por outro lado, sem os conselhos de Zeo, eu tive que desenvolver métodos intuitivos, bem como a capacidade de avaliação conforme o momento vivido. E isso, meus amigos, nem sempre a gente acerta a mão, não é verdade?

Daí, então, o mundo girou mais um bocado. E pôs à minha frente um sem-número de dúvidas e aflições. Assim, o processo de ‘crescimento’ aconteceu de modo forçado, sem o necessário tempo para depurar pequenas contradições. O que me cabia, quando muito, era ter algumas conversas ‘ocultas’ com Zeo, tentando imaginar quais seriam os argumentos dele para cada episódio enfrentado. Algumas vezes isso dava certo. Mas, nem sempre!

O tempo foi passando e eu cresci de tamanho e de vontade de acertar. O diabo é que quanto mais se deseja acertar, ansiosamente, mais a gente acaba errando… Ah, meu prezado doutor Freud, por quê?! Por que é que a vida não facilita as coisas para os ‘necessitados’ de primeira hora? Por que o mundo não é capaz de ser ‘generoso’ com aqueles que pelejam feito doido em busca de rumos mais suaves?

Bem… O que eu posso dizer, minha gente, é que o processo de crescimento é difícil. Doloroso, até. Tem vezes que dá vontade de desistir e de pedir o ‘colo materno’, na esperança do acalento. Porém, logo a seguir, nós percebemos que “navegar é preciso”! E que temos que pagar o irremediável pedágio para descobrir como conduzir esse aprendizado. Com ou sem medos, com ou sem angústias, o fato é que temos que ‘tocar a vida’. Não há outra maneira!

Contudo, curiosamente, a vida vai nos empurrando pelos becos e esquinas. E de algum modo, ela acaba nos dando a chance de aprender a “soletrar o mundo”. Para que o infortúnio de Drummond não nos bata de forma tão dura: “Quarenta anos e nenhum problema resolvido / sequer colocado. / nenhuma carta escrita nem recebida. / Todos os homens voltam para casa. / Estão menos livres, mas levam jornais / e soletram o mundo, sabendo que o perdem.”

A verdade é que faz muito tempo que Zeo nos deixou. Com ele, foram-se também muitos sonhos e desejos de uma vida mais amena. Paciência, fazer o quê?! O jeito foi encarar a vida e ir à luta. Do melhor jeito que eu pudesse. Agora, se deu certo ou não, aí, são outros quinhentos. O importante foi continuar a caminhada tentando manter o coração íntegro. No fundo, eu acredito que obtive algum êxito, à medida que consigo olhar para trás e não sentir arrependimentos profundos. O que restou foi essa a sensação de que ‘toquei a vida’ com bastante amor e determinação. E isso já me basta, creiam-me.

O que ainda vem pela frente, ah, eu não sei dizer. Sei apenas que o tempo se encarregou de dissipar certas lembranças de Zeo. Ao mesmo tempo, eu guardo a certeza de que tenho a meu lado dois solidários ‘escudeiros’: minha esposa e meu filho. Afinal de contas, eles têm sido a razão dessa caminhada de desafios em busca de novos sentidos, descobertas e alguns prazeres…

Abençoados sejam!

“SUJEITO  DE  SORTE”

Há quem acredite na sorte e no azar. Há quem aposte nas chances de cada lado dessa moeda do destino. Aliás, se pensarmos bem, nós aceitaremos que a vida é assim mesmo: dúbia e cheia de idas e vindas. Repleta de certezas e incertezas. De alegrias e tristezas. Porquanto tudo isso faz parte dessa surpreendente estrada, não acham? Por isso mesmo, ela seja o nosso maior desafio e o mais importante ‘objeto do desejo’.

Os poetas, criaturas cuja visão de mundo ultrapassa os limites do nosso entendimento, costumam dizer que o melhor da vida é viver. Sim! Eles têm razão, creio. Afinal, sem o medo de errar aqui e acertar acolá, no fundo, eles desafiam a própria sensibilidade.

Porém, eu não sou poeta e nem pretendo arriscar banalmente a minha cota de sorte. Vai que ela não me dê uma segunda oportunidade, como eu fico?! Então, prefiro conduzir a vida de modo mais sereno. Até porque, convenhamos, eu já não tenho idade para alguns riscos…

Isso não quer dizer que a minha vida seja monótona ou sem graça. Não, muito ao contrário! Eu gosto do que faço, podem acreditar. E não tenho dúvida em declarar que aprecio intensamente o jeito que aprendi a ‘soletrar esse mundo’ ao longo do caminho.

