ÁLBUM DE FAMÍLIA

Eu bem sei que essa história parecerá estranha, até mesmo absurda. Verdade é que tudo ocorreu de forma muito rápida e ‘explosiva’. Aliás, até hoje eu não consegui digerir completamente a sequência dos episódios. Por isso, então, vou apelar para a ajuda de vocês, amigos leitores. Rogo apenas para que sejam benevolentes comigo.

O ‘causo’ começou a partir de uma conversa com uma amiga psicanalista. Deixe-me contar o episódio. Mas, por favor, somente depois me digam se eu ‘viajei’ ou não na “maionese’…

A primeira frase que ela pronunciou foi bombástica: “Acredite no que vou dizer, Carlos: família é algo maravilhoso. Porém, creia-me, apenas em um álbum de fotografia!”

Céus, confesso que fiquei encafifado… afinal, eu não sabia o que argumentar ou contrapor. O certo, minha gente, é que naquele momento eu aceitaria qualquer sugestão… menos o silêncio devastador que tomou conta de mim! “E agora, o que posso dizer?” – pensei inquieto.

Muito embora eu não seja mineiro e sim cearense, preferi não falar nada. Apenas balancei a cabeça, como se meditasse sobre a frase. Profundamente. Por sinal, eis aí uma boa dica: sempre que você não se sentir seguro para dar a réplica em uma acalorada discussão, opte pelo silêncio. Juro que funciona! Ao menos, deixamos o interlocutor ‘ensimesmado’ e ganhamos algum tempo para nos recompor… e eu bem carecia… Ufa!

Mas, o diabo é que ela não parou por aí. Quando eu já comemorava o ‘armistício’ da conversa, imaginando mudar de assunto, ela soltou mais um torpedo. Enfaticamente, disse: “O certo é que só a orfandade desenvolve plenamente a criatura. O que é preciso, Carlos, é poder viver essa condição, independente da ‘existência’ dos pais e irmãos. Segundo ela, é preciso “cultivar a individualização e, por conseguinte, permitir que as grandes diferenças possam aflorar nas relações da família. Sem medos ou hipocrisias. Pois só assim, evita-se o acúmulo de mágoas… já que estas, sim, são perigosas e nefastas”.

A amiga psicanalista ainda disse outras coisas. Mas, na altura do campeonato, ah, eu já não conseguia ouvir mais nada direito. Estava atônito e, ao mesmo tempo, incrédulo. No fundo, talvez eu já estivesse até em pânico…

O melhor a fazer era ir para casa após aquele jantar, que nem conseguia descer direito. Pudera! Quem afirmara tudo aquilo era uma conceituada terapeuta lacaniana, extremamente preparada. Uma criatura que possui uma bagagem cultural e emocional de fazer inveja!

“Será que ela tem razão?” – pensei com os meus botões. Isto porque, convenhamos, até aquele momento eu seria capaz de apostar na beleza da família, na importância da união dos ‘entes queridos’, essas coisas… Sabe como é? O fato é que a minha postura sempre fora de ‘guardião’ da família. Paciência!

Aí, surgiu uma inusitada voz, vinda não sei de onde. Parecia até coisa do ‘demônio’: “Dá um tempo, Carlos! Você não fala com seu irmão mais velho há três anos! Isso sem contabilizar o distanciamento estabelecido com os outros…” Céus, é verdade! Ah, mas vai ver que é pelo fato dele ser uma pessoa difícil. Insuportável, até! Já com os outros é di-fe-ren… Hum, será?! Ou mais uma vez eu não quero enxergar a realidade?

O que sei dizer é que pela primeira vez na vida eu senti insônia. Juro. Só vendo o sufoco que passei. Rolava de um lado para o outro na cama e nada dos pensamentos darem trégua.
“A única solução é ‘encarar’ a questão”, pensei com convicção. E aí, comecei a me dar conta de que a amiga psicanalista não estava equivocada. Porquanto a minha família não é lá ‘um exemplo de união’. Apesar de sermos muitos, verdade é que poucos se relacionam bem. Suportamo-nos, isso sim! Talvez, por conta de uma herança cultural que nos empurrava a manter as aparências. Na realidade, somente agora percebo, fomos unidos apenas na infância, que criança é muito pura e não se queixa de nada mesmo. Vocês já viram, por acaso, criança apontar os grandes defeitos dos pais?!

Então, resolvi deixar o assunto de lado. “Melhor assim. Essas ‘coisas’ só devem ser tratadas quando nos encontramos bem, sem nenhum estresse”. E, seguramente, não era o meu caso! Por isso, eu preferi espairecer e dar um pulinho na banca de jornal para ver as novidades. Acabei batendo os olhos nesse filme, “Parente… É serpente”, do fabuloso Mario Monicelli. “Ah, comédia! É tudo que necessito neste momento!” – suspirei aliviado.

