JOÃO PEDRO E AS CONVERSAS

João Pedro veio nos visitar. De quebra, ele veio matar as saudades que estávamos sentindo. No entanto, sempre que ele vem passar o dia conosco, é verdade, somos nós que aprendemos com ele. É que o ‘neguinho’ é danado de esperto e sempre nos surpreende!

Hoje de manhã, ao acordarmos para o café, sentamos eu, ele e a avó para um gostoso e demorado café da manhã. Isso porque, animado do jeito que ele é, qualquer momento é propício para novas ‘descobertas’. A dessa manhã, por exemplo, foi sensacional.

A conversa fora estabelecida por conta da distinção entre país, cidade e bairro. Eu explicava ao João Pedro que existe o planeta Terra, dentro dele existem os continentes, os países, estados, cidades e bairros. Ele ouvia tudo sem piscar um olho sequer. Aí, eu pedi para ele repetir a sequência hierárquica: Terra, América do Sul, Brasil, Santa Catarina, Florianópolis e Campeche. Então, eu perguntei: “João, se alguém perguntar onde você nasceu, o que responderá?”

De bate-pronto, ele respondeu com orgulho: “vô, eu nasci do médico!”

Pronto! Demos uma longa e prazerosa gargalhada. E ele, feliz por nos ver sorrindo, entrou no clima e ficou gargalhando conosco…

João Pedro e os desenhos
Na cama que ele dormiu, o Tigrão permanece vigilante…

NO CORAÇÃO DO BRASIL

Eu nem precisei ouvir o relato do companheiro Ênio para saber que o ‘cerco’ havia se intensificado. Paciência! No fundo, é preciso aceitar que isso faz parte do jogo. Porquanto o papel ‘deles’ é de nos procurar e o nosso é de se esconder. Aliás, a vida da gente é assim mesmo, não acham? Em tudo que observamos no mundo, convenhamos, tem sempre o lado certo e o avesso. Tem o forte e o fraco. O bom caráter e o mau caráter e outras coisas mais que não vêm ao caso… Por isso, nós nunca ligamos para o estardalhaço que eles faziam. Preferíamos, isso sim, permanecer reservados, com poucas conversas. Afinal, nesse ramo de negócio, meus amigos, a ‘discrição’ é fundamental.

Mesmo assim, por precaução, nós resolvemos adotar algumas medidas, sabe como é?! Nunca se deve pôr em dúvida do que são capazes esses ‘pilantras’. Lembro até quando foi a vez do ‘Berimbau’. Eles foram para as rádios e TVs e falaram um monte de sandices. Disseram até que foi a mãe do coitado do Berimbau que havia dado o serviço, fornecendo informações sobre o paradeiro do filho. Sacanagem! Foi uma tremenda injustiça… Qual mãe deseja ‘entregar’ o filho? Ainda mais um filho carinhoso como ele? Conversa fiada, isso sim! Dona Odete era de total confiança e jamais denunciaria o filho. O que eles queriam, na verdade, era provocar a discórdia entre nós. A velha técnica de nos dividir, semeando desconfianças. Mas, pra cima da gente, não. Nós somos ‘escolados’!

Por sinal, foi Ênio que lembrou o pensamento do livro de Sun Tzu, “A arte da guerra”. Segundo constava no livro: “A guerra é um dos assuntos mais importantes do Estado. É o campo onde, a vida e a morte são determinadas. É o caminho da sobrevivência ou da desgraça de um Estado. Assim, o Estado deve examinar com muita atenção este assunto antes de buscar a guerra.”

Pois é. De certo modo, essa questão é até muito simples e não requisita ‘criar planos mirabolantes’. Até porque, a vida em comunidade exige determinadas ‘posturas’, certos compromissos. E quem topa viver aqui, ah, sabe muito bem quais regras deve seguir. De mais a mais, essa guinada que a vida deu não é culpa de ninguém. No caso do Chau, vejam vocês, foi ele que escolheu viver assim… Antes disso tudo vir à tona, devemos reconhecer, ele era um bem-comportado professor de química, que dava quarenta aulas por semana em cinco escolas diferentes. Mesmo assim, o pobre coitado vivia endividado, encalacrado até o pescoço… Cheio de empréstimos para pagar!

Mas não estou aqui ‘chorando pitangas’. É da vida, seu moço! O diabo é que a gente não pode relaxar um minuto sequer. E foi o que na verdade aconteceu. Eu conto a vocês.