Belchior, meu querido conterrâneo, certa vez cantou em verso e prosa: “Presentemente, eu posso me considerar um sujeito de sorte / Porque apesar de muito moço / Me sinto são, e salvo, e forte… / Tenho sangrado demais / Tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri / Mas esse ano eu não morro.”

Pois é, minha gente. Recentemente, eu festejei o centenário do meu velho pai. E percebi que ele soube conquistar, com sabedoria, essa marca extraordinária. Por conta disso, se a genética for condescendente, eu também pretendo chegar lá. Para tanto, é preciso manter o foco e cuidar da saúde física, mental e espiritual. Aproveitando cada pedaço desse chão percorrido e se preparando para o que vem pela frente.

Sei bem que não é uma peleja fácil de encarar. Até porque, as ‘forças contrárias’ estarão presentes, dificultando a empreitada em cada momento do trajeto. Nas esquinas do caminho, sempre haverá um desafio. E em cada estação do ano, por certo, os ventos soprarão fortemente que é pra ver se somos capazes de resistir.

O que eu posso dizer, meus amigos, é que descobri o meu lugar nesse mundão de Deus. E assim como Belchior percebeu, eu também poderia cantar: “Não você não me impediu de ser feliz / Nunca jamais bateu a porta em meu nariz / Ninguém é gente / Nordeste é uma ficção / Nordeste nunca houve. / Não, eu não sou do lugar / Dos esquecidos / Não sou da nação / Dos condenados / Não sou do sertão / Dos ofendidos / Você sabe bem / Conheço o meu lugar!”

POR TRÁS DAS GROSSAS LENTES

Eu nem saberia dizer a quanto anos uso óculos. Pudera! Já faz tanto tempo que eu chego a pensar que nasci com eles. No entanto, é preciso reconhecer que não é lá um objeto confortável, isso sim, pois incomoda um bocado. Seja pelo peso em cima do nariz, seja pela obrigação de sempre limpar as famigeradas lentes.

Aliás, lembro até que foi no curso ginasial que experimentei o primeiro deles. E confesso que havia em mim um dúbio sentimento: o prazer de ver as coisas com nitidez, contrapondo-se à vergonha e raiva de ser apelidado por ‘quatro-olhos’. Sabe como é? É bem verdade que adolescente é uma raça preconceituosa. Basta uma pequena diferença em relação ao senso comum e, por certo, haverá imediatamente um dedo apontando para você. Como se o outro tivesse cometido um ‘delito’ irreparável ou carregasse uma ferida aberta que nunca mais cicatrizará…

O que sei dizer é que eu estava pensando nisso tudo quando veio a vontade de rever o belíssimo filme de Woody Allen, “Meia-noite em Paris”. Ah, minha gente, o filme é uma maravilhosa viagem no imaginário das criaturas. Porquanto desde o início da história a gente se sente ‘raptado’ pela atmosfera criada por Woody Allen. Sim! Quem há de resistir àquelas imagens de uma Paris encantadora e plena de “glamour”? Quem não se renderia ao entrar em ‘bistrô’ parisiense e encontrar Francis Scott Fitzgerald? E mais: quem não se imaginou sentado em um café, às margens do rio Sena, sendo recebido por Ernest Hemingway, Pablo Picasso e Luís Buñuel?!

Céus… o que sei dizer é que “Meia-Noite em Paris” é um prazer cinematográfico do início ao fim. Afinal, a atmosfera criada por Woody Allen, amparada em extraordinária trilha sonora, lentamente vai tecendo a teia de uma recorrente sedução. Além disso, o elenco é primoroso e o desempenho dos atores e atrizes, seguramente, facilitou o trabalho do diretor. Até mesmo a semelhança física de ‘Cole Porter’ foi contemplada pela delicada interpretação de Yves Hack.

Pois é, meus amigos. Sorte a minha ter lembrado desse filme ontem à noite. Só assim eu pude dormir com um invejável sorriso de satisfação. Deitado em minha cama, eu repassava cada cena imaginando como seria bom estar naquele ‘set de filmagem’.

