“TINHA UMA PEDRA NO MEIO DO CAMINHO…”

Eu devo reconhecer que Canelau nunca foi uma criatura religiosa. Aliás, por conta da herança comunista, patrocinada pelos pais, ele até se declarava ateu. Ao menos, até os quarenta anos de idade isso era verdadeiro. Já depois disso, é bom que se diga, ele começou a sofrer algumas transformações, que foram lentamente o levando para o lado espiritual. Mas, calma aí que eu explico.

Na verdade, o ‘rompimento’ com o ateísmo e a gradual aproximação ao espiritualismo, de fato, ocorreram no final dos anos 90. Como resultado, Canelau deu início a uma ‘guinada’ na vida. Não como aquela anunciada por um inocente amigo, que declarava: “vou dar uma guinada de 360 graus na minha vida, podem acreditar!” E, de bate-pronto, alguém retrucou: “360 graus? Então, sua vida vai continuar no mesmo rumo…”

No caso de Canelau, ele começou pela mudança de cidade. Sim! Ao receber a bendita “Carta de Concessão” da aposentadoria do INSS, após 25 anos de magistério, e impulsionada pela separação do segundo casamento, Canelau intuiu que havia chegado a hora de alçar novos voos. Daí, ele resolveu vender o apartamento, juntar a mudança no caminhão da transportadora e buscar outros caminhos para explorar. A cidade escolhida por ele era bastante familiar: Florianópolis. Afinal, Canelau conhecera a cidade na adolescência, quando ia passar as férias na casa de um tio. Como guardou na memória afetiva boas recordações desses períodos, a escolha se justificava inteiramente.

Além disso, em seus ombros pesava o forte desejo de ‘passar a limpo’ alguns desencontros experimentados. Pois é, minha gente, no fundo, ninguém escapa. E o que se sabe é que o coração de muitas criaturas parece guardar mais desgostos do que esperanças, o que é uma pena. Somente após alguns anos de terapia é que Canelau aprendeu a drenar essas dores e transformá-las em ‘pulsos’ mais proveitosos. Desses, que são capazes de abrir novos horizontes na vida. Convenhamos, meus amigos, isso é uma tarefa bastante difícil. Por vezes, até mesmo inalcançável. Mas, não para Canelau! Desde cedo ele desenvolveu um forte estoicismo e aprendeu a superar as dificuldades com elegância e bom humor. Até mesmo em ocasiões inusitadas, como no primeiro passeio que fez à Praia Mole, assim que chegou em Florianópolis.

Tudo aconteceu ao visitar a majestosa praia. Querendo se inteirar, Canelau resolveu conhecer as pedras que separam as duas praias, a Mole e Galheta. Tratava-se de um passeio maravilhoso, ainda que tivesse o risco dos ‘escorregões’, pois pedra é pedra, não é verdade? A ida até que foi tranquila, sem grandes surpresas. Devagar, sobe-se uma a uma. E ao chegar em algumas delas, pode-se deslumbrar o imenso mar azul, verdadeiro cartão postal da ilha. Mas é o tal negócio: Millôr Fernandes, o extraordinário escritor e crítico, com seu humor mordaz, já havia dito que “o pior do alpinismo é a volta!”. Tinha ele razão, meus amigos. Se pensarmos bem, a famigerada ‘volta’ concentra apenas o risco de cair, uma vez que o ‘deslumbramento’ oferecido pela vista é prerrogativa apenas da subida…

O fato é que Canelau não se preocupou com nada disso. E tão pouco se lembrou de Millôr Fernandes. No entanto, chegada a hora da volta, bateu aquele frio na barriga. Porquanto ele percebeu que algumas passagens eram fáceis de empreender em uma dada direção. Já no sentido contrário, ah, exigia muita habilidade e destreza.

Aí, minha gente, foi quando Canelau descobriu que era o poeta Carlos Drummond de Andrade que ditava as suas recordações: “Nunca me esquecerei desse acontecimento / Na vida de minhas retinas tão fatigadas / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / Tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho…”

De um jeito ou de outro, o que posso dizer a vocês é que naquele momento de profunda aflição, céus, Canelau descobriu o caminho para Deus. Com o coração na boca, ele pedia aos santos protetores que abrissem os caminhos e o fizesse sair dali. Inclusive, em suas fervorosas orações, na etapa mais difícil de uma pedra baixa para a outra bem mais alta, Canelau se lembrou do Salmo 1:9 de Josué: “Seja forte, corajoso e destemido!”