Depois daquele último assalto ao Banco Boavista, ali no começo do Estácio, ele jurou que iria dar um tempo. Afinal de contas, o dinheiro arrecadado foi muito bom: mais de duzentos mil cruzeiros! No entanto, os ‘filhos da puta’ divulgaram que os assaltantes levaram mais de quinhentos mil cruzeiros. Miseráveis! Eles se aproveitam de tudo! Até do roubo alheio, vejam vocês… Seguramente, algum gerente pilantra aproveitou para tirar a ‘casquinha’ dele!!

Depois do assalto, eu me encontrei com o Chau perto da pedreira, seu local preferido. É que lá de cima ele podia controlar todo o movimento do morro. Foi quando ele me mostrou os contracheques dos salários. Céus! Somados, não chegavam aos oitocentos cruzeiros e só de empréstimo, minha gente, havia mais de trezentas pratas. Talvez, por isso, ele fosse tão revoltado com o ‘sistema’, uma vez que os donos das escolas, estes sim, iam todos os anos para a Europa passar as férias. E ele, na merda, nunca viajou para além de Muriqui…

Sim. Mas eu estava contando sobre o cerco que eles fizeram. O que posso dizer é que eram mais de dez ‘camburões’ nas imediações do São Carlos. Até aí, tudo bem: nós já estávamos acostumados e sempre tivemos ‘sangue-frio’. Não nos impressionávamos com aquele ‘aparato’ todo. O que não contávamos, porém, era com a ‘deduragem’ de antigos parceiros. E o desgraçado do ‘Pará’ nunca inspirou confiança na rapaziada…

Os primeiros tiros vieram da região da curva da pedreira. Nós nem revidamos, pois não queríamos confirmar a nossa localização para os ‘meganhas’. Passava um pequeno intervalo de tempo e, a seguir, já se ouvia outra série de tiros. Foi quando o Chau cometeu o grande erro. Resolveu pular o muro e ir para a rua de trás em busca de um melhor plano de fuga. Contudo, veio a rajada certeira e duas ou três balas atingiram o peito dele. Caiu do muro, já com o olhar perdido…

Pode até ser que ele estivesse pensando na mãe e na tristeza que ela iria sentir. Ou, quem sabe, lembrasse de Belinha e dos sonhos do casamento nunca realizado?! O certo é que ele só teve tempo de ouvir os últimos versos de Luiz Melodia, vindos de algum lugar: “O pôr do sol / vai renovar, brilhar de novo o seu sorriso / E libertar / da areia preta e do arco-íris cor de sangue, / cor de sangue, / cor de sangue …”

Imagem: o velho morro do São Carlos, no Estácio.

“MADE IN BRAZIL”

“Todos nós ficamos profundamente ‘envaidecidos’ quando um brasileiro faz sucesso em outros cantos. Seja lá em que modalidade for: do futebol ‘encantado’ de Pelé aos acordes maravilhosos de Tom Jobim. Tudo é motivo de comemoração. Talvez, quem sabe, isso sirva para aplacar o nosso atávico ‘complexo de vira-lata’, que Nelson Rodrigues tão bem escancarava em suas crônicas?!

O certo é que nós brasileiros, desafortunadamente, introjetamos de tal modo esse ‘complexo’, que ele se tornou recorrente. No fundo, é uma lástima, isto sim. Porquanto menospreza a nossa capacidade de criação, ‘constrangendo’ o talento brasileiro nas mais variadas manifestações…

Contudo, de vez em quando surge na praça uma dessas ‘pérolas’, nascidas com selo de ‘joia rara’ e cuja lapidação ocorreu na origem. E são elas que nos relembram a brasilidade esquecida, muitas vezes, ultrajadas pelos nossos ‘conterrâneos’. Pelo menos, eu vi isso acontecer inúmeras vezes, meus amigos. E sempre me senti ‘acabrunhado’ e impotente para refutar o desdém estabelecido. Como se nós não tivéssemos o direito de brilhar em qualquer domínio.

Com isso, foram necessárias incontáveis gerações para, enfim, quebrar essa ‘sina’. E devolver ao povo brasileiro o grande contentamento de se atribuir ‘valor’. Resgatando assim a autoestima que fora extraviada ao longo da história. Ainda bem!

Para ilustrar o tema, quero lembrar o exemplo de Victor Assis Brasil. Nascido no Rio de Janeiro de 1948, Victor iniciou-se muito cedo na música. Primeiramente na gaita, depois veio a bateria e, por fim, assumiu o saxofone alto. Aos vinte anos de idade, ele já tocava profissionalmente e impressionava pelo talento e criatividade. Daí até frequentar a conceituada “Berklee College of Music” foi só um instante.