Isso, porém, não foi problema. Até porque, de um jeito ou de outro, eu acabei me encontrando com eles. Sim. Todos eles! Pois saibam, então, que após o filme, eu brindei com Joséphine Baker ao lado da animada Gertrude Stein. Eu abracei festivamente os amigos Salvador Dali e Henri Matisse. Conversei com o poeta T.S. Elliot e, de quebra, combinei outros encontros com várias figuras da “Belle Époque”. Como fiz isso? Putz… eu rogo que me perdoem, mas… isso eu não posso contar!

UÍSQUE  DE  ‘TERCEIRA’

Eu nasci em Fortaleza, no Ceará, em 1951. No entanto, confesso a vocês: no meu imaginário, eu devia ter nascido em 1851, às margens do Mississipi, em New Orleans. E ao completar seis anos de idade, céus, eu receberia de meus pais um trompete de presente. Contudo, paciência! Quis o destino que eu nascesse cem anos depois e às margens do barrento Jaguaribe, no velho Ceará. Pior ainda: não recebi presente algum de aniversário… Quem sabe, apenas um aperto de mão?!

Não, meus amigos, não estou aqui a reclamar da infância distante e tampouco das minhas raízes nordestinas. O diabo é que esse uísque paraguaio me pegou de jeito e botou as emoções na roda. Sabe como é?! Ouvir essa turma tocar “Just a closer walk” com a mesma emoção dos velhos “bluseiros” do Mississipi, quem há de resistir? O que sei dizer é que continuo sonhando com o trompete. Sim! Eu ali, sentado nas improvisadas cadeiras, esperando que alguma alma solidária aprecie o som e nos ofereça sorrisos, palmas e, de quebra, algum dinheirinho para o almoço que insiste em se anunciar.

Pois é. Destino é destino e não se pode cobrar muito dele, não é verdade? Além do mais, não estou aqui para reclamar de nada. Muito ao contrário. Eu acredito que tenho recebido bem mais da vida do que mereço. E de mais a mais, convenhamos, a nossa missão nesse percurso é procurar aprender a ‘soletrar o mundo’ de modo conveniente… Com sorte, haverá um dia em que poderemos ler em voz alta tudo aquilo que aprendemos no caminho. Oxalá!

“IN VINO VERITAS”

O ano era 1972. Um ano morno, onde pouca coisa importante aconteceu. Segundo consta, após 27 anos sob administração dos Estados Unidos, Okinawa era devolvido ao Japão. E em setembro, céus, aquele desumano ‘Massacre de Munique’, o atentado contra a delegação de Israel nos Jogos Olímpicos. Já no âmbito caseiro, nós tivemos em São Paulo a morte de 16 pessoas e mais de 300 feridos no maior incêndio da história da cidade até então. Além disso, tivemos a consagração de Emerson Fittipaldi, campeão mundial na Fórmula 1. Tivemos também a perda da nossa atriz, Leila Diniz, que quebrou velhos tabus e paradigmas sociais…

Mas o que eu queria contar mesmo é sobre o ‘controvertido’ Ibrahim Sued. Sim, minha gente. Afinal, ele dominou o noticiário durante décadas e protagonizou diversos episódios no cenário nacional. Um deles, juro, eu presenciei. E conto pra vocês!

Tudo começou quando meu pai, hoje centenário, sentiu necessidade de ampliar o orçamento, uma vez que eram oito bocas famintas para alimentar. Isso sem falar de roupas, remédios e o escambau. Então, ele aceitou o convite de um conhecido audiófilo para assumir o controle da mesa de som do refinado clube “Rio de Janeiro Country Club”, em Ipanema. Como papai era especialista em alta-fidelidade, e a ‘graninha’ era boa, ele topou o desafio, mesmo sabendo que o ambiente era extremamente sofisticado e burguês.

Uma vez por semana papai tinha o compromisso de passar no salão principal para ajustar todos os equipamentos sonoros do clube. E algumas vezes eu o acompanhei nessas missões. Lembro que eu me sentia um “peixe fora d’água”, uma vez que os olhares de ‘estranhamento e desprezo’ ocorriam a todo momento.

