“NO CORAÇÃO DO BRASIL”

Eu nem precisei ouvir o relato do companheiro Ênio para saber que o ‘cerco’ havia se intensificado. Paciência. No fundo, é preciso aceitar que isso faz parte do jogo. Porquanto o papel ‘deles’ é de nos procurar e o nosso é de se esconder. Então, se pensarmos bem, a vida da gente é assim mesmo, não acham? Em tudo que observamos nesse mundo tem sempre o lado certo e o avesso. Tem o forte e o fraco. O bom caráter e o mau caráter e outras coisas mais que não vêm ao caso… Por isso, nós nunca ligamos para o estardalhaço que eles faziam. Preferíamos, isso sim, permanecer reservados, com poucas conversas. Afinal, nesse ramo de negócio, meus amigos, a ‘discrição’ é fundamental.

Mesmo assim, por precaução, nós resolvemos adotar algumas medidas cautelares, sabe como é?! Nunca se deve pôr em dúvida do que são capazes esses ‘pilantras’. Lembro até quando foi a vez do Berimbau. Só vendo! Eles foram para as rádios e TVs e falaram um monte de sandices. Disseram até que foi a mãe do sujeito que havia dado o serviço, fornecendo informações sigilosas sobre o paradeiro do filho. Puta merda, que sacanagem! Além da injustiça, convenhamos, que mãe deseja ‘entregar’ o filho para polícia? Ainda mais um filho carinhoso feito o Berimbau?! Foi tudo conversa fiada, isso sim. Dona Odete era de total confiança e jamais denunciaria o filho. O que eles queriam, na verdade, era provocar a discórdia entre nós. A velha técnica de nos dividir, semeando desconfianças. Mas, pra cima da gente, não. Nós somos ‘escolados’!

Por sinal, foi Ênio que lembrou o pensamento do livro de Sun Tzu, “A arte da guerra”. Segundo consta no livro: “A guerra é um dos assuntos mais importantes do Estado. É o campo onde a vida e a morte são determinadas. É o caminho da sobrevivência ou da desgraça de um Estado. Assim, o Estado deve examinar com muita atenção este assunto antes de buscar a guerra.”

Pois é. De certo modo, essa questão é até muito simples e não requisita ‘criar planos mirabolantes’. Até porque, a vida em comunidade exige determinadas ‘posturas’, certos compromissos. E quem topa viver aqui, ah, sabe muito bem quais regras deve seguir. E de mais a mais, essa guinada que a vida deu não foi culpa de ninguém. No caso do Chau, vejam vocês, foi ele que escolheu viver assim… Antes disso tudo vir à tona, é preciso reconhecer, Chau era um bem-comportado professor de química, que dava quarenta e poucas aulas por semana, em cinco escolas diferentes… Ainda assim, o pobre coitado vivia endividado, encalacrado até o pescoço. Cheio de empréstimos para pagar! Tudo para oferecer aos pais algum conforto dentro de casa.

Mas não estou aqui ‘chorando pitangas’. É da vida, seu moço! O diabo é que a gente não pode relaxar um minuto sequer. E foi o que na verdade aconteceu. Eu conto a vocês.

Depois daquele último assalto ao Banco Boavista, ali no começo do Estácio, ele me jurou que iria dar um tempo. Afinal de contas, o dinheiro arrecadado foi muito bom: mais de duzentos mil cruzeiros! No entanto, os ‘filhos da puta’ divulgaram que os assaltantes levaram mais de quinhentos mil cruzeiros. Miseráveis! Eles se aproveitam de tudo. Até do roubo alheio, vejam vocês… Seguramente, algum gerente pilantra aproveitou para tirar a ‘casquinha’ dele!

Dias depois do assalto, eu me encontrei com o Chau perto da pedreira, seu local preferido. É que lá de cima ele podia controlar todo o movimento do morro. E ficava, também, horas observando a casa onde vivia Belinha, seu grande amor. Além disso, ele a conheceu no baile da Escola de Samba “Unidos do São Carlos”. E por ser “magrelinha”, sempre que a via subir a ladeiro do morro, Chau colocava para tocar o disco de Luiz Melodia: “O beijo meu vem com melado decorado cor de rosa / O sonho seu vem dos lugares mais distantes / Terras dos gigantes / Super Homem, / super mosca / Super Carioca, / super eu, super eu…” Já Belinha, como que agradecendo ao galanteio, sorria discretamente para ele…

Um dia ele me mostrou os contracheques dos salários. Céus! Somados, não chegavam aos oitocentos cruzeiros e só de empréstimo, minha gente, havia mais de trezentas pratas. Talvez, por isso, ele fosse tão revoltado com o ‘sistema’, uma vez que os donos das escolas, estes sim, iam todos os anos para a Europa passar as férias. E ele, na merda, nunca viajou para além de Muriqui.

Sim. Mas eu estava contando sobre o cerco que a polícia fez. O que posso dizer é que eram mais de dez ‘camburões’ nas imediações do São Carlos. Até aí, tudo bem: nós já estávamos acostumados e sempre tivemos ‘sangue-frio’. Não nos impressionávamos com aquele ‘aparato’ todo. O que não contávamos, porém, era com a ‘deduragem’ de antigos parceiros. E o desgraçado do ‘Pará’, por certo, nunca inspirou confiança na rapaziada. Mas o que é dele, está ‘reservado’!