Esse disco, “Jobim”, produzido pelo meu falecido amigo Roberto Quartin, é a mais plena comprovação do talento de Victor. Basta ouvir a forma como ele conduz ‘Wave’, ora profundamente intimista, ora assumindo a influência de Charlie Parker nos fraseados ‘nervosos’ e quase dissonantes. A seguir vem na sequência “Bonita” e “Dindi”. Aí observamos um Victor mergulhado no lirismo musical das extraordinárias composições de Jobim. Um delírio!

Para encerrar o disco, Victor nos apresenta a “pièce de résistence”: uma linda composição criada para homenagear Roberto Quartin, intitulada “Quartiniana”. Nela podemos perceber o lado mais erudito de Victor Assis Brasil, desenvolvido nos cinco anos em que estudou em Berklee.

Até hoje os americanos prestam reverência ao talento de Victor. Mas, para nossa sorte, ele foi e sempre será “made in Brazil”…

https://www.youtube.com/watch?v=cNdwSZTiu7g

UMA HISTÓRIA SEM GRAÇA

Eu bem que alertara ao terapeuta o quanto isso ainda me incomodava, apesar dos mais de quarenta anos decorridos. E aí, fazer o quê?! Pode ser que para outras pessoas isto não tenha tanta importância assim… mas, para mim, que sofri na pele o sufoco… ah, deixa disso! Verdade é que nem sei por que estou falando desse episódio. É que, no fundo, vira e mexe, essas lembranças voltam aos meus pensamentos… Então, calma aí, que eu explico!

O ano era 1955. Eu e toda minha família estávamos viajando do velho Ceará com destino ao Rio de Janeiro, onde o meu pai nos aguardava. Só que naquela época o Mar Morto não estava nem doente, ou seja, o famigerado avião tinha que pousar de hora em hora para abastecer, pois era uma verdadeira carroça! Muito bem. É até fácil imaginar a cena: a pobre coitada da mãe carregando seus cinco filhos sob as asas, sendo que o mais velho tinha apenas dez anos. Já viram, né?! Na segunda das quatro paradas para reabastecer a bendita “aeronave” da Real Aerovias Brasil, todos tinham que desembarcar e ir para o saguão do aeroporto, como era o procedimento. A seguir, aguardava-se meia hora e depois embarcávamos novamente. Só que de lá para cá esse ritual se repetiu algumas vezes. Então, é fácil prever que em alguma parada dessas haveria ‘encrenca’. Pois é. Sucedeu em Recife, meus amigos. Lembrem-se que eu tinha apenas quatro anos e jamais imaginaria ser protagonista do “Esqueceram de mim – Zero”… O que sei é que todos os cinco, minha mãe e os quatro irmãos, entraram naquele ‘14 Bis’. Menos eu! Ao que tudo indica, eu fiquei perambulando pelo saguão do aeroporto, atrás de comida ou coisa assim, e não me dei conta da partida. Só sei que o avião estava taxiando na pista para levantar voo e minha mãe virou-se e contou os filhos: “Céus! Está faltando um! Tá faltando um filho meu, aeromoça!”

Vocês podem imaginar o ‘alvoroço’ que deve ter ocorrido a bordo. O piloto dizendo que não poderia mais voltar e minha mãe ameaçando até puxar a ‘peixeira nordestina’ que não possuía. Mas, naquele momento de sufoco, ela jurava que estava guardada na enorme bolsa que conduzia. A confusão foi tanta que até ‘Boletim de Ocorrência’ foi lavrado na delegacia do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, local de chegada. Enquanto eu, devo confessar, já me encontrava algemado pelo segurança do aeroporto do Recife, pois o escarcéu que aprontei não estava no mapa… Bem, minha gente, para encurtar a prosa, o que eu posso dizer é que naquela época era comum tratar os meninos de rua de ‘moleques’ ou, como se dizia no Ceará, de ‘canelau’. O fato é que eu, no percurso da vida, demorei um bocado para expurgar o ‘canelau’ que havia em mim. Para isso, foram precisos mais de sessenta anos vida, muita ajuda e uma ‘sorte’ enorme marcada no meu destino. Lá, isso sim!