Sim! Eu estava querendo contar o causo do Ibrahim Sued. De fato, isso ocorreu numa daquelas pomposas cerimônias de ‘recepção’ a uma embaixatriz de algum país esnobe. Tudo era glamoroso: cristais, talheres e pratarias, além das roupas que saiam nas capas de revistas. Assim, nós nem nos atrevíamos sair da sala de controle do som.

Lá pelas tantas da noite foi servido o jantar. E as melhores marcas de vinhos tiveram suas garrafas abertas. Tudo isso, é claro, dentro dos rituais altamente burgueses. O “maître” anunciava os vinhos que seriam servidos: “Château Margaux – 1966”, “Chateau Mouton Rothschild – 1968” e o renomado “Châteauneuf-du-Pape – 1970”. O “sommelier” contratado pelo clube exaltava as qualidades de cada marca. Até que ocorreu o maior imbróglio na mesa da embaixatriz. Foi quando o “maître”, aproveitando a presença de Ibrahim Sued, serviu a primeira taça de degustação para a aprovação ao colunista social. Ibrahim deu um leve gole e após alguns segundos de avaliação, decretou a sentença: “O vinho está levemente passado!”

Aí, foi um “Deus nos acuda”, meus amigos. Era gente correndo pra todo lado, com cara de espanto como nunca se viu. Chamaram o “sommelier”, o “maître” e quem mais pudesse abafar aquele mal-estar. No fim das contas, todos concordaram com o indefectível Ibrahim Sued: o vinho estava, de fato, ligeiramente passado. Na cabine de som, eu e meu pai morríamos de rir da situação…

PS. É bom lembrar que essa é uma obra de ficção. Portanto, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência…

“A SURPRESA DO INESPERADO” (*)

*(Ao extraordinário Miguel Falabella, que deu asas a imaginação e voou… voou como poucos!)

Ontem foi o “Dia dos Pais”. Além de receber o beijo e o abraço do meu querido filho, eu aproveitei para ligar para o meu centenário pai. No entanto, ele estava triste, bastante agastado com a artrose nos dedos da mão direita. E isso tem dificultado muito o processo de digitação dos seus textos no computador. Eu sugeri, inclusive, que ele ditasse os textos no editor e, assim, só fizesse os pequenos acertos pelo teclado. Fiquei até de enviar um ‘passo a passo’ para ele fazer uso do recurso.

Depois, fomos visitar o meu sogro e minha sogra na casa deles e almoçarmos aquele churrasco que só ele sabe fazer. É sempre prazeroso o almoço familiar na casa deles. Temos a oportunidade de renovar os laços de afeto e de estima. Além disso, hoje em dia, eles representam a minha família.

Então, após o banquete das ‘pecadoras’ sobremesas, eu fui para a sala de TV e pluguei o “pendrive” na televisão. A ideia era assistir ao seriado “Pé na Cova”, do criativo Miguel Falabella. Aleatoriamente, eu escolhi o episódio “A Surpresa do Inesperado”. Daí, minha gente, eu fui bombardeado pelo talento daqueles monstros sagrados. Céus! Amparados em um texto criativo e bem escrito, o elenco consegue nos seduzir inteiramente. Aí, veio a primeira bomba do personagem Juscelino: “É preciso mudar constantemente para se permanecer fiel a si mesmo!”

Eu quase caí da poltrona. E nem havia me recuperado, quando ele soltou outra: “Aliás, a única constância do universo é a mudança!” Foi quando eu dei uma pausa na TV e me levantei para beber água, algo providencial. Afinal, eu intuía que aquele episódio iria mexer com as emoções… Com todas elas!

Ainda atordoado, ao retornar, eu me deitei na poltrona e me estiquei todo, buscando o relaxamento total. Contudo, Ruço, nesse exato instante, indagava com sofreguidão para Darlene: “O que que eu vou fazer da minha vida, Darlene?” E de bate-pronto, Darlene declarou: “Eu sei que você está no fundo do poço. Mas, pensa que daí tudo passa. O ‘vento do inesperado’ assoprou. E derrubou tudo que tinha de derrubar. E agora, Ruço, a gente vai construir tudo outra vez!”

“Ué, Ruço, você vai continuar de pé, como sempre esteve… O que que é isso? Nós somos a sua família e vamos lhe ajudar. Se o ‘vento do inesperado’ derrubou a nossa casa, a gente reconstrói todas as paredes de novo!”