No entanto, como costuma dizer a minha irmã: “Não adianta insistir aqui ou acolá, Carlinhos. Basta deixar por conta do universo. E ele, sabiamente, se encarrega de conspirar e pôr as coisas na ordem certa”. Meu Deus, quanta sabedoria!

Assim, comecei a assistir ao filme, deliciando-me com a impecável condução de Monicelli e o belo desempenho dos atores.
Pois é. Um filme fabuloso, isso sim. Que originalidade! Que incrível ‘humor negro’! Mas, ao mesmo tempo, cá entre nós: que hora mais inoportuna! Pois eu nem havia absorvido a conversa com a amiga psicanalista e, ironicamente, fui ‘fulminado’ pelo cáustico humor da história. Por mais que eu tentasse disfarçar, soltando inúmeras gargalhadas ao longo da comédia, percebia que não sairia ileso até o final do filme. É que o diretor, sabiamente, armou uma tremenda cilada para os espectadores, já que da metade da história em diante fica evidente a intenção dele. No fundo, é fácil intuir o final do filme, muito embora não acreditemos que ele, o diretor, tenha coragem de fazer ‘aquilo’… Ah, ele não será capaz disso, pensei perplexo durante a cena da ‘reunião’ dos irmãos para tratar do ‘destino’ dos pais. Quase desliguei a TV!

Olha, minha gente, já foi dito, por aí, que a arte imita a vida. O que eu não sabia, juro a vocês, é que a vida também imita a arte… Quanta ironia!

Somente agora eu posso falar sobre o episódio, pois consegui me libertar do “Lexotan”, após seis meses de intensa terapia. É bem verdade que, no início, tive muitas dificuldades. Só eu sei! Para que vocês tenham uma ideia do aperto: mudei-me de cidade, arrumei um novo emprego, terminei o antigo casamento e, durante um bom tempo, frequentei a “Igreja Arca da Fé”. De fato, tornei-me outra criatura. Feliz? Bem… aí, eu não saberia dizer. O importante é que fiquei aliviado: sem culpas ou remorsos. Mas, não foi nada fácil, creiam-me.

O processo penal ainda está em tramitação, que essas coisas levam muitos anos para serem julgadas. A capitania dos portos ainda não terminou o laudo do acidente do barco. Virgílio, meu advogado, garante que eu sairei vitorioso. Segundo ele diz: “ninguém conseguirá provar nada, Carlos. Há somente suspeitas. Algo sem consistência. No fundo, foi um lamentável acidente: apenas isso!”

Porém, junto à família a questão arrastou-se por um longo e sofrido tempo. Agora, tudo indica que os irmãos já absorveram o ‘trauma’ e, lentamente, ensaiam uma aproximação. Conseguimos até celebrar o aniversário do irmão caçula, no último dia 15, sem que pairasse no ar aquele clima pesado das outras vezes.

Intimamente, devo confessar, tem sido prazeroso rever os irmãos e resgatar antigas lembranças da infância. Eu, meu irmão mais velho e a irmã do meio planejamos, inclusive, uma viagem à nossa terra natal. Iremos rever os parentes e desencaixotar, enfim, as últimas ‘tralhas’ retidas no inconsciente familiar. Como bem recomendou a amiga psicanalista!

Se eu ainda frequentasse aquela igreja, certamente diria: “aleluia, irmãos, aleluia!”

O QUE A MEMÓRIA AMA, FICA ETERNO Adélia Prado

Eu peço licença aos meus amigos e leitores para publicar um texto que não é meu. No entanto, eu me sinto tremendamente representado em cada linha a seguir… Coisa linda!

O QUE A MEMÓRIA AMA, FICA ETERNO – Adélia Prado

Quando eu era pequena, não entendia o choro solto da minha mãe ao assistir a um filme, ouvir uma música ou ler um livro. O que eu não sabia é que minha mãe não chorava pelas coisas visíveis. Ela chorava pela eternidade que vivia dentro dela e que eu, na minha meninice, era incapaz de compreender. O tempo passou e hoje me emociono diante das mesmas coisas, tocada por pequenos milagres do cotidiano.

É que a memória é contrária ao tempo. Enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que realmente importa, eternizando momentos. Crianças têm o tempo a seu favor e a memória ainda é muito recente. Para elas, um filme é só um filme; uma melodia, só uma melodia. Ignoram o quanto a infância é impregnada de eternidade.

Diante do tempo envelhecemos, nossos filhos crescem, muita gente parte. Porém, para a memória ainda somos jovens, atletas, amantes insaciáveis. Nossos filhos são crianças, nossos amigos estão perto, nossos pais ainda vivem.