Em fevereiro próximo, eu retornarei pela primeira vez ao aeroporto de Recife para uma temporada de férias com a minha nova família. Espero, contudo, que os velhos ‘fantasmas’ não estejam lá… Não mais!

PELOS TRILHOS DA VIDA

Quando eu era menino havia uma coisa que me dava imenso prazer: andar de bonde. Mas, cá entre nós, não se tratava de ir de bonde para a escola ou para o cinema. Nem mesmo como transporte para ir ao Maracanã ver o meu Flamengo sofrer nas disputas. Não, minha gente! O que realmente me dava prazer era pegar o bonde que ia do Estácio até a Muda da Tijuca – fim da linha – e observar as pessoas. Sim! Observar e criar histórias envolvendo aquelas criaturas. Meu Deus do Céu, que coisa maravilhosa era esse exercício, podem acreditar.

É bem verdade que algumas vezes eu não tinha sucesso. Seja porque os transeuntes não ajudavam ao meu imaginário, seja porque havia alguma interferência no momento da criação da história. O mais importante de tudo era a sincronização dos eventos, pois assim as peças se encaixavam com delicadeza no ‘enredo’ inventado. Com isso, as cenas observadas propiciavam a construção de pequenos dramas ou hilariantes comédias, que para outros olhos não fariam sentido. Na realidade, o que valia era a sorte de conseguir o encaixe perfeito entre a cena real e a fantasia das minhas imaginações…

Lembro até que essa brincadeira envolvia um determinado risco, uma vez que para ir e voltar nessa linha de bonde demandava mais de duas horas de percurso. Isso porque o bonde não era um transporte veloz, convenhamos. A velocidade máxima dele atingia entre 20 e 30 km/h. Além disso, existiam as paradas obrigatórias em cada ponto. Assim, juntando uma coisa à outra, já viram, né?! Eu tinha que sair de casa logo após o almoço, por exemplo, para retornar lá pelas quatro da tarde. Caso contrário, haveria encrenca em casa!

Outra coisa que me ocorre é dizer que esse passeio se assemelhava, de algum modo, a uma sessão de terapia, com direito ao divã autoconcedido. Afinal, à medida em que se está construindo ‘enredos’ para as histórias dos outros, no fundo, acaba-se alimentando às nossas próprias, ocorridas ou não! Além disso, ‘viajar’ na imaginação, de um jeito ou de outro, libera as nossas emoções represadas. E, de quebra, drena muitas dores. Lá, isso acontece!

De fato, eu estava aqui me recordando disso tudo e, de repente, algumas lembranças daquele tempo me vieram a mente. Como no caso do “Rei do Cuscuz”. Eu explico. É que sempre que eu passava pelo Largo da Segunda-Feira, no meio da Tijuca, percebia a subida no bonde de um homem muito forte, todo vestido de branco, que trazia na cabeça um enorme tabuleiro contendo “Cuscuz branco” e “Quebra-queixo”. E como ele era bastante conhecido pelos passageiros, foi apelidado de “Rei do Cuscuz”.

Só que a vida não anda em linha reta, meus amigos. Não é que após alguns meses fazendo esse percurso a gente acaba sabendo de um bocado de coisas. Muitas delas, é verdade, tem maledicência embutida. Ou inveja, que é pior ainda!

O que sei é que o coitado do trabalhador, sempre gentil e simpático com todos, acabou se tornando pivô de um caso bem sinistro. É que ele descia, aleatoriamente, em diferentes pontos, quem sabe, por estratégia de venda?! O certo é que ele botava o tabuleiro na cabeça e anunciava os produtos com um vozeirão que fazia sucesso. Até que um dia uma bem-apanhada morena, que morava próximo a Igreja dos Capuchinhos, o chamou e pediu uma fatia de cada. Dizem que o “Rei do Cuscuz”, como de hábito, contou alguns causos engraçados. Ela sorriu bastante e os dois se despediram alegremente. Segundo consta, isso aconteceu durante mais de um ano.

Porém, em um determinado dia eu percebi que o bonde se aproximava da casa da morena. Aí, já desconfiado nas minhas fantasias, fiquei sentado na ponta do banco para poder olhar cuidadosamente o encontro deles. Por coincidência, foi quando o bonde parou e o motorneiro saiu para ajustar o cabo da rede elétrica. Nesse exato momento, eu vi o “Rei do Cuscuz” saindo apressado da casa da morena. Logo atrás dele, veio o marido dela. Pelo menos, era o que a minha imaginação estabelecera. E eu confiava nisso!