Ouvimos os primeiros tiros vindos da região da curva da pedreira. Nós nem revidamos, pois não queríamos confirmar a nossa localização para os ‘meganhas’. Passava um pequeno intervalo de tempo e, a seguir, já se ouvia outra série de tiros. Foi quando o Chau cometeu o grande erro. Resolveu pular o muro e ir para a rua de trás em busca de um melhor plano de fuga. Contudo, veio a rajada certeira e duas ou três balas atingiram o peito dele. Caiu do muro já com o olhar perdido…

Talvez, ele estivesse pensando na mãe e na tristeza que ela iria sentir. Ou, quem sabe, lembrasse de Belinha e dos sonhos do casamento nunca realizado?! A melodia, contudo, continuava rasgando aquela cinzenta manhã de domingo: “Deixa tudo em forma é melhor não ser / Não tem mais perigo digo já nem sei / Ela está comigo sonho só não sei / O sol não adivinha, baby é magrelinha / O sol não adivinha, baby é magrelinha…”

O certo mesmo é que ele não teve tempo de ouvir os últimos versos de Luiz Melodia, ecoando de algum lugar: “O pôr do sol / vai renovar, brilhar de novo o seu sorriso / E libertar da areia preta e do arco-íris / cor de sangue, cor de sangue, cor de sangue…”

No dia seguinte, foi lido nas primeiras páginas dos jornais: “MORREU O PROFESSOR BANDIDO”. “APÓS MESES DE CERCO, CAIU O ÚLTIMO BANDIDO ROMÂNTICO”.

No velório, com poucas pessoas, ouvia-se ao fundo: “…No coração, no coração / no coração do Brasil.”

Morro de São Carlos, Estácio, Rio de Janeiro

ZAMENHOF FUTEBOL CLUBE

Se havia um evento que ninguém queria perder, ah, por certo era o dia do divertido jogo de ‘Casados X Solteiros’. Bem… ‘divertido’ talvez não seja o adjetivo mais apropriado. Isso porque, eu era um moleque de pouco mais de dez anos de idade e não atinava para os ‘bastidores’ do jogo. E, segundo os adultos da época, havia muito mais coisas em disputa do que o mero resultado da partida. Por conta disso, todos faziam questão de acompanhar o ‘grande evento do ano’.

Aliás, para início de conversa, eu acho que havia muita expectativa quanto aos desdobramentos do jogo, uma vez que a escalação de cada time era bastante conhecida por todos. No lado dos casados, nem tanto, pois não contavam com muitos craques. O problema estava mais no time dos solteiros que, além de mais jogadores disponíveis, ainda contavam com duas grandes estrelas que ‘desequilibravam’ qualquer partida: Chiquinho e Valmir. O restante do time era formado por Frederico no gol, Luís ‘Maluco’ e Pezão formavam a dupla ‘carniceira’ de zagueiros. No meio de campo ficavam Berimbau e Pará. E o ataque contava com a habilidade de Chiquinho e Valmir!

Já do lado dos ‘casados’, o bicho pegava. Motivo pelo qual a escalação só saía minutos antes da partida. Não que houvesse dúvida quanto à ‘qualidade técnica’ dos atletas envolvidos, pois eram muito fracos e ‘apelavam’ de todas as formas. Permitidas ou não. Contudo, o que eles tinham de sobra era ‘malandragem’, isso sim. Muita astúcia na arte de impressionar o adversário. E até mesmo o juiz!

Com relação à torcida, céus, essa era francamente favorável aos ‘solteiros’, ainda que manifestassem com muita discrição. É que, assim, evitavam atritos com os ‘casados’.

A partida transcorria de maneira tranquila. Calma demais para os padrões esperados. Nenhuma falta grosseira havia sido praticada e nenhum xingamento ao juiz ocorrera. Tudo isso, é verdade, até a hora em que Chiquinho entrou na área, driblou dois beques e deslocando o goleiro, bateu de chapa no canto esquerdo. Um golaço! E como era do feitio dele, pouco comemorou. Abraçou os companheiros comedidamente. Todavia, isso não evitou a intimidação de Ronaldo: “…na próxima vez que entrar aqui na área fazendo gracinha, eu quebro a sua perna!”

Daí, então, o clima esquentou e nós sabíamos que ia dar ‘zebra’ no final da partida. Para tanto, bastou o quarto gol dos ‘solteiros’, um gol contra do Espinelli. A partir daí, minha gente, a pancadaria começou na parte alta da ladeira da Zamenhof. A briga começou entre Ronaldo e Espinelli, irmãos de sangue. E brigavam sem que ninguém apartasse. Até porque, eles eram do mesmo time dos ‘casados’!

A coisa ficou tão feia que, para conter os ânimos exaltados, foi preciso chamar a ‘Rádio Patrulha’. E por ser morador da rua, o delegado Bezerra se encarregou de comandar as ações, requisitando cinco ‘camburões’ para levar os ‘meliantes’ para a delegacia. Aí, começaram os interrogatórios. Concomitantes. Em três salas separadas. Quando tudo parecia que a rapaziada seria dispensada com, no máximo, uma advertência feita pela ‘autoridade local’, eis que surge alguém gritando lá de trás: “tudo isso é para impressionar a loura do quinto andar! Se ela não estivesse na janela observando o jogo, nem aparecia polícia na área. Mas o delegado Bezerra, que anda frequentando outros apartamentos, além do seu, quer mostrar serviço e aprontou essa palhaçada…”

Foi, então, que a ‘casa caiu’! E por conta dessa ‘gracinha’, o fato é que mais de vinte marmanjos dormiram aquela memorável noite nos aposentos da 18ª Delegacia de Polícia Civil, da Praça da Bandeira. Sem direito a água, comida e a visita de advogado ou parente. Um verdadeiro sufoco, isso sim!