Nesse exato momento, a porta do quarto se abriu e meu sobrinho, Pedro, ficou me olhando longamente. Curioso, eu perguntei: “E aí, Pedro, como anda a vida?” Pedro, então, entrou na sala e deitando-se no sofá respondeu: “Tio, eu estou numa sinuca de bico. Todos acham que pelo fato de meu pai ser um renomado cozinheiro, eu tenho que seguir os passos dele, entende?

Eu franzi a testa e me lembrei da frase de Darlene, quando dizia: “Eu mudei. Desde que eu resolvi não perder mais meu tempo na escuridão. O tempo e o mundo mudam, e eu vou mudando junto.” Lembrei também da sentença proferida por Juscelino: “São as raízes do taoismo, Darlene. Mudar sem alterar a rota. No fundo, no fundo, o foco não está no caminho. Está no caminhar, entendeu?”

Por fim, ao perceber o olhar perplexo de Pedro, eu reproduzi a fala final de Juscelino: “As famílias precisam respirar, aumentar seus horizontes para continuar famílias. Mudar para continuar a ideia original, entende?”

Só sei que Pedro me abraçou e, emocionado, agradeceu a força recebida. Acredito até que tenha saído da sala mais fortalecido e confiante. Por outro lado, enquanto eu desplugava o “pendrive” da TV, relembrava os diálogos do episódio. E nos meus pensamentos, eu agradecia a ajuda ‘involuntária’ de Miguel Falabella. Valeu, parceiro. Valeu mesmo!

A PSICANÁLISE E A REDENÇÃO DOS CONFLITOS

Há quem faça pouco caso sobre as premissas básicas da psicanálise, principalmente, no que diz respeito às repetições de modelos dos pais. Até aí, nada demais. Eu também devo ter incorrido nessa postura em algum momento da vida. Quem sabe acreditando ser exagerada a ideia de que os filhos buscam ‘repetir’ os exemplos dos pais?

Contudo, quanto mais a gente vive, mais consegue perceber o valor dessa premissa. E não estou aqui fazendo nenhuma contestação ao modelo paterno que herdei. Não! Como dizia Caetano – ‘cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Por isso mesmo, cada criatura deve dar conta do seu legado: tanto das heranças quanto das pendências inerentes. Até porque, esse legado será carregado nas costas por muito tempo, uma vez que essa estrada pode ser longa. E até traiçoeira. Afinal, durante o percurso, ela chega a ‘tramar’ contra o nosso destino. Vai entender?

O que importa, na realidade, é que não há nada de errado nesse processo. É preciso, tão somente, aprender a separar o ‘joio do trigo’. E assim, tornar o percurso mais ameno e proveitoso. Alguns poderão dizer: “aí é que mora o problema, Carlos!” Sim, sei disso. Aliás, nesse quesito, quando a gente não consegue mais dar conta da contabilidade emocional, o jeito, então, é apelar para ajuda externa. Ou seja, a psicanálise. Com isso, delega-se ao indefectível ‘divã’ o poder de nos conceder o salvo-conduto. Paciência, minha gente!

Também é verdade que essa escolha nos cobrará um alto preço a pagar. O diabo é que o preço cobrado não pode ser lançado em nenhuma planilha, pois a moeda contábil é outra. Céus! A partir daí, embarcado nessa nau redentora, ah, ninguém escapa ileso dos embates da terapia. Porquanto a prestação de contas se arrasta por um longo tempo. Somente depois disso é que receberemos o ‘alvará de soltura’. Ou a ‘carta de alforria’, como preferem alguns amigos do ramo.

Por fim, vejam vocês, foi assistindo ao belíssimo filme italiano, “Já era hora”, que eu pude realizar alguns aspectos concernentes ao tema. De fato, o filme é surpreendente. E nos arrebata desde o início da história. É que ao mesclar fantasia e realidade em prol de uma história diferente, o espectador é seduzido a se deixar levar pelo enredo. Sendo assim, quando menos espera, ele acaba sendo ‘raptado’. Inteiramente. Raptado pelo delírio da proposta. Raptado pelo desempenho dos atores. Até mesmo pelo final do filme que a gente até consegue prever, mas que ainda assim acolhe com todo endosso… Vida que segue!

(Ilustração da internet)