Então, dois tiros foram disparados à queima-roupa. E o pobre trabalhador caiu na calçada. Um corre-corre danado de gente curiosa e os gritos da mulher: “seu cretino! você matou o meu grande amor!”

No dia seguinte, ao ler as notícias do jornal, eu confirmei as suspeitas: “Delegado ciumento mata o amante de sua companheira. Não aguentava mais sofrer humilhações!” Deixei o jornal de lado e comentei com o Luiz Henrique: “tá vendo, meu chapa? Não erro uma só história inventada. Quando eu imagino um enredo para uma cena, pode acreditar: acerto sempre!”

Luiz Henrique, por sua vez, sorriu discretamente e saiu balançando a cabeça… Talvez, ele tenha pensado: “Esse Chau é uma peça rara. Que eu saiba, essa foi a primeira história que ele acertou!”

PARA ALÉM DO TÚNEL

Dizer que estava nervoso, cá entre nós, eu nem posso. Até porque eu entrei naquele ambiente movido pelos melhores sentimentos. E como cheguei cedo, procurei me sentar bem longe da TV que havia na sala de espera, pois não queria interferência alguma. Olhei para o lado e percebi a minha mulher sorrindo discretamente para mim, quem sabe, desejando elevar o meu espírito? Mas, na verdade, isso nem era necessário, meus amigos.


Decorridos quinze minutos, o meu nome foi chamado e, desse modo, apresentei-me para a grande ‘peleja’. A atendente, bem jovem, pegou-me pelas mãos e, carinhosamente, conduziu-me para a sala do exame. Indagou se eu estava nervoso. Respondi que não. Aí, ela me perguntou se era a primeira vez que eu fazia o procedimento. Respondi: espero que seja a primeira e única!


Ao me deitar na desconfortável maca, pedi um cobertor para a atendente, uma vez que o ar-condicionado estava incomodando um bocado. Enquanto o técnico não chegava, aproveitei para pôr os pensamentos em dia. Logo de cara, lembrei-me da vez que acompanhei a minha mãe nos exames pré-operatórios. Tadinha! Ela estava desassossegada e, por conta disso, não parava de falar comigo. Eu apenas sorria para ela e dizia que tudo iria sair bem. Mas, para nosso infortúnio, apesar do nosso desejo e torcida, não foi bem assim que ocorreu…


Aí, ao se iniciar o exame, o técnico recomendou que eu respirasse bem lentamente e procurasse não me mexer. Foi quando eu lembrei da minha viagem de transferência do Rio de Janeiro para Florianópolis, em 1997. Na época, eu tinha 46 anos de idade e, após um fim de casamento, eu trazia na mudança um punhado de esperanças para a nova etapa da vida. De algum modo, ainda que houvesse dor e frustração, eu confiava nos meus ‘anjos da guarda’ para o que vinha pela frente. Fosse o que fosse!


Em seguida, eu me recordei do nascimento do meu único filho, Gabriel. Lembro que eu o peguei pelas mãos e, tal qual a cena do filme “A sombra e a escuridão”, levantei a criança e balbuciei com orgulho: ‘filho, seja muito bem-vindo em nossa vida”! Como resposta, Gabriel abriu os olhos e, embora enxergasse pouco, permaneceu olhando em minha direção. Longamente…


É bem verdade que o barulho daquela máquina era infernal. E interferia nos meus pensamentos. Portanto, foi preciso muita concentração para me ‘esquecer’ daquele ruído. Para isso, eu respirava o mais pausado que podia, buscando limpar a mente de pensamentos estranhos. Sentia-me quase como um hindu em busca da concentração, paz e foco.


Por fim, enquanto os últimos minutos do exame corriam, lembrei-me dos planos para a aposentadoria. O combinado que eu tinha com a vida era: ao completar setenta anos, venderia o apartamento da praia, quitaria as dívidas e iria morar na Itália por algum tempo. A partir daí, se tudo corresse bem, eu viria de quando em quando abraçar o filho e o neto. E acima de tudo, cumpriria alguns novos mandamentos: esquecer que fui professor por mais de trinta anos. Esquecer que mudei de cidade três vezes. Com sorte, talvez eu consiga deixar para trás um sem-número de coisas que não me servem mais… Que assim seja!