Quanto mais vivemos, mais eternidades criamos dentro da gente. Quando nos damos conta, nossos baús secretos – porque a memória é dada a segredos – estão recheados daquilo que amamos, do que deixou saudade, do que doeu além da conta, do que permaneceu além do tempo.

A capacidade de se emocionar vem daí: quando nossos compartimentos são escancarados de alguma maneira. Um dia você liga o rádio do carro e toca uma música qualquer, ninguém nota, mas aquela música já fez parte de você – foi o fundo musical de um amor, ou a trilha sonora de uma fossa – e mesmo que tenham se passado anos, sua memória afetiva não obedece a calendários, não caminha com as estações; alguma parte de você volta no tempo e lembra aquela pessoa, aquele momento, àquela época…

Amigos verdadeiros têm a capacidade de se eternizar dentro da gente. É comum ver amigos da juventude se reencontrando depois de anos – já adultos ou até idosos – e voltando a se comportar como adolescentes bobos e imaturos. Encontros de turma são especiais por isso, resgatam as pessoas que fomos, garotos cheios de alegria, engraçadinhos, capazes de atitudes infantis e debilóides, como éramos há 20 ou 30 anos. Descobrimos que o tempo não passa para a memória. Ela eterniza amigos, brincadeiras, apelidos… mesmo que por fora restem cabelos brancos, artroses e rugas.

A memória não permite que sejamos adultos perto de nossos pais. Nem eles percebem que crescemos. Seremos sempre “as crianças”, não importa se já temos 30, 40 ou 50 anos. Para eles a lembrança da casa cheia, das brigas entre irmãos, das estórias contadas ao cair da noite… ainda são muito recentes, pois a memória amou, e aquilo se eternizou.

Por isso é tão difícil despedir-se de um amor ou alguém especial que por algum motivo deixou de fazer parte de nossas vidas. Dizem que o tempo cura tudo, mas não é simples assim. Ele acalma os sentidos, apara as arestas, coloca um band-aid na dor. Mas aquilo que amamos tem vocação para emergir das profundezas, romper os cadeados e assombrar de vez em quando. Somos a soma de nossos afetos, e aquilo que amamos pode ser facilmente reativado por novos gatilhos: somos traídos pelo enredo de um filme, uma música antiga, um lugar especial.

Do mesmo modo, somos memórias vivas na vida de nossos filhos, cônjuges, ex-amores, amigos, irmãos. E mesmo que o tempo nos leve daqui, seremos eternamente lembrados por aqueles que um dia nos amaram.

  • Magistral interpretação de Nelson Freitas.

UM MUNDO PREOCUPANTE

A sentença quase sempre era a mesma: “você errou aqui e acolá. Um absurdo!” Depois disso, a verdade é que raramente as coisas costumavam tomar outro rumo. Pior ainda: quando mudava, nem sempre era pra melhor. Afinal de contas, ter um dedo em riste apontado em nossa direção, céus, isso é algo constrangedor. Humilhante. Porquanto o gesto intimida qualquer criatura.

O que eu posso dizer é que Gustavo era um sujeito tímido, de poucas palavras. Em pequenos ambientes, ele até conseguia se comunicar com os outros. No entanto, bastava o grupo aumentar em número ou em posturas exibicionistas, aí, minha gente, Gustavo se enterrava no primeiro buraco que via. Feito um avestruz…

Para ele, a primeira solução era se esconder, até porque “quem não é visto, não é lembrado”. E Gustavo se esmerava nesse ditado, convenhamos. Fosse para buscar o ‘lado escuro’ que existe em todo grupo, fosse para sair de fininho, “à francesa”, como diziam os especialistas em comportamento humano.

De um jeito ou de outro, o certo é que os ‘estragos se acumulavam’ sucessivamente. E Gustavo demonstrava sentir os golpes da vida. De tal maneira, que quase não víamos mais ele pelas redondezas do bairro. Preferia viver sozinho, sempre recolhido. E olha que eu era o amigo mais próximo dele . Mesmo assim, eu percebia que ele também me evitava. Ora mudando o lado da calçada, ora descendo as escadas do prédio para evitar encontros indesejáveis.

O diabo é que essas coisas só tendem a aumentar. Lamentavelmente. A partir daí, surgem as críticas e perseguições. Até mesmo acusações infundadas. Se observarmos ao redor, veremos que o número de ‘grupos minoritários’ tem aumentado assustadoramente nos últimos tempos. Quem sabe não seja por conta da intolerância que vemos em tantas criaturas ou seitas? Sim! Nós estamos vivendo tempos difíceis, minha gente. Tempos covardes e até violentos. E isso assusta bastante!