Praia Mole, em Florianópolis / SC

AS ANDANÇAS DE CANELAU

Ele devia ter pouco mais de treze anos, “entrando na adolescência”, alguém diria. No entanto, o certo é que para aqueles tempos bicudos a vida não era nada fácil, isso sim. Família numerosa. Moradores do Estácio. Classe média-baixa. Enfim, cada um tendo que dar conta das coisas sem reclamar. Pois é. Canelau, ao menos, sabia que o caminho pela frente seria complicado. E que não receberia ajuda gratuita. Ou seja: havia a certeza de que a ‘longa peleja’ estava somente nas mãos dele.

Apesar disso, há quem acredite que a vida “dá o frio conforme o cobertor”. Pode até ser verdade. Porém, o fato é que naquele ‘Edifício Esperanto’ as pessoas sabiam perfeitamente que, muitas vezes, é preciso “vender o almoço que é para pagar o jantar”. A vida ensina tudo, não é verdade?!

Então, não foi surpresa para Canelau perceber que as cartas estavam lançadas e que caberia a ele torcer por sorte melhor nos jogos da vida. Tanto é que na primeira empreitada ele se saiu muito bem. Aos dez anos de idade arrumou um bico na loja de tecidos do seu Costa como ‘empacotador’. Quer dizer, quase isso…

Por ser comunicativo, ele tentava compensar a falta de jeito com os sorrisos e declarações alegres. De tal modo que ninguém reclamava dos embrulhos feitos por Canelau. Assim, ele faturava um troco para as festas de Natal e Ano Novo. Comprava com seu suado dinheirinho o tênis que os pais não conseguiam adquirir. E ainda sobrava um pouco para a sessão de cinema na Praça Saens Pena, com direito ao sorvete do Palheta.

Tempos depois foi a vez de aprender a lavar carros na garagem do prédio. Tinha dia que ele conseguia lavar mais de cinco automóveis. Mas isso custava alguns arranhões nas mãos, uma vez que sempre encontrava pela frente um canto de para-choque com pontas perigosas. Paciência!

Desse modo, Canelau foi passando pelas empreitadas, sempre com profunda determinação, apesar da falta de ‘jeito’ em algumas ocasiões. Aí, veio a fase mais desafiadora. Aos 17 e 18 anos, ele tinha que decidir se iria optar sempre pelo ‘certo’ ou se abdicaria dele em alguns momentos. Não é algo fácil. O que posso dizer, como observador externo, é que essa vida testa o tempo todo a capacidade das criaturas. Porquanto coloca ‘desafios’, muitas vezes, difíceis de se transpor. E Canelau, minha gente, sempre me surpreendia. Sempre. Afinal, naquela região onde todo mundo buscava o seu lugar ao sol, é fácil compreender um deslise aqui, outro acolá…

Tanto é verdade que os colegas de rua de Canelau pressionaram o rapaz para que aceitasse determinados ‘pactos’ com o malfeito. E, até onde eu sei, ele jamais capitulou. Cá entre nós, isso é bastante complicado para sustentar, uma vez que o ‘coletivo’ costuma ser um cobrador implacável.

A vida seguiu o rumo que pode e Canelau aprendeu a passar ileso por inúmeras situações. Com isso, ele atravessou os planos do universo do melhor jeito que podia. Tornou-se um homem adulto. Casou-se três vezes. Teve apenas um filho e hoje, aos setenta anos de idade, ele conta histórias ‘cabeludas’ para o pequeno neto se divertir…

O velho “Edifício Esperanto”, no Estácio – RJ.

A boa e velha rua Zamenhof, no Estácio – RJ.

NARCISO E O FIM DO MUNDO

O meu querido tio, Holdemar Menezes, completaria essa semana o seu centenário. Então, para homenageá-lo, eu escolhi uma bela crônica que ele publicou no livro “O Barco Naufragado”. Sua bênção, meu tio!

Olha, eu nem estava preparado para aquilo. Apenas fui ler o meu livro e tomar a minha cerveja gelada. Por sinal, é um hábito salutar, como recomendou o meu terapeuta. Tanto é verdade, meus amigos, que fiquei na parte de cima do clube, bem afastado, numa mesa de canto.

Procurei, ao menos, resguardar um angulozinho de visão, através dos vidros sujos de poeira acumulada. A minha paisagem começava no trampolim e se estendia pelo “deck” da enorme piscina. Mas eu sabia, evidentemente, que a nesga de visão servia de ponto de observação do banho de mil pessoas e lindas mulheres. Eu sabia, confesso, mas nem estava preocupado com isso.

Até porque, de fato, eu estava mesmo era envolvido com a leitura da deliciosa novela de Gabriel Garcia Márquez, “Ninguém escreve ao Coronel”. Por aí vocês podem sentir o meu desarmamento de intenções. Afinal, é um livrinho bom para se ler no clube, na companhia de uma cerveja gelada.