SALA DE ESPERA

As lembranças daquele período, por certo, ele não celebra mais. Pudera!, foram tempos difíceis. Não somente por conta do medo: o incrível medo que penetrava na alma das criaturas. É que, no fundo, o pior de tudo era a incerteza. Vem daí, quem sabe, a mania de ter sempre na bolsa uma muda de roupa, com escova de dente e uma pomada para aliviar dores musculares. Nunca se sabe! Isso porque, é verdade, ‘eles’ costumam chegar de madrugada para não chamar a atenção dos transeuntes. E assim, provocam uma longa e angustiante espera…

De algum modo, ele aceitava essas circunstâncias inquietantes. Afinal, essa tinha sido a ‘escolha’ que Seu Braga havia tomado na vida: viver no limite do risco e do medo que ele enseja. Contudo, apesar do pulso de vida que, muitas vezes, até empurra o sujeito para o abismo, o fato é que deve existir algum mecanismo ‘compensatório’ que justifique tanta ‘adrenalina’. Sim! Porquanto ninguém, em sã consciência, consegue viver no limite do risco e achar que isso é natural.

Ao ouvir aquelas histórias, eu ainda tive vontade de fazer umas perguntas, mas acabei me encabulando. Talvez, porque percebia que tive uma vida tranquila e sem sustos. Ou, então, por temer ouvir daquele homem ‘outras histórias’ que poderiam abalar o meu comodismo. Sim! Diante da coragem daquele homem, eu me sentia tremendamente covarde. Inútil, até. De que adianta uma vida sem fortes ‘emoções’? De que me serviu a estabilidade conquistada, se isso aconteceu às custas de omissão e indiferença?!

Pois é. Tudo isso ocorreu enquanto eu estava na sala de espera do meu urologista. Por ironia, eu ouvi diversas histórias vindas daquele senhorzinho que se sentou ao meu lado. E, por motivos que eu não sei dizer, ele confiou a mim a narrativa de importantes passagens de sua vida. Por trás da fala daquele senhorzinho, ah, companheiros, eu senti uma tremenda verdade de vida. Dessas que fazem nossos olhos brilharem e justificam que a ‘passagem de ida’ valeu a pena. Com ou sem sustos. Com medos ou não!

Ele foi embora e eu fiquei aguardando a minha vez. Poucos minutos depois, fui chamado pelo médico. Seguramente, não foi uma conversa agradável. As notícias foram duras e preocupantes. Por perceber a minha decepção, o doutor insistiu em me injetar algum ânimo, relatando os êxitos obtidos em outras cirurgias. Porém, o que ele não sabia é que a minha decepção não surgira por conta do anunciado diagnóstico e sim pelo resultado da conversa com o Seu Braga. Afinal de contas, existem muitas formas de se receber um ‘solavanco’ na vida, não acham?!

(Imagem: linda gravura, em aquarela e bico de pena, de autoria de minha querida mãe, Jarina Menezes)

SOMOS APENAS PASSAGEIROS

Eu hoje acordei pensando sobre as viagens que já fiz e as que ainda pretendo fazer. Inevitavelmente, meus amigos, ocorreram-me algumas dúvidas: o que exatamente estou a procurar? O que pretendo encontrar? E afinal, qual a importância dessas viagens em minha vida?

Pois é. Na verdade, devo dizer, eu não precisei de muito tempo para responder a esses questionamentos. Porquanto esse movimento é um processo bastante voluntário. E consciente. Sim! Ao que tudo indica, essa busca esteja amparada no prazer que sinto ao ‘interagir’ com os outros. Eu explico. É que ao me aproximar dessas pessoas procurando conhecê-las, a minha intenção é tão somente captar a ‘visão de mundo’ de cada criatura. Isto porque, sem dúvida, o que a gente aprende com elas supera qualquer expectativa.

Por sinal, eu aprendi isso bem cedo, pois ainda adolescente percebi que viajar para lugares desconhecidos, ah! era algo que trazia imensa satisfação. E desse modo, eu acabei estabelecendo uma prioridade na vida, ou seja, acolher as preciosas ‘observações’ que as viagens propiciavam e, em contrapartida, iria deixar em cada lugar um registro pessoal do meu contentamento.

Foi assim que aconteceu quando eu tinha 15 anos e fiz a primeira viagem de ‘mochileiro’, indo do Rio de Janeiro para Florianópolis. O objetivo era conviver com um tio distante e ainda desconhecido para mim. Céus! Confesso que aqueles quinze dias na casa do tio Holdemar, médico e escritor, foram capazes de me ‘abduzir’ completamente! Ao me apresentar a temas ainda desconhecidos – a literatura e o jazz -, tio Holdemar demonstrava que possuía o dom de seduzir a gente com argumentos inquietantes. O que sei é que, de imediato, eu passei a amar esse belíssimo universo apresentado por ele, minha gente. Portanto, onde quer que esteja, meu tio, receba o meu emocionado agradecimento.