No dia seguinte, bem cedinho, já havia uma caravana de pessoas na porta da ‘loura’. Nervosamente, tocaram a campainha. Nisso, ao abrir a porta, aparece a beldade com cara de paisagem. Imediatamente, começou a lamúria. Todos falando ao mesmo tempo e a ‘loura fatal’, após dez minutos do choro das ‘viúvas’, disse apenas: “eu resolvo isso em dois tempos!”

Pois não é que aconteceu, de fato?! O que se sabe é que por algum motivo, nunca revelado, nenhuma palavra foi dita pelos ‘alforriados’. Simplesmente imperou o ‘código de silêncio’. Total e absoluto, minha gente!

Ainda assim, até hoje, há quem pergunte o que ocorreu naquela delegacia? Não foi apurado, muito menos, quais foram os argumentos da ‘defesa’…

(“Canelau” foi uma das testemunhas daquela ‘fatídica’ partida de futebol)

“POR UNA CABEZA”

É bem verdade que eu havia percebido aquela situação desde o primeiro encontro. E isso já faz muito tempo, reconheço. Porém, sabe como a vida é?! Basta uma ‘bobeada’ e a gente se esquece de certas coisas… E no campo emocional, então, céus, é pior ainda. Aí, o bicho pega. Mas, calma aí, minha gente… eu explico tudo.

O ano era 1975. Pela primeira vez eu fazia uma viagem ‘internacional’. É bem verdade que o país ficava bem ao nosso lado: a Argentina. Mas, para um ‘canelau’ feito eu, era como se fosse a Islândia, isso sim. Afinal de contas, a maior distância viajada por mim fora do Rio de Janeiro para Santa Catarina. Ou seja: 1.135 km! Se fosse na Europa, por exemplo, daria para ir de Viena a Roma ou de Budapeste a Turim, vejam vocês.

Contudo, aos 24 anos de idade, o certo é que aquela viagem parecia um sonho para um cearense feito eu. Sentado naquela poltrona do ‘ônibus-leito’, durante o percurso de quase 46 horas, o mundo era todo meu!
Sem considerar as pequenas interrupções para lanches, pode-se dizer que a primeira grande parada foi em Porto Alegre, após 1.570 km e 24 horas de viagem. Ufa! Na rodoviária, desci rapidamente para o banho ‘restaurador’ e fui jantar. Daí, seriam mais 1.310 km de Porto Alegre a Buenos Aires, que consumiriam outras 22 horas pela frente…

Ao chegar em Buenos Aires, com os ossos e músculos bastante moídos, eu só pensava em chegar ao hotel e descansar por algum tempo. O diabo é que fazia um frio de lascar e eu não possuía agasalho adequado para aquele clima. Então, essa foi a primeira providência tomada: dois casacos de ‘cashmere’ para aguentar os passeios pelas largas avenidas de Buenos Aires. Uau… que cidade linda!

No entanto, como dizem por aí, o universo nos testa a todo instante. E não demorou muito para chegar a minha vez. Isso porque, eu havia combinado com a minha namorada que entraria em contato com alguns parentes dela, que moravam em Ramos Mejia, um simpático bairro da capital portenha. Liguei e eles combinaram de me pegar no hotel.

A família se resumia a três interessantes pessoas: a tia Arlete, bem-humorada e comunicativa, o tio Emílio, que era confeiteiro formado na Suíça e Heide, uma linda e jovem universitária de vinte anos de idade.
Eles me levaram para a casa, que mais parecia um chalé suíço, e após o delicioso almoço servido, fomos para a sala conversar. Meu Deus do Céu, que família bonita era aquela: unidos e bem-humorados! Bastante diferente da minha família…

O que mais me impressionou, confesso, foi o grau de intimidade que criamos já no primeiro encontro. De tal modo que, por isso, não estranhei o convite de sair do hotel e me hospedar na casa deles pelos próximos quinze dias das férias.
Eu e Heide criamos rapidamente uma forte cumplicidade, uma vez que ela era estudante universitária de química e bastante politizada. Daí, nós passávamos os dias passeando por todos os cantos da grande capital.
O grande ‘problema’ é que a Argentina passava por uma instabilidade política preocupante, pois dava sinais de que haveria um golpe militar, com a iminente deposição da presidente Isabelita Perón.