O que sei dizer é que era ainda muito cedo. Afinal, o avião das nove horas da manhã nem havia passado, riscando o céu ensolarado. Sei também que de vez em quando, como é do meu feitio, eu suspendia a leitura do livro, até para descansar os olhos, e os lançava sobre as águas tranquilas da piscina. Porém, nada disso tem importância. O que vale mesmo é que nem estava pensando tolices.

Entretanto, é o tal negócio: quanto mais eu rezo, mais o diabo me aparece. No fundo, eu sou um perseguido, isso sim. Mas, calma aí, que eu explico a vocês. A verdade é que só fui à janela porque pensei ter ouvido gritos do meu neto. Porém, não era ele que estava gritando. Ele permanecia sentadinho, tomando o suco de laranja e empilhando brinquedos. Mas o diabo, por certo, também estava lá, deitado sobre a toalha estampada, de óculos escuros e biquíni.

Foi nesse exato momento que senti um ‘solavanco’ nas coronárias, assim como um entupimento súbito. Sei lá. Ainda olhei discretamente para a janela, pois eu não conseguia acreditar que toda aquela ‘entrega’ era para mim. E era!

Daí por diante, confesso, eu fui ver o garoto várias vezes e, repetidamente, ela me fazia sinal para que eu descesse. Ainda pensei: deve ser uma coleguinha do meu filho ou até mesmo uma de suas namoradas. Mas, qual o quê! Era para mim mesmo. Então, tive um ataque de ‘burrice’ e não mais entendi uma só folha do livro. Até a cerveja passou a descer com dificuldade. Meu erro maior, reconheço, foi pedir ao garçom uma dose dupla de uísque.

Na aflição do momento, eu fui ao banheiro do clube. E lá estava Narciso me esperando. Como consequência, desapareceram os meus cabelos brancos, os meus músculos flácidos e a minha proeminente barriga encolheram abruptamente. Ou seja, cumprira-se o vaticínio mitológico: “Eco”, ninfa filha do Ar e da Terra, estava doidamente apaixonada por mim. Por isso, bati no peito com forca, ergui o queixo desafiadoramente e voltei as costas ao espelho…

Tudo bem que tais ilusões todos nós temos, minha gente, e até nos fazem bem. Mas o problema é que não voltei à mesa de leitura: ganhei as escadas e desci para a piscina. Empoderado, apossei-me das águas e nadei como um peixe alado. “Eco” deveria estar encantada com a minha destreza, minha formosura e suavidade!

Subi ao trampolim, volteei no ar várias vezes e mergulhei como um biguá. Meu neto, que sempre foi um grande mentiroso, afirma que eu nadava como um boi cansado, espalhando água, e que, ao cair do trampolim, dei com a barriga contra as plácidas águas da piscina, provocando o riso de todas as pessoas que se encontravam no “deck”. O mais doloroso, meus amigos, é que eu acho que foi verdade mesmo.

Mas, cá entre nós, eu podia ter ficado apenas nisso e tudo estaria bem. Narciso, no entanto, havia me dominado completamente. Já em terra, desejei fazer a última demonstração: um salto mortal! Parti da amurada do clube, subi aos céus e… caí de cabeça.

Não vi mais nada, minha gente: apenas gritos, risos, Bach tocando órgão, palhaços com guizos nas orelhas, cheiro de incenso e os anjos anunciando o fim do mundo. Agora, devo dizer: o mais difícil é aguentar esta posição incômoda, duas vertebras partidas, tomando sopa com canudinho. Paciência… Fazer o quê?!

DE REPENTE, FERNANDO FOI EMBORA…

De repente, Fernando foi embora. Partiu sem me avisar. Nem sequer se despediu de muitos de nós. Para alguns, isso pode até parecer injusto e, quem sabe, seja mesmo uma tremenda sacanagem?! No entanto, eu desconfio que Fernando devia ter fortes motivos para isso, minha gente. Afinal, ele era um verdadeiro cavalheiro.

Mas, e agora? O que vou fazer com o nosso antigo ‘sonho socialista’, onde imaginávamos um mundo mais justo e harmonioso? Ah, Fernando, pelo visto, nós vamos ter que deixar para outras gerações. A nossa, certamente, não deu conta desse antigo desejo, dessa ‘febre’ quase juvenil. Ainda que tivéssemos muitas esperanças, guardadas com amor e paixão ideológica, no fundo, devemos reconhecer que elas se extraviaram ao longo do caminho.

Também é verdade que eu terei que renunciar àquele acalentado sonho de montarmos um restaurante alternativo. Alternativo não somente na comida, é claro, mas principalmente nos temas interessantes que iríamos propor: jazz, cinema e utopias. Sim… para o deleite de todos. Sem falar das palestras e cursos que o restaurante patrocinaria. Confesso a você, Fernando: eu não consigo empreender esse projeto com outra pessoa. Só seria possível com você, à medida que ninguém mais trazia tanta lucidez nas ideias e propostas. É que você, meu velho amigo, possuía o dom de ‘abduzir’ os nossos sonhos com incríveis argumentos. E sempre sedutores!