Poucos anos depois, eu novamente botei o pé na estrada e parti para Buenos Aires, de ônibus, encarando uma viagem de 48 horas. Sozinho e no inverno. Ao chegar na capital portenha, logo me encantei por inúmeras coisas. Mas foi “Mercedes Sosa”, de fato, a minha primeira grande paixão. Tudo bem que eu me apaixonei, também, pelo tango estilizado de Astor Piazzolla. Algo profundamente intimista e pessoal.

Além disso, eu conheci uma família de suíços. Eles moravam em um simpático subúrbio de Buenos Aires, hoje município, de nome “Ramos Mejia”. Naquela bela e encantada casa moravam três pessoas: Dona Arlete, seu marido Emílio, um chefe- confeiteiro, e a linda filha Heide, universitária de engenharia química. Ah, minha gente, poucas vezes nessa vida eu conheci uma família tão harmoniosa quanto aquela. Parecia uma dessas famílias saídas das telas do cinema, que nos comovem pelo intenso amor compartilhado entre eles. Amor simples e verdadeiro que arrebata os corações sedentos… Coisa linda!

(Imagens: Ponte Hercílio Luz, na Florianópolis de 1970 e a Confeitaria Moritz, em Retiro, Buenos Aires)

DE REPENTE, FERNANDO FOI EMBORA

Sim… De repente, Fernando foi embora. Partiu sem avisar, sem sequer se despedir de muitos de nós. Para alguns, isso pode parecer injusto. Quem sabe, até mesmo uma tremenda sacanagem?! Contudo, Fernando teve lá os motivos dele, minha gente. Vai saber?!

Porém, o que vou fazer com o nosso antigo ‘sonho socialista’, onde imaginávamos um mundo mais justo e equilibrado? É… Fernando, isso nós vamos ter que deixar para outras gerações. A nossa, pelo visto, não deu conta dessa ‘febre’ e, ainda que tivéssemos muitas esperanças guardadas com amor e paixão, de fato, elas se extraviaram no caminho…

Havia também aquele acalentado sonho de abrirmos um restaurante ‘alternativo’. Não na comida, é claro, mas nos interessantes temas que iríamos propor para os acompanhamentos: jazz, cinema e utopias. Para o deleite de todos! Ah, isso sem falar das palestras e cursos que o restaurante patrocinaria. Agora, devo confessar, Fernando, eu não consigo empreender isso com mais ninguém. Só daria certo com você, à medida que ninguém mais empunhava tanta lucidez nas ideias e propostas. Só você, meu amigo, possuía esse dom de nos ‘abduzir’ com argumentos sedutores. Por sinal, eram verdadeiras ‘armadilhas’ ideológicas, reconheço.

Mas saiba, parceiro, que o que ainda restava de brilho nesse mundo louco acabou de perder a sua metade. Zizi bem sabe o que estou a dizer. Até porque, ela foi o seu ‘ópio’ e seu grande amor nessa vida. Por isso, ela terá que ‘reinventar a roda’ para dar conta desse enorme buraco. Contudo, esteja certo: ela conseguirá. Confie!

Céus, nós tivemos muitas conversas sobre a vida e sobre o que dava sentido a ela. Incontáveis vezes, é verdade. E quase sempre tínhamos um copo de vinho ou cerveja para irrigar as ideias. Sim! Lembro até daquele velho desejo de mandar para cadeia essa ‘cambada de pilantras’ e ‘sanguessugas’ que estão por todos os lados. Ao mesmo tempo, nós acreditávamos que aquela velha ‘ilha do barbudo’ resistiria aos ventos e furacões vindos do Norte. Afinal, tal qual aquela lendária ave, única da espécie, que após viver 300 anos, supostamente, se deixava arder em brasas para, em seguida, renascer das próprias cinzas… “Voilà”, eis a nossa fênix revestida de sonhos e esperanças nos homens de bem…

O pior de tudo, Fernando, é confessar a você que eu não sei como lidar com esse novo momento. Eu explico. É que você sempre representou o meu ‘alter ego’. Desse modo, eu ficarei sem o contraponto capaz de me dar algum equilíbrio para tocar em frente. “Paciência, Carlos”, diria você. Ou, então: “Carlos, o que não tem remédio, remediado está!”