Por conta da preparação do ‘golpe’, já se percebia o forte aparato de segurança e repressão. As universidades passaram a ser vigiadas e os líderes estudantis começavam a sofrer ‘sequestros’ e os consequentes ‘desaparecimentos’. O medo imperava em todos os segmentos da sociedade argentina e Heide dava sinais de que entraria no ‘movimento’.
Como eu já vivera algo semelhante no Brasil em 1964, sabia que o futuro seria negro para boa parte dos irmãos argentinos. Lembro até que tentei demover o desejo de Heide ingressar no movimento estudantil. Mas foi em vão. Porquanto ela era uma moça corajosa e bastante determinada. Ainda assim, eu procurei alertá-la sobre os métodos operacionais da ‘repressão’ militar no Brasil. E com um sorriso, ela me respondia que lá seria diferente…
Logo a seguir, eu retornei ao Brasil e ao meu ofício de professor de química. Tentei algumas vezes telefonar para a família argentina, sem lograr êxito. Nunca mais tive notícias de D. Arlete, seu Emílio e da querida Heide. Nem mesmo nas outras vezes que viajei para Buenos Aires, eu desisti de obter notícias deles. Eu sempre arrumava um jeito de visitar Ramos Mejia e passar em frente ao 144 da ‘Calle Garay’. Desafortunadamente, nenhum vizinho sabia sobre o paradeiro da família.

Desconsolado, eu lembrava apenas da apresentação de tango a que assisti ao lado de Heide, em uma casa de espetáculo em Palermo. “Por una cabeza”, era a melodia que retornava com forças em meus pensamentos…

AS PAIXÕES QUE MOVEM O MUNDO

Há quem acredite que o talento extraordinário de um virtuose, de um modo ou de outro, sempre anda de braços dados com a ‘loucura’. Ou que há embutido nele, no mínimo, profunda excentricidade. E mais ainda: dizem até que a capacidade produtiva do artista está intimamente ligada à dor e ao sofrimento. Olha, minha gente, sei não… No fundo, eu desconfio bastante dessas posturas ou teses ‘totalitárias’. Até porque, convenhamos, na maioria das vezes elas se mostram reducionistas. Pobres, até. Isto porque, não se pode julgar a dor alheia, seja ela certa ou errada, justa ou injusta, pois nada disso importa. Sim! Pelo simples fato de não estarmos no lugar do ‘outro’, não é verdade?!

Aliás, poucos sabem que foi Blaise Pascal, famoso físico, matemático e filósofo que afirmou um dia: “O coração tem razões que a própria razão desconhece!” Por conta disso, eu acredito que não me cabe fazer juízo de valor sobre a vida de quem quer que seja. Muito menos, com os ‘virtuoses’, cuja expressão artística deveria ser sempre livre de qualquer cobrança. Ou ‘patrulhamento’!

Mas, calma aí, minha gente. Quando afirmo isso, saibam que não estou endossando ou compactuando com as escolhas pessoais que esses gênios fizeram. Muito pelo contrário. Eu lamento. Profundamente! Afinal, boa parte da vida artística deles consegue ser extraviada por conta das escolhas infelizes. Porém, são os caminhos que ‘eles’ elegeram, independente de qualquer lamento ou repúdio que eu possa externar. São os infortúnios da vida e não há nada que os impeça…

Billie Holiday, por exemplo, de quem sou fã ardoroso, foi uma dessas incríveis criaturas que acabou sofrendo duramente com o envolvimento com as drogas. E ela experimentou um declínio agonizante. De alguma forma, todos nós perdemos muito do seu talento, pois ela nos deixou precocemente, em 1959, com apenas 45 anos de vida. Ah!, foi uma grande perda, isso sim. E no final, todos nós ficamos ‘órfãos’.

No entanto, eu creio que nós deveríamos separar a vida artística da vida pessoal desses talentos. Por isso, eu reconheço que a trajetória de conflitos de Billie foi fruto de uma alma tremendamente sofrida. Afinal, ela possuía muitas razões para se sentir desestruturada. No íntimo, pode-se dizer que o destino de Billie foi um ‘padrasto’ bem mais duro do que ela teve durante a aviltada infância…

PELOS TRILHOS DA VIDA

Quando eu era menino havia uma coisa que me dava imenso prazer: andar de bonde. Mas, cá entre nós, não se tratava de ir de bonde para a escola ou para o cinema. Nem mesmo como transporte para ir ao Maracanã ver o meu Flamengo sofrer nas disputas. Não, minha gente! O que realmente me dava prazer era pegar o bonde que ia do Estácio até a Muda da Tijuca – fim da linha – e observar as pessoas. Sim!, pois ao observá-las eu podia criar histórias envolvendo aquelas criaturas. Meu Deus do Céu, que coisa maravilhosa era esse exercício, podem acreditar. Era algo que alimentava o meu espírito livre!

É bem verdade que algumas vezes eu não tinha sucesso. Seja porque os transeuntes não ajudavam ao meu imaginário, seja porque havia alguma interferência no momento da criação da história. Vai saber?! Contudo, o mais importante era alcançar a ‘sincronização’ dos eventos, porquanto assim as peças se encaixavam com delicadeza no ‘enredo’ inventado. Com isso, as cenas propiciavam a construção de pequenos dramas ou de hilariantes comédias, que para outros olhos não fariam sentido. Na realidade, o que mais valia era a sorte de conseguir o encaixe perfeito entre a cena real e a fantasia das minhas imaginações…

Lembro até que essa ‘brincadeira’ envolvia um determinado ‘risco’, uma vez que para ir e voltar nessa linha de bonde o percurso demandava quase duas horas de duração. Isso porque, convenhamos, o bonde não era um transporte veloz, ainda que extraordinário. A velocidade máxima dele atingia algo entre 20 e 30 km/h. Além disso, existiam as paradas obrigatórias em cada ponto. Assim, juntando uma coisa à outra, já viram, né?! Eu tinha que sair de casa logo após o almoço, por exemplo, para retornar lá pelas quatro da tarde. Caso contrário, haveria ‘encrenca’ em casa!