Mas saiba, parceiro, que o que restava de brilho nesse mundo de hoje, por certo, vai perder a sua participação. Zizi bem sabe o que estou a dizer. Até porque, ela foi o seu ópio e a razão do seu amor neste mundo. Agora, ela terá que ‘reinventar a roda’ para dar conta desse enorme buraco…

Muitas vezes nós conversamos sobre a vida. E, quase sempre, tínhamos um copo de vinho ou cerveja para instigar os pensamentos. Afinal, no bojo das conversas, surgiam muitas ideias e propostas. Como consequência, vinha o desejo de mandar para cadeia essa ‘cambada de pilantras’ e sanguessugas que estão espalhadas por todos os lados. Ao mesmo tempo, nós acreditávamos que aquela velha ‘ilha do barbudo’ iria resistir aos ventos e furacões vindos do Norte. Tal qual aquela lendária ave, única da espécie, que após viver 300 anos, supostamente, se deixava arder em brasas para, em seguida, renascer das próprias cinzas. “Voilà”, eis a nossa fênix revestida de sonhos e esperanças nos homens de bem…

O pior de tudo, Fernando, é ter que confessar a você que eu não sei como lidar com esse novo momento. Eu explico. É que, de certa forma, você representava o meu ‘alter ego’. Por infortúnio, a partir de agora, eu ficarei sem o contraponto capaz de me dar equilíbrio para tocar a vida em frente. “Paciência”, diria você. “O que não tem remédio, remediado está, Carlos!”

Além disso, eu não sou chegado em despedidas. Principalmente, em despedidas tristes e encabuladas como essa. Porém. eu devo isso a você. Sendo assim, meu amigo, receba o meu melhor e mais afetuoso abraço. Com ele, é verdade, vai junto um esforço de sorriso e os muitos agradecimentos… Bem como esse mar de lembranças que me invadem a alma!

(Na foto: Fernando e Gabriel, meu filho, nos braços de Zizi)

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O MENGÃO E AS FRUSTRAÇÕES DE 2021

Pois é, minha gente. Tem vezes que o silêncio é a melhor mensagem. Até porque, devemos reconhecer, a gente acaba ficando entalado, com aquele gosto de ‘cabo de guarda-chuva’, não é verdade? Mas o pior de tudo é a sensação de orfandade que parece tomar conta das nossas emoções. Quem sabe isso não seja uma defesa autoimposta que tem por missão poupar nossas energias?!

O que sei dizer é que, como todo flamenguista que se preza, eu também estou de ressaca. Aliás, uma baita ressaca! Assim como muitos, estou triste com os últimos acontecimentos. Afinal, nós perdemos a Taça Brasil, vimos o Brasileirão se distanciar a cada rodada e, ainda por cima, deixamos escapar pelos dedos a Libertadores. Ou seja: é muita perda para um ano só, meus amigos.

Não bastasse a pandemia que nos ‘surrupiou’ dois anos de saudável convívio e alegrias com outras pessoas. Não bastasse a crise política que, desafortunadamente, dividiu esse empobrecido país ao meio. Não bastasse a confirmação do câncer que há tempos rondava a minha próstata. Não bastasse a decadência na qualidade de vida, com escolas fechadas, teatros empoeirados e muitas viagens canceladas. Talvez, por tudo isso somado é que eu esteja me sentindo tão triste pela derrota do meu ‘Mengão’. Sei bem que ganhar e perder faz parte de qualquer competição. Portanto, não foi apenas o jogo disputado ontem…

O ano de 2021 já está agonizando os seus últimos dias. E só não digo “já vai tarde” porque aos setenta anos de idade, convenhamos, isso parecerá ‘soberba’, uma vez que posso não dispor de tantos mais assim. O certo, porém, é que este ‘2021’ foi um ano para se esquecer, ainda que tenham ocorrido bons episódios, vá lá! Sendo assim, o jeito é renovar os bons sonhos e torcer para que eles se concretizem. Com sorte, nós poderemos mudar o rumo de algumas coisas. Talvez, até mesmo o rumo do nosso país e, de quebra, das nossas vidas. Oxalá, então!