Por fim, eu devo dizer que não sou chegado em despedidas. Principalmente, em despedidas tristes e acabrunhadas como essa. Mas, no fundo, eu devo isto a você. Portanto, meu amigo, receba o meu melhor e mais afetuoso abraço. Com ele, também vai junto um esforço de sorriso e os muitos agradecimentos pelo que recebi de você. Além desse mar de lembranças que me acompanharão pelo caminho afora.

Pois é, meus amigos. De repente, Fernando foi embora. E de algum modo, todos nós ficamos órfãos…

Na foto: Fernando, o meu filho Gabriel e Zizi, em um domingo qualquer do passado.

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A SOMBRA E A ESCURIDÃO

Lá se vão vinte anos que eu publiquei um texto intitulado “Verdades e Mentiras”. Ele foi escrito para a revista “Clube do Áudio & Vídeo”, de São Paulo. Poucos meses depois, o texto também foi publicado na revista “AUDIO – CINEMA EM CASA”, em Portugal . O artigo fazia parte da coluna sobre cinema que eu assinava, em ambas revistas, e foi inspirado a partir do belo filme “A sombra e a escuridão”, do diretor Stephen Hopkins.

Esse texto tinha como pano de fundo a história do filme e fazia alusões aos conflitos oriundos dos antagonismos da vida. Ou seja, as velhas contradições entre o bem e o mal, o novo e o velho, enfim, as verdades e as mentiras presentes no decorrer da vida.

De imediato, eu devo reconhecer que aquele texto foi algo muito emocional, uma vez que eu procurei dividir com o leitor as dúvidas que me afligiam na época. Ironicamente, de algum modo, muitas delas ainda permanecem e se tornaram perenes em nosso percurso.

Lembro até que em dado momento do artigo, eu externei: “No curso da vida, pode-se observar que muitas pessoas optam pelo silêncio. Outras tantas, preferem acolher o cinismo. Mas a grande maioria, por certo, fica por conta da ignorância. Lamentavelmente. São criaturas que jamais vasculharão a ‘caixa-preta’ em busca das verdades… Agora, devo confessar: eu não sei o que é melhor. Tampouco estou aqui a fazer julgamento de valor. No fundo, são questões muito individuais e que só a criatura envolvida pode responder, isso sim! Se eu trago estas reflexões à baila, creiam-me, é tão somente porque elas estão a vazar do copo e encontro em cada um de vocês a solidariedade tácita. Afinal, todos nós somos vítimas de diferentes ‘verdades e mentiras’, não acham?!”

Pois é, meus amigos. O fato é que, de lá para cá, o mundo girou mais um bocado. Muitas histórias transcorreram. E, com isso, a gente acaba acreditando que aquelas aflições prescreveram e que o ‘mundo’ agora é outro!

De certo modo, ele é verdadeiramente outro. E será necessário aceitar essa ‘sentença’. Afinal, o nosso mundo ficou de pernas para o ar, após essa pandemia. São incontáveis as mudanças de conceitos que tiveram profundas alterações. E muitas outras irão surgir no bojo dessa famigerada crise. Atitudes foram necessárias. Gestos e expressões adquiriram novos encaminhamentos. Até quando? Não se sabe! Quais os resultados disso? Ainda é muito cedo para termos respostas… De certo, mesmo, é que os prejuízos são imensos, não apenas materiais. Bem pior serão as sequelas deixadas pela falta de aulas, pelo desemprego maciço ou pela insegurança do que está para vir!

Seguramente, eu sempre tive uma postura otimista diante da vida e das perspectivas do mundo. No entanto, não consigo esconder a minha preocupação. Porquanto desconfio que precisaremos bem mais do que otimismo para encararmos os desafios futuros. Serão necessárias a resiliência, a disciplina, a solidariedade e outras coisas mais para enfrentarmos a ‘nova realidade’.

Até porque, minha gente, nem sempre a lembrança do diálogo travado entre o caçador e o amigo ocorrido no filme “A sombra e a escuridão” será suficiente para a memória coletiva:

“Quando eu era menino, havia um brutamonte na cidade. Aterrorizava todo mundo. Mas ele, não era nada. Tinha um irmão pior ainda. Mas, também não era nada. O problema era quando estavam juntos. Sozinhos, eram só brutamontes. Juntos, eram mortíferos. O amigo, então, indaga: O que aconteceu com eles? E o caçador, soberbamente, responde: Bem… eu cresci!”