Outra coisa que me ocorre é dizer que esse passeio se assemelhava, de algum modo, a uma sessão de terapia, com direito ao divã autoconcedido. Afinal, à medida em que se está construindo ‘enredos’ para as histórias dos outros, no fundo, acaba-se alimentando às nossas próprias, ocorridas ou não! Além disso, ‘viajar’ na imaginação, de um jeito ou de outro, libera as nossas emoções represadas. E, de quebra, drena muitas dores. Lá, isso ocorre!

O fato é que eu estava me recordando disso tudo e, de repente, algumas lembranças daquele tempo me vieram a mente. Como no caso do “Rei do Cuscuz”. Eu explico. É que sempre que eu passava pelo Largo da Segunda-Feira, no meio da Tijuca, percebia a subida no bonde de um homem muito forte, todo vestido de branco, que trazia na cabeça um enorme tabuleiro contendo “Cuscuz branco” e “Quebra-queixo”. E como ele era bastante conhecido pelos passageiros, foi apelidado de “Rei do Cuscuz”.

Só que a vida não anda em linha reta, minha gente. Não é que após alguns meses fazendo esse percurso eu acabei sabendo de um bocado de coisas? É bem verdade que muitas delas têm maledicência embutida. Até mesmo inveja, que é pior ainda!

O que sei é que o coitado do vendedor de cuscuz, um trabalhador sempre gentil e simpático com todos, acabou se tornando pivô de um caso super sinistro. É que ele descia, aleatoriamente, em diferentes pontos, quem sabe, por estratégia de venda?! O certo é que ele botava o tabuleiro na cabeça e anunciava os produtos com um vozeirão que fazia sucesso. Até que um dia uma bem-apanhada morena, que morava próximo a Igreja dos Capuchinhos, o chamou e pediu uma fatia de cada. Dizem que o “Rei do Cuscuz”, como de hábito, contou alguns causos engraçados. Ela sorriu bastante e os dois se despediram alegremente. Segundo consta, isso aconteceu durante mais de um ano…

No entanto, em um determinado dia eu percebi que o bonde se aproximava da casa da morena. Aí, já desconfiado nas minhas fantasias, fiquei sentado na ponta do banco para poder olhar cuidadosamente o encontro deles. Por coincidência, foi quando o bonde parou e o motorneiro saiu para ajustar o cabo da rede elétrica. Nesse exato momento, eu vi o “Rei do Cuscuz” saindo apressado da casa da morena. Logo atrás dele, veio o ‘marido’ dela. Pelo menos, era o que a minha imaginação estabelecera. E eu confiava nisso!

Então, dois tiros foram disparados à queima-roupa. E o pobre trabalhador caiu na calçada. Um corre-corre danado de gente curiosa e os gritos da mulher: “seu cretino! você matou o meu grande amor!”

No dia seguinte, ao ler as notícias do jornal, eu confirmei as suspeitas: “Delegado ciumento mata o amante de sua companheira. Não aguentava mais sofrer humilhações!” Deixei o jornal de lado e comentei com o Luiz Henrique: “tá vendo, meu chapa? Não erro uma só história inventada. Quando eu imagino o enredo para a cena, pode acreditar: acerto sempre!”

Luiz Henrique, por sua vez, sorriu discretamente e saiu balançando a cabeça… Talvez, ele tenha pensado: “Esse Chau é uma peça rara. Que eu saiba, essa foi a primeira história que ele acertou!”

A HERANÇA DO ‘DESCONTENTAMENTO’

(Dedicado a minha amiga lusitana, Mi Vilela)

É certo que as nossas emoções, quase sempre, são imprevisíveis. Por vezes, elas sofrem ainda mais quando estamos diante de acontecimentos desconhecidos. Tudo bem. Pode ser que isso seja apenas uma autodefesa construída para tentar barrar os perigos ou agressões externas. Vai saber?! No entanto, em algum lugar da nossa alma se esconde aquele ‘diabinho’ que, sorrateiramente, fica fustigando o nosso espírito. E cobrando da gente um pouco mais de ousadia, de destemor…

Também é verdade que com o passar do tempo nós vamos adquirindo mais cautela e conservadorismo. Há quem considere que isso seja algo bom. Mas, nem tanto assim. É que se formos ouvir o tempo todo a voz da sensatez, no ouvido direito, ah, nós corremos o risco de ver a vida passar muito sem graça, não acham?

O que posso dizer é que esse ‘intrincado processo’ não é exclusividade de ninguém. Eu tampouco me sinto confortável com essas artimanhas. Até porque, ao que tudo indica, essa parece ser a grande peleja da vida, meus amigos. E assim, cabe a cada criatura o direito do entendimento e a capacidade de lidar com essas questões. Bem como o direito de fazer escolhas, sejam elas certas ou erradas. Porquanto a vida, no fundo, acaba nos conduzindo e nos ensinando. E vai, com isso, dando a cada criatura a coragem para enfrentar os desafios. Pois é. O nosso Riobaldo, do Guimarães Rosa, foi um que nos alertou com sabedoria: “…O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

Além dele, Chico Buarque foi outro que deixou um contundente testemunho: “Arrisquei muita braçada / Na esperança de outro mar / Hoje sou carta marcada / Hoje sou jogo de azar.” E agora, minha gente, onde está a saída?! Eu não sei dizer. Sei apenas que a roda da vida não costuma esperar por ninguém. E nem mesmo aceita que a gente queira ganhar tempo para entender o processo.