OS CAMINHOS QUE TRILHAMOS

Naquela época, devo reconhecer, eu jamais imaginaria que a vida fosse dar uma guinada. Mas, de fato, ela deu. Sim! Foi só ver o meu número de inscrição, 35.564, estampado na relação dos aprovados no vestibular de 1972. Segundo a lista, eu me classificara para o curso de Farmácia e Bioquímica da UFRJ. Pois é, minha gente… a vida tem dessas coisas. Aliás, Guimarães Rosa já dizia: “A vida é assim: esquenta e esfria / aperta e daí afrouxa / sossega e depois desinquieta. / O que ela quer da gente é coragem…”

Lembro bem disso, meus amigos. Afinal, para alguém que havia estudado a vida toda em escola pública, convenhamos, configurava um grande feito. Principalmente se levarmos em conta que o ‘sujeito’, em questão, era oriundo de uma família de cearenses, com pai, mãe e mais cinco irmãos pelejando na vida. O que sei dizer é que se eu não passasse naquele concurso, céus! a vida teria tomado outro rumo. E nem sei que caminhos eu estaria trilhando…

Aliás, foi o grande Adoniram Barbosa que declarou: “Deus dá o frio conforme o cobertor!” Pois é, minha gente. De fato, muitas vezes é assim que acontece na vida. Por outro lado, também é verdade, somos nós os responsáveis pelos percursos escolhidos, com ou sem consciência. Digo isso, porquanto a condução da vida sempre está sob nosso comando, ainda que sofra inúmeras interferências externas. É o tal negócio, no fundo, há que se observar a trajetória percorrida e dela extrair ensinamentos. Caso contrário, iremos repetir incontáveis erros, que insistem em não nos largar!

À propósito, vejam só: esta semana eu retornei de uma viagem ao velho Ceará, após cinco anos de ausência. O motivo principal da viagem era ‘acarinhar’ o meu quase centenário pai. Fiz isso porque ele é um homem bom e merece a nossa atenção. Afinal, ele já passou por poucas e boas. Criou sete filhos. Ajudou a esposa e muitos parentes dela. Semeou educação em todos. Enfim, dedicou grande parte de sua vida para propiciar aos outros um destino melhor…

Só que agora, é ele que carece de atenções e cuidados. E, ao que tudo indica, talvez isso não venha ocorrendo em quantidade e qualidade necessários. Chega a ser injusto, pois falta ao meu pai, quem sabe, os ‘bons dias’ vividos em ambiente inteiramente familiar. É bem verdade que ele recebe muito carinho de alguns sobrinhos. Todavia, não é suficiente. Falta a maior presença dos filhos que moram distante. Falta a convivência com velhos amigos. Falta até mesmo aquele belo espaço destinado à sua maior paixão: a música erudita.

Oxalá ele também encontre acolhimentos em outros redutos. E, desse modo, ainda possa saborear os pequenos prazeres que a vida propicia, até mesmo para os bem idosos como ele. Seria merecido. E um bom sinal de que há justiça sobre a terra. Como consequência, valerá a pena ele ‘pelejar’ mais um tempo por aqui…

(Aqui reunimos 168 anos de vida: eu com 70 e meu pai com saudáveis 98).

TIA ALBA E A “MACONDO” DE MINHA INFÂNCIA

A folhinha do calendário informava que estávamos em janeiro de 1962. Nessa época, eu tinha apenas dez anos de idade e não sabia como seriam as primeiras férias longe dos meus pais. Lembro até que uma semana antes, eu já estava no maior “frisson” e mal conseguia aguardar o tão sonhado dia da viagem. “Bocaina”, esse era o nome do objeto do desejo!

Aliás, é sabido que a Serra da Mantiqueira possui diversas montanhas. E numa delas, existia uma fazenda que abrigava a colônia de férias da Tia Alba: a encantada Bocaina. Sim! Era um lugar maravilhoso, que ficava entre Santos Dumont e Juiz de Fora, em Minas Gerais.

A primeira etapa da viagem consistia em pegar o trem litorina que saía da Estação Leopoldina, logo após a Praça da Bandeira, em direção ao Gasômetro. Verdade é que eu nem sei quantas horas de viagem nós levamos até Santos Dumont. Contudo, acredito que foram mais de seis horas. E ao chegarmos naquela pequena cidade, descemos para o nosso primeiro almoço mineiro. Daí, após um breve descanso, pegamos um caminhão para a fazenda. Passados alguns metros de calçamento, ele se embrenhou por uma estrada de barro que parecia não ter fim. Mais de duas horas sacudindo na boleia do caminhão, sentindo um friozinho na barriga toda vez que parávamos para atravessar algum córrego. Parecia até a viagem do Indiana Jones.

Por fim, nós chegamos na fazenda da Tia Alba, a tão sonhada Bocaina. Abriram a enorme porteira que dava acesso e apeamos do veículo, seguindo em direção ao refeitório. Ali já estava preparado um delicioso café com leite mineiro, com bolachas, pão com manteiga e toda sorte de doces e salgadinhos. Nossa… Comi feito um glutão!