Eu não sei dizer qual foi o destino de Gustavo, pois me mudei de cidade e estado e nunca mais soube dele. Algumas vezes, eu perguntei aos amigos comuns sobre o paradeiro dele. Ninguém soube responder ou sequer teve interesse no destino do nosso amigo. Preocupado, eu torço apenas para que ele não tenha sucumbido ao impiedoso coletivo humano. Esse, ah, nós já conhecemos bem: é costumeiramente cruel e intolerante com qualquer tipo diferente. Aliás, sempre tomam o ‘diferente’ como um suposto oponente…

LONGE DESSE INSENSATO MUNDO…

Esta semana eu visitei um grande amigo para montar o sistema de áudio e vídeo que ele adquiriu. E como todo entusiasta por filmes e esportes, ele partiu para uma grande TV, de 50 polegadas. Porém, temeroso de cometer uma daquelas ‘gafes tecnológicas’, Gérson me pediu socorro por saber da intimidade que tenho com as recentes tecnologias.

Empunhando o agradável dever com o amigo, preparei um kit ‘primeiros socorros’, ou seja, cabo HDMI, cabo ótico, cabos RCA e um punhado de adaptadores para as mais variadas interligações. Ufa! Eu parecia até aquele ‘caça fantasma’ do filme, lembram?!

Chegando lá no aconchegante apartamento do Gérson, guardei o kit sobre a mesa e demos início a longa prosa do dia. É que Gérson é um excelente interlocutor, com conhecimentos em inúmeros campos culturais. Por isso, é prazeroso o papo com ele, pois domina diversos temas e possui um apurado senso de humor, o que torna a conversa mais amena e instigante.

No entanto, o dever nos chamava. E com os cabos ao redor do pescoço, fui efetuando as conexões necessárias. Não, sem antes, escutar algumas provocações feitas por ele. “Carlos, com a ajuda do VAR, ficou bem mais fácil o serviço do Flamengo, não acha?” Pois é. Como todo vascaíno fanático, eu já aguardava essas instigadas. Por isso, fiz ouvidos moucos…

Terminado o serviço, fomos aos testes. E Gérson, muito metódico, pegou um bloquinho de anotações e começou a escrever o passo a passo do controle remoto. Como ligar a TV e regular o volume e os canais. Como acessar o “pendrive” com os filmes ou como fazer uso do “player” de bluray ou DVD. Enfim, tudo anotado e ensaiado algumas vezes.

Saindo da casa do amigo Gérson, eu enfrentei um trânsito pesado, o que me fez levar mais de 50 minutos até a minha casa. Com isso, conectei o meu ‘smartphone’ ao som do carro e pus as músicas prediletas para tocar. Por sorte, comecei sendo brindado pelo sopro suave e intimista de Miles Davis, no maravilhoso álbum que serviu de trilha sonora para o filme de Louis Malle, “Ascenseur pour L’échafaud”. Céus, que maravilhosa interpretação Miles conseguiu nos presentear na faixa “L’assassinat de Carala”. Afinal, o clima “noir” que ele desenvolve no tema é profundamente propício para o enredo do filme. Coisa de gênio, meus amigos!!

Daí, como eu já estava relaxado e nem ligava mais para o engarrafamento do trânsito, fui catapultado para lembranças da minha mocidade. Sim, Miles Davis provoca tudo isso! Sendo assim, eu acabei me recordando das dificuldades enfrentadas no primeiro emprego, bem como a escolha do magistério como profissão a ser assumida. Ah, foram tempos difíceis, é verdade. E muita adrenalina eu queimei até conseguir o meu lugar ao sol.

Então, embalado pelo inebriante trompete que, lentamente, foi entorpecendo os meus pensamentos, acabei desaguando nas preocupações típicas de um pai. É que o meu filho Gabriel está atravessando esses mares inquietos. Por ser recém-formado, ele ainda não conseguiu um emprego no ramo escolhido e foi trabalhar em algo bem distante da profissão desejada. Penso que será uma busca demorada. Pior ainda: ela requisitará muita obstinação e paciência até alcançar os objetivos dele.

Como pai, eu acabo sofrendo por tabela, torcendo para que ‘dias melhores’ apareçam e possam atenuar as dores do crescimento dele. É somente o que me resta.

No mais, quem sabe, eu possa sugerir que ele também ouça Miles Davis. Com sorte, talvez ele possa permitir ao coração pulsar no mesmo ritmo do sopro de Miles, como acontece em “Julien dans l’ascenseur”: aquele ritmo forte e angustiante, drenando o seu coração…

https://www.youtube.com/watch?v=Wc4tT-55ZzI