Céus! Pelo visto, tudo tem que ser resolvido da melhor maneira que puder. Ou, então, como conseguir. Feito aquele que ‘vende o almoço que é para pagar o jantar”. E de novo vem a lembrança da sentença de Riobaldo: “O que a vida quer da gente é coragem!”

Toda essa digressão, confesso a vocês, veio por conta da emoção que experimentei ao ver a exposição de fotografia do mestre Bruno Neves, montada na Estação Central de São Bento, na cidade do Porto, em Portugal. A exposição, intitulada como “As crianças da minha Sé”, foi amparada em um conjunto de fotografias de crianças brincando nas ruas do Porto, na década de 1970. Segundo o texto no cartaz de apresentação, com o forte título de “A Cidade do Descontentamento”, o fotógrafo Bruno conseguiu captar nas lentes de sua câmera todo o espectro da marginalidade que circundava aquelas crianças. Eram semblantes pobres e sofridos, ainda que não demonstrassem dor. Pois somente as crianças são capazes de escapar das garras da ingrata realidade. Indiferentes, elas conseguem brincar e partilhar o espaço comum. E conseguem até mesmo extrair prazer com suas bolas de futebol de pano, seus improvisados carinhos de madeira e toda sorte de brinquedos que a imaginação infantil pode produzir.

E eu, como um observador envelhecido pelo tempo, e com a infância já distante o suficiente, acabei me comovendo com aquelas belíssimas fotos. Como consequência, reconheço, aquelas fotos foram capazes de retirar a mordaça o tempo colocou em mim. E nem mesmo o meu velho e conhecido ‘Canelau’ foi capaz de impedir…

O SOM NOSSO DE CADA DIA

É bem verdade que eu sempre fui um sujeito apaixonado por música. Aliás, em nossa casa, lá na infância distante, nós acordávamos ao som de Debussy, Mozart, Beethoven e tantos outros. É que o meu pai era apreciador e ouvinte contumaz da música erudita. E no apartamento da velha Zamenhof, no Estácio, a sala de estar recebera os alto-falantes, amplificador e toca-discos que papai montava com profunda engenhosidade. Aí, já viu, né? Ou se aprendia a apreciar os acordes de Liszt, Bach e Schubert ou ‘pedia pra sair’, como sugeria o intrépido Capitão Nascimento. No entanto, devo reconhecer que essa rotina, de um jeito ou de outro, ‘educou’ os nossos ouvidos. Sendo assim, depois disso, tudo ficou mais fácil. Vieram o samba-canção, o chorinho, o rock e a bossa-nova. E o jazz, enfim, a grande paixão, pode aportar de forma avassaladora em minha vida… Sorte a minha, meus amigos!

Também é verdade que a música sempre ocupou um lugar de destaque no reino das artes. Inclusive o jazz, que pode ser considerado como o mais ‘erudito’ dos ritmos populares, tal a riqueza melódica. Isto porque o jazz possui, em sua estrutura, arranjos tão sofisticados que somente músicos de qualidade são capazes de criar ou executar. Até então, somente a música erudita era reconhecida como ‘nobre’ e, por conseguinte, a única que adquiria o ‘passaporte’ da imortalidade. Os criadores dos famosos clássicos se perpetuaram e atravessaram a história com justa notoriedade.

Não há quem desconheça as obras de Bach, Beethoven, Wagner e tantos outros gênios. No entanto, verdade seja dita: quase todos viveram ou frequentaram os burgueses salões das realezas. Bem diferente do nosso jazz, cuja origem foi escrava. Além disso, o nosso jazz serviu, inicialmente, apenas como canção de lamento. Ou seja, um pranto contra a dura opressão imposta pela burguesia. O verdadeiro canto dos ‘excluídos’…

Eu não quero, com isso, desmerecer o valor da música erudita. Seria insano. Todavia, acredito que o jazz possua mais legitimidade na sua história. Pelo simples fato de retratar a dor da alma. E dor, meus amigos, é o signo que mais atesta a condição humana. Seja ele branco ou preto, nobre ou plebeu. Nada disso importa. No fundo, o que vale mesmo é que o jazz sempre esteve acessível a todos. Sim! A todos que se deixam emocionar. Com dor ou paixão…

“MENOR QUE O MEU SONHO NÃO POSSO SER…” (Lindolfo Bell, poeta)

Verdade é que esse tema não é novo. E, por certo, não resume a vida em uma frase. Mas, cá entre nós: que ele abre uma imensa janela para incontáveis digressões, lá, isso sim!

É que falar sobre ‘sonho’ parece ser algo sedutor ou, pelo menos, algo que alimenta a nossa fantasia e, por tabela, a nossa carência por ‘boas notícias’. Pudera! Os tempos andam demasiadamente bicudos e as más notícias chegam mais rápido que sinal de “wifi”. Como consequência, muitas vezes elas conseguem nos deixar acuados. Ou impotentes diante das ‘veladas’ ameaças que podem incorporar. Mas, calma, aí… Eu explico!