Depois disso, nós fomos para o galpão principal, local onde aconteciam os jogos e as brincadeiras programadas. Lá chegando, fomos divididos em pequenos grupos, conforme a idade e a Tia Alba e o Tio Marquinhos se encarregam de formar os times. Os quartos recebiam nomes de bichos. Eu, por exemplo, fiquei no quarto dos Quatis, bem ao lado dos Lobos. Havia um tal de “Bossa-Nova”, exclusivo para os adultos, e Formiguinha, Oncinha e quase toda a fauna também…

O que sei dizer é que foram os sessenta dias mais incríveis da minha infância. Tudo isso, com direito a rodas de conversa, bailes dançantes, contação de histórias junto à fogueira, banhos de rio e de cachoeira, trilhas a cavalo, passeios a pé em busca de pedras preciosas e muito, muito mais. Um dia naquela fazenda, meus amigos, parecia não ter fim. Nós acordávamos com o sino da Tia Alba anunciando o café da manhã e as atividades eram tantas que ao final do dia estávamos moídos, isso sim. Mas, plenos de satisfação!

A coisa toda foi seguindo o rumo da diversão, sempre de modo imprevisível. Porquanto os ‘combinados’ para o dia seguinte eram agendados na noite anterior. E quase sempre essas atividades nos surpreendiam. Afinal, os dias eram intensos e marcantes.

Foi assim que um dia eu conheci o tal do Henrique. Ele devia ter um pouco mais dezoito anos de idade. E era, na verdade, o legítimo galã das adolescentes. Ao mesmo tempo, ele se apresentava como o “enfant terrible” para a Tia Alba, uma mulher conservadora até a raiz do cabelo. Vez por outra acontecia algum quiproquó e nem precisava investigar. Dava sempre o Henrique na cabeça!

Contudo, não sei por que, Henrique demonstrava gostar de mim, pois me tratava com muito carinho e deferência. Tanto é que nas brincadeiras dos adolescentes, ele sempre arrumava um jeito de me inserir. E isso me causava profundo deleite. Mas, é o tal negócio: um dia a ‘panela entorna’, não é verdade? E foi o que aconteceu naquela tarde ensolarada em que fugimos das atividades rotineiras e fomos escondidos para a cachoeira. O diabo é que houve uma tempestade monstruosa no dia anterior. Assim, muitos danos ocorreram na paisagem, como árvores caídas, buracos na estrada e o escambau. No percurso entre a fazenda e a cachoeira, nós percebemos o estrago que a tempestade causou. Isso, porém, não esmoreceu o nosso desejo de ir ao delicioso banho. Lá chegando, observamos que o cenário havia se modificado: muitas pedras rolaram e caíram no lago central.

Henrique, então, propôs um campeonato de mergulhos da pedra alta para o lago. E os meninos menores preferiram aguardar os mais velhos experimentarem os primeiros pulos. Até que chegou a minha vez. Eu devia ter escutado aquela voz que insistia em soprar em meu ouvido: “não vai, cara. É perigoso demais!”

Qual o quê? No outro ouvido, o pedido mais parecia uma ordem: “Vai fundo… não tem risco algum!” E eu nem pestanejei: “chibum”, mergulhei de cabeça… Só não contava com aquela pedra no caminho (pois é, Drummond: “no meio do caminho, tinha uma pedra…”). Bati a cabeça com muita força, apesar da freada que a água proporcionou. O impacto foi tão forte que fiquei desacordado por um período. Tanto é que Henrique, ao perceber o mergulho que eu havia dado, pulou imediatamente em meu socorro. Levantou-me na água e nadou comigo até a borda da cachoeira.

Minha testa sangrava um pouco e um enorme galo já surgira. Como eu estava desfalecido, Henrique se apavorou e pediu para que todos ajudassem. Fizeram ‘cadeirinha’ e eu fui carregado durante o caminho de volta. Passados quinze minutos, embora zonzo, eu já havia acordado. Todos pararam para o acertar o ‘pacto final’. Ficou estabelecido que nós estávamos brincando de “pique esconde” e eu escorreguei na estrada e bati com a cabeça numa pedra… puro acidente…

Jurado e sacramentado por todos. Assim ficou!  

O meu espaço era aqui: o quarto dos Quatis!
A nossa roda de conversa era disputada…
Muitas brincadeira e festas aconteceram nesse galpão.

JOÃO PEDRO E A PONTA DO ‘ICEBERG’

Se há uma coisa imensamente prazerosa para mim, esta, sem dúvida, é acompanhar o crescimento do meu querido neto, João Pedro. Isto porque as alterações que eu observo, cada vez que o encontro, são inúmeras e sempre diferentes. É que o João Pedro teve a sorte de ter pais que estimulam bastante o seu desenvolvimento. Além disso, ele também conta com tios e avós que adoram o estilo participativo e desafiador empreendido na educação dele.

