AS ARTIMANHAS DA VIDA

É interessante perceber que alguns filmes que não alcançam o sucesso esperado, ainda que sejam belos e comoventes. E o pior é que a gente, sem entender, fica a se perguntar: por quê?! Talvez seja o caso do amadíssimo filme dirigido por Jeremy Leven e produzido por Francis Ford Coppola, “Don Juan DeMarco”. Lembram dele? Então, vejamos:

A surpreendente história se baseia numa adaptação livre do icônico personagem “Dom Juan DeMarco”. Para tanto, já aposentado, Marlon Brando foi convocado para interpretar o papel de um psiquiatra de Nova York. E assume o difícil caso de um paciente que afirma ser Don Juan DeMarco. A partir daí se desenrola uma deliciosa comédia-romântica, com direito a impecáveis desempenhos de Marlon Brando, Faye Dunaway e Johnny Depp.

É preciso reconhecer que, em alguns trechos, o filme foi capaz de nos ‘arrebatar’ com o seu lirismo e a sua fantasia. Mas, mesmo assim… ele morreu na praia. Céus! Foi uma pena, isso sim. Porquanto a história era bastante sedutora, o texto era comovente e a condução foi até competente. Contudo, ele sofreu duras críticas e não recebeu o merecido reconhecimento.

Explicação para isso? Tenho não! O que eu posso dizer, meus amigos, é que até hoje eu guardo na memória afetiva a sequência final do filme. Sim! Na voz do “irresistível-impostor”, ouvimos a comovente proclamação do paciente ao psiquiatra: “São quatro as questões de valor na vida: o que é sagrado? Do que é feito o espírito? Por que vale a pena viver? Por que vale a pena morrer? A resposta para essas questões é sempre a mesma: amor… só por amor!”

E como eu sou um amante do ‘cinema’, ah, não pude resistir ao ímpeto de defender essa película. Afinal de contas, como membro dessa civilização decadente e por estar entrando na reta final da vida, arre, cabe a mim uma certa irritação ao ‘senso comum’. No fundo, cá entre nós, ele é raso, injusto e até mesmo inconsequente. Paciência… Fazer o quê?!

Marlon Brando e Faye Dunaway estiveram impecáveis!

Johnny Depp soube representar muito bem o ‘terrível-impostor’

do personagem “Don Juan DeMarco”.

Achados & Perdidos

Ontem, eu e minha esposa fomos almoçar em um restaurante com o nosso filho. Lá pelas tantas, eu comecei a desenvolver um argumento, empunhando-o como se fosse uma bandeira a ser defendida. Dizia eu para o Gabriel que não somente o planeta está se exaurindo. Desafortunadamente, devemos reconhecer, a humanidade também está na UTI!

Contudo, sem dar muita importância à minha fala, talvez por conta da pouca idade, eu percebi que tudo o que eu dizia era enfadonho para ele. Ainda assim, resolvi insistir. Afinal, a nossa “conversa” tem que prosseguir, não é verdade?!

Por conta disso, eu comecei argumentando que ao se observar a história, pode-se perceber que o homem tem sido capaz de construir um sem-número de coisas boas a partir de suas invenções. Porém, também é verdade que ele tem ‘extraviado’ ao longo do caminho significativos ‘patrimônios’ que já havia acumulado. E eu não me refiro aqui aos patrimônios materiais. Não, amigos! O mais doloroso é constatar que as maiores ‘perdas’ têm sido os valores éticos, morais e o respeito pelos bens imateriais.

Ainda assim, por favor, eu rogo a todos que não reduzam essas ideias apenas aos aspectos ‘saudosistas’. Até porque não sou dessas criaturas que costumeiramente iniciam suas frases com o famigerado “olha, no meu tempo…”. Não! Minha preocupação reside, muito mais, nas visíveis ‘atrofias’ que percebemos na formação do caráter e da estrutura emocional desses jovens. Pois é. Assusta-me o comportamento deles, indiferentes a toda e qualquer forma de tradição, legado ou valores constituídos.