Quando eu era menino, por volta dos doze anos de idade, havia um grupo inseparável de amigos, moradores do Edifício Esperanto, lá na velha Zamenhof. E como todo grupo que se preza, nós tínhamos inúmeros desafios a cumprir. Todos os dias, minha gente! Um dia era roubar frutas na chácara da Quintino do Vale, já no outro, íamos pegar carona de bonde e apostar quem conseguia pular de costas. E, por aí, os desafios se sucediam.

Até que certo dia, Ênio desceu com um cartaz que havia desenvolvido secretamente. Reuniu o grupo na garagem do prédio e, sentado sobre a caixa d’água, começou a explicar o ‘intricado plano’. Era um desenho estranho, com o título escrito na parte de baixo, escrito com letras garrafais: “PROJETO DE ARMADILHA DE DISCO VOADOR”. Céus! Eu fiquei de boca aberta com tanta astúcia e criatividade. Por isso, fui o primeiro a indagar: “Mas, onde é que tem disco voador aqui no Estácio, Ênio?!”

A verdade é que Ênio sempre foi um sujeito calmo e paciente. Mas, naquele dia, em especial, alguma coisa ferveu dentro dele com a minha pergunta. Principalmente porque logo a seguir, o Isac emendou: “Se tiver que pagar alguma coisa, eu estou fora!”

Ênio respirou fundo e pausadamente respondeu: “Isac, você sabe a origem do seu nome? Sabia que Isaac tem como origem os nomes hebraicos “Itshak e Yitzháq”, os quais derivam da palavra “tzaháq”, que literalmente quer dizer “ele irá rir”. Por extensão, o seu nome tem o sentido de “filho da alegria”… Então, faça-me um favor: honre o seu nome e não fale mais nenhuma asneira, combinado, parceiro?!”

Caramba! Aquilo me deixou orgulhoso. Que capacidade tinha o Ênio nas argumentações… Brilhante, isso sim! Mas, o fato é que a grande dúvida permanecia sem resposta: onde colocar a armadilha para pegar disco voador?

Ênio sugeriu que por conta da abundância de frutas (vai que um ET está com fome), o melhor lugar seria na chácara de Quintino do Vale. Afinal, à noite a chácara fica deserta e pode atrair algum disco sem levantar suspeita…

Então, munidos de toda parafernália que Ênio havia sugerido levar, lá estávamos nós no cair da noite preparando a bendita “armadilha”. Marteladas aqui, amarrações acolá e, no fim das contas, havíamos preparado a famigerada engenhoca, batizada por nós de “TRAPIZONGA Nº 1”.

O plano, engenhosamente arquitetado, incluía nós dormirmos na chácara. No entanto, não houve consenso, uma vez que alguns colegas do grupo alegaram impedimentos de várias ordens. Para alguns, os pais não permitiam. Outros disseram que tinham escola bem cedo e deviam tomar banho e arrumar o material escolar. Porém, o quarteto solidário permaneceu fiel ao ‘desafio’. Eu era um deles!

Então, pouco depois das onze da noite tudo já estava preparado e montado. Conversamos por mais uma hora, porém o sono nos rendeu por completo. Como havíamos levado barracas, cada um procurou se aninhar como pode naquele terreno irregular da chácara.

Até que em um determinado momento da madrugada, meus amigos, nós acordamos com uma forte luz branca piscando em nossas barracas. Confesso que fiquei com medo e vacilei um bocado se devia abrir ou não o zíper da barraca. Ao mesmo tempo, havia um intenso barulho de motor ao redor. O que poderia ser?!

Com muito custo, eu acabei rendido pela curiosidade e abri o zíper. Contudo, não conseguia ver nada, porquanto a luz era forte demais, e nos cegava por completo. Passados alguns instantes, eu consegui ouvir a voz do Ênio, em meio aos gritos. Ele dizia para alguém que aquilo tudo era apenas uma ‘experiência científica’. Que não prejudicava ninguém… Qual o quê! O outro lado, meus amigos, respondia apenas que nós tínhamos dez minutos para desarmar a “TRAPIZONGA” e sem fazer barulho. Caso contrário, iríamos todos para FUNABEM passar longas férias e conversar com os ‘extraterrestres’ que têm lá.

Ufa… Tremendo sufoco, isso sim!

A criança que nunca nos deixa

Quando uma criança chega ao mundo, convenhamos, ela vem impregnada de pureza angelical. Logo a seguir, ela passa a receber a forte carga emocional dos pais que, por vezes, se apresenta de modo bastante instável. Daí, começa a “via-crúcis” do novo indivíduo, que pode enveredar por caminhos imprevisíveis. Aliás, se olharmos bem, veremos que tudo isso é profundamente injusto. Afinal de contas, o inocente ‘rebento’ nem bem adquiriu imunidades e já é bombardeado por um monte de insanidades. Paciência…

O problema vem depois, já que essa ‘batalha’ não mais cessará. Com isso, esses filhos estarão sujeitos a toda sorte de frustrações e violências. De tal forma, meus amigos, que se eles não criarem rapidamente mecanismos ‘sadios’ de autodefesa, a coisa vai longe. E como!