Contudo, há outro aspecto interessante nesse processo. Porquanto o aprendizado de qualquer coisa nessa vida, de algum modo, também carrega embutido o desafio inverso. Ou seja, quem estimula alguém para o que quer que seja, acaba recebendo o ‘troco”. E esse troco, convenhamos, pode vir de diversas formas. Aliás, surpreendentes formas! Mas, calma aí que eu explico…

Na verdade, nem seria preciso lembrar que eu fui professor de química durante mais de trinta anos. E nesse longo período, o que mais eu percebi é que ‘ensinar’ não representa apenas o lado avesso do ‘aprender’. Pois é, meus amigos. Afinal, sempre que se ensina algo a alguém, simultaneamente, nós nos tornamos uma ‘via aberta’ para outros retornos. Se tivermos acuidade, pode-se perceber que nesse ofício se aprende muito mais do que se ensina. É algo impressionante, creiam-me!

Lembro até de uma conversa que eu tive com um colega professor, bem no início da minha carreira. Moura já era era professor de física há quase dez anos. Só que na escola onde nos encontramos ele lecionava francês. Na época, eu fiquei espantado e perguntei: “Mas você não é formado em física? Como, então, dá aulas de francês?” Moura, que era um sujeito inteligente e muito bem-humorado, sorriu para mim e disse: “Carlos, eu era recém-formado quando procurei essa escola para saber se estavam precisando de professores. Antes que eu dissesse a eles que era professor de física, eles me responderam que estavam precisando ‘desesperadamente’ de um professor de francês. Céus! Eu havia me casado naquele ano e estava mais ‘liso’ que piso encerado, daí respondi de bate-pronto: agora já tem um professor de francês!”

Confesso que fiquei chocado com a coragem do relato. Ao mesmo tempo, eu também fiquei ‘desconfiado’ da seriedade dele. Mas, com o passar do tempo, eu descobri que ele era um magnífico profissional e muito empenhado. Até que um dia surgiu uma vaga para professor de física e ele migrou de disciplina. Lembro até que ao comemorarmos a transferência para o quadro de professores de física, em um barzinho que havia em frente ao colégio, eu perguntei ao Moura; “Como você fazia para dar aulas sobre algo que não dominava?” Foi quando Moura me confidenciou de que seu pai havia sido professor de francês durante toda a vida. Com isso, Moura preparava as aulas de francês com a ajuda do pai. Decorava inúmeras palavras, aprendia a conjugação dos verbos, tudo em nome da ‘sobrevivência’. Mas é o tal negócio, algumas vezes ocorriam ‘surpresas’. Segundo ele, certa vez uma aluna perguntou o significado da palavra “riz”. Moura coçou a cabeça e respondeu que aquela palavra era muito pouco usada na conversação francesa, uma vez que tinha origem no francês arcaico. Porém, quando chegou em casa e fez a consulta ao dicionário, descobriu que era ‘arroz’. Bem… Paciência, fazer o quê?!

Mas, voltando ao tema do João Pedro. O que eu venho aprendendo com ele é que esse rico mundo infantil revela apenas a ‘ponta do iceberg’. Certo mesmo é que se você deseja saber mais sobre as ‘descobertas’ infantis, aí, só mergulhando de cabeça no mundo deles. Todavia, sem conceitos prévios e sem julgamentos. E, se possível, aberto a toda e qualquer proposta inusitada deles… Por certo, serão muitas as surpresas que teremos nessas vivências. Muitas vezes, elas podem revelar as ‘lacunas’ ou ‘ausências’ que deixamos passar ao largo em nossas vidas. No entanto, se deixarmos de lado alguns remorsos ou culpas, indevidas ou não, talvez possamos aprender com eles coisas surpreendentes. Bem interessantes. minha gente…

Só que para isso, não se esqueça de que ‘navegar é preciso’!

O ENCONTRO DE CANELAU E CAPIROTO

Que Canelau sempre foi um sujeito diferente, lá, isso todo muito conhecia. Contudo, o que não se sabia, em detalhes, era do encontro mais recente que ele tivera com o Capiroto. Segundo Canelau, o fatídico encontro ocorreu na metade desse ano. Ainda segundo Canelau, ele já tinha sido procurado reiteradas vezes do decorrer da vida. Mas, do jeito que era distraído ou desapegado de certos temores, no fundo, nunca deu bola para as ‘chamadas’ de Capiroto. Ora surgia um convite para um ‘encontro’ no trânsito da autoestrada que ligava a Barra da Tijuca ao Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Ora surgia um aceno de ‘boas-vindas’ em pleno banho de mar na Praia de Copacabana, tendo apenas 14 anos de idade. O certo é que tudo transcorrera sem que Canelau percebesse as manobras traiçoeiras que Capiroto empreendia… Melhor assim!