Decerto, eu também já fui jovem. Por conseguinte, creiam-me, já empunhei as bandeiras da contestação. E participei de incontáveis protestos contra toda sorte de causas e movimentos. Até aí, estamos empatados. No entanto, ainda que eu abraçasse febrilmente uma dada causa, seguramente, havia um componente que nos diferenciava dos atuais movimentos contestatórios: não desprezávamos os valores adquiridos. Isso porque, convenhamos, nós precisávamos ‘deles’ para dar consistência e solidez aos nossos argumentos.

Sendo assim, oxalá eles cresçam e possam retomar àquilo que deixaram de lado durante o percurso. Se isso acontecer, melhor, já que ainda poderemos dar boas risadas pelos enganos e atropelos cometidos…

Na dúvida, seria bom que eles procurassem o setor de achados e perdidos. Afinal, é lá que poderão encontrar algumas preciosidades. Com sorte, quem sabe, poderão até mesmo resgatar antigos ‘afetos’ perdidos?!

UMA PORTA ENTREABERTA

Havia no Edifício Esperanto, lá na velha Zamenhof, do Estácio, um entendimento tácito com relação as divergências. Mas não com relação às questões do condomínio, já que essas eram mais fáceis de lidar. Sim! Bem mais amenas que as questões políticas da época. Calma aí que eu explico.

Nós estávamos no fim da década de 60 e o nosso país atravessava momentos complicados. Até mesmo turbulentos. Como o nosso prédio possuía criaturas com divergentes formas de pensar, o fato é que essas diferenças não passavam em ‘brancas nuvens’. No ‘cantinho’ do seu Severino, a portaria, sempre tinha um pequeno grupo a deitar falação contra esse ou aquele outro proprietário. Fosse para comentar o tamanho da saia de determinada adolescente ou para levantar suspeitas com relação a infidelidade de alguma pessoa do prédio. Tudo era motivo de fofoca e desentendimento.

Ainda assim, o assunto mais comentado à ‘boca pequena’, sem dúvida, era quanto a posição política de qualquer morador. Isto porque, nós vivíamos os famigerados “anos de chumbo”. Por conseguinte, a ‘delação’ era o instrumento mais comum da época. E alguns moradores, por certo, tinham a ‘preferência’ dos delatores, por variados motivos. Era bem o caso do Henrique, do 505, cujo pai estava exilado em outro país. Muito embora Henrique fosse completamente apolítico, bastava ter alguma situação tensa em qualquer lugar, lá vinham os soldados, marinheiros ou aviadores arrombar a porta do apartamento do coitado do Henrique. Sem pedir licença, eles a quebravam a fechadura e vasculhavam tudo em busca de algum vestígio. E nada era encontrado!

Algumas vezes, eles conduziram Henrique para as instalações do aparelho repressor, preferencialmente para o Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS. E Henrique tinha que suportar interrogatórios, constrangimentos e até mesmo torturas. Tudo para que esclarecesse o paradeiro do pai, um líder de grande expressão do cenário político. Embora isso fosse algo comemorado por pequena parte dos moradores do prédio, o certo é que para muitos outros esse processo foi encarado com dor e solidariedade.

Lembro que meu pai ficava profundamente indignado. E dizia para nós, os filhos, que no futuro teríamos vergonha desse período da história política brasileira.

Como consequência, certo mesmo é que Henrique se tornou uma pessoa triste e solitária. Pouco conversava com os outros. Afinal, para ele, os moradores passaram a ser ‘suspeitos’ de muitas delações. Por isso, a presença de Henrique nas festividades do prédio, como São João ou Natal, foi cada vez mais diminuindo. Até o isolamento total. A partir daí, ninguém mais o via entrar ou sair do prédio. Virou um fantasma. Literalmente!

Dizem até que para evitar gastos extras, Henrique passou a deixar a porta do seu apartamento sempre entreaberta. Com isso, ao menos, ele evitava o arrombamento e a quebra da fechadura… Céus! Foram tempos difíceis aqueles. Lá, isso sim!