Por ironia, é nesse exato momento que se dá início a formação do caráter de uma pessoa. E digo isso de forma consternada, pois acredito que seria bem melhor se tivessem mais tempo para depurar a ‘herança’ recebida da família. Como resultado, muito precocemente eles serão obrigados a fazer sérias escolhas. Escolhas do tipo: ‘quero isso’ e não ‘aquilo’ ou ‘gosto disso’, mas não ‘daquilo’…

De todo modo, indiferente aos nossos problemas, o mundo segue o caminho que pode. Lentamente, ele vai nos apresentando às encruzilhadas, oferecendo tentações e nos empurrando aos becos, quase sempre, sem saída. Céus, que vida complicada, não? O que fazer, então?!

Sinceramente, não sei. Juro a vocês. Sei apenas que o destino de cada criatura a ela pertence. Lá, isso sim! E ao que tudo indica, não há ‘receita de bolo’. Tampouco o ‘dever de casa’ pode ser postergado ou transferido. Pois é, meus amigos, pelo visto, o jeito é arregaçar as mangas e ir à luta. Da melhor maneira que puder. Ou souber. Quanto ao futuro, bem… aí ficará por conta de outros fatores: talento, sensibilidade, determinação… e, até mesmo, sorte. Muita sorte!

O que posso dizer é que comigo não foi diferente. Ainda que a tarefa seja interminável, eu também tive que desbravar os meus caminhos e muitas voltas fui obrigado a dar. Não posso garantir que eu tenha alcançado sucesso, mas que me sinto feliz, lá, isso é verdade.

Talvez, por isso, quando vejo meu filho com dezenove anos e meu ‘adotado’ neto com cinco, confesso que sinto um aperto no estômago. Sim! Desafortunadamente, eu sinto medo por eles. Medo pelos percalços que ainda terão que enfrentar, em um mundo mais conturbado do que nunca…

Ah, minha gente, só me resta torcer. Torcer para que o ‘anjinho da guarda’ de cada um deles seja gentil e prestativo, desses que não se cansam de permanecer de prontidão à espera de eventual ‘servicinho extra’… Que assim seja, Meu Deus!!

(*) A foto serve apenas para me lembrar que um dia eu fui criança feito o querido João Pedro…

OS CAMINHOS DE CADA UM

Lembro muito bem quando conheci Renato Alvim. Eu era ‘calouro’ no magistério e ele já dava aulas a alguns anos. Além disso, Renato esbanjava talento e isso impressionava a todos.

Lembro até que por ser o meu primeiro ano como professor, faltava-me desenvoltura, autoconfiança e uma pitada de ‘malandragem’ em sala de aula. É o tal negócio: eu podia ter competência e boa vontade, vá lá, mas me faltava aquele ‘algo mais’ que somente a experiência desenvolve. Paciência… Fazer o quê?!

O mais interessante, contudo, é que o universo se encarregou de me aproximar de Renato. E assim, acabou criando uma sólida e profunda amizade. Sim! Nós fomos amigos e companheiros por mais de duas décadas e, durante esse percurso, eu pude conhecer outros atributos da personalidade dele.

Para início de conversa, é bom que se diga, Renato era uma criatura extraordinária, com múltiplos talentos. Na Matemática, ele era unanimidade: talento puro! Mas a coisa não parava aí, já que Renato também era um exímio violonista. Aliás, tenho imensas saudades dos encontros musicais conduzidos pelo violão de Renato. Sorte a nossa, isso sim, pois ficávamos noites e mais noites embevecidos pela apurada técnica e elegância que ele nos brindava.

Além disso, não podemos esquecer, Rento Alvim tinha um senso de humor espetacular. E como ele sabia disso, abusava dos improvisos em qualquer ambiente que estivesse. Como consequência, todos paravam para ouvir seus comentários. E, não raro, externavam admiração ao carisma que ele irradiava.

Após alguns anos de convívio, estimulado por ele, eu posso dizer que consegui ‘crescer’ como professor e adquiri um maior traquejo em sala de aula. Desse modo, eu passei a receber os primeiros reconhecimentos dos colegas professores. Por sinal, naquela época era costume dizer: “se a pessoa tiver realmente vocação e talento, bastam uns poucos anos no magistério e a carreira seguirá de vento em popa!”

Pouco tempo depois, eu e Renato passamos a alternar as caronas para o trabalho, uma vez que as unidades do cursinho, Meier e Madureira, eram bem distantes. Então, para economizar gasolina, combinávamos a ida ao trabalho ora no meu fusca, ora no Chevette dele. O diabo é nos dias dele eu era obrigado a aceitar a escolha do percurso, de acordo com o humor e a sensibilidade presentes no Renato. Porquanto ele sempre escolhia trajetos inusitados, normalmente, bem mais longos e demorados.

No início, eu reclamava um bocado com ele: “porra, Renato, vamos gastar meia hora a mais para chegarmos ao cursinho!” E ele, com aquela serenidade quase bovina, respondia com um sorriso nos lábios: “calma, Carlos, é que esse caminho é muito mais bonito, não acha?!” O pior é que ele tinha razão. Invariavelmente!

A vida seguiu o rumo que pode e, por sorte, ainda me presenteou com alguns anos de convívio com essa especial criatura. Depois, eu mudei de cidade e vim morar em Florianópolis. Aqui, eu constitui família e sentei praça. Quanto ao Renato, soube que ele trocou o magistério pela carreira de músico. Ah, meus amigos, eu acredito que ele tenha sido mais feliz enquanto viveu.

Em minhas lembranças, Renato sempre ocupará um lugar de destaque. Afinal, foi com ele que eu aprendi a desvendar alguns caminhos… Abençoado seja, Renato Alvim!