De um jeito ou de outro, Canelau tocava a sua vidinha com entusiasmo e satisfação. Apesar de viver em uma numerosa família de classe média baixa, o que mais surpreendia a todos era a visão de mundo otimista que Canelau guardava. O que se sabe é que ele buscava encontrar o prazer das coisas em todas as empreitadas. Quase sempre conseguia.

O fato é que a vida foi seguindo o seu rumo e apresentando à Canelau as suas facetas para escolher. Também é verdade que não era fácil viver em uma família numerosa. Afinal, as atenções sobre a vida exigiam uma disputada divisão. Por vezes, até mesmo desfavorável ou injusta. Fazer o quê?!

Os caminhos que se apontaram para Canelau nem sempre foram promissores. Por isso mesmo, havia sempre a cota de esforço e sacrifício a ser completada por ele. E, por mais que não reclamasse, algumas vezes o ‘sarrafo’ era alto demais para os seus pulos. Vem daí a capacidade de adaptação e resiliência. Adquiridas ou desenvolvidas.

Bateu muita cabeça, aqui e acolá, a procura dos seus pares na vida. Por sorte, encontrou um punhado deles no caminho e, assim, acumulou fôlego suficiente para criar independência e autoestima. Por sinal, são coisas difíceis de garimpar na vida.

Sim… eu estava falando do mais recente encontro de Canelau e Capiroto. Mas, antes disso, é preciso dizer que após muita poeira na estrada, Canelau, enfim, descobriu que a melhor família do mundo é aquela que se consegue constituir. Uma família formada pelo matrimônio entre a vida e o desejo. Entre a luta e a realização. Ah, meus amigos, ao lado da companheira escolhida e do filho desejado, tudo fica mais fácil…

Por conta disso, quando Capiroto apresentou o laudo da doença a Canelau, talvez tenha pensado: “Agora, não tem por onde fugir. Dessa vez eu te pego!” Pois é, minha gente. Munido de esperanças e confiança, Canelau apenas retrucou: “Ainda não, seu moço! Ainda tenho muito a contar…”

( O “Capiroto”, na visão de minha querida mãe, Jarina Menezes)

AS ‘QUESTÕES’ DE CANELAU

Ele devia ter pouco mais de trinta anos quando fez o primeiro tratamento de canal. Era um molar inferior. Na época, lembro bem, ele nem ligou para essa questão. Achava que era um procedimento banal e que fazia parte do cotidiano de qualquer criatura.

Então, muitos anos se passaram. Até que um dia ele se deu conta sobre o que representara aquele tratamento. Céus! O fato é que ele ficou deprimido com a fala de uma amiga psicoterapeuta: “Canelau, uma parte de você morreu. Simples assim!”

O que sei dizer é que depois disso outras duas partes iguais também morreram na boca do pobre homem. Paciência! Por certo, alguém haveria de dizer: “os dentes também envelhecem, não é verdade?!” Pois é. Só que ninguém se prepara para isso e, quem sabe, acredita até que eles vão durar para sempre.

O fato é que ele nunca havia observado a coisa por esse prisma. E tampouco saberia dizer se isso é uma verdade, um acidente de percurso ou apenas uma grande bobagem. Contudo, devemos reconhecer que seja o que for, isso fustiga as emoções da gente, não acham? Há pessoas, por exemplo, que são mais ‘pragmáticas’ e não perdem tempo com essas questões. Sim. Sabemos disso. No entanto, tal percepção não alivia em nada as dores sentidas e tampouco justifica a ‘tranquilidade’ dessas criaturas. É apenas o jeito de cada um lidar com as ‘perdas’. Ou de escamoteá-las…

É curioso perceber que muitas crianças sonham em ter um braço quebrado na infância. Eu não saberia explicar o porquê desse comportamento. Mas que ele acontece frequentemente, lá, isso é verdade! Canelau já havia me contado que morria de inveja quando encontrava um colega seu com o braço da tipoia. Segundo ele, aquilo mais parecia uma condecoração de ‘bravura de guerra’. Vai entender?!

Esta semana, ao encontrá-lo casualmente na rua, ele me informou de que seria submetido a uma cirurgia. Por delicadeza ou constrangimento, eu não tive coragem de perguntar sobre o tipo de cirurgia. Apenas desejei a ele boa sorte e confiança no procedimento. Canelau, então, sorriu levemente e me respondeu: “é coisa corriqueira, feito um dente careado. O importante, contudo, é não deixar o dente possa ‘aprontar’ alguma com a gente…”

Imagem meramente ilustrativa, obtida na internet.