UMA LONGA CAMINHADA

Já faz um bom tempo que eu frequentei aquela interessante sala de música, lá no apartamento do Rio Comprido, no velho Rio de Janeiro. Lembro até que embora não morasse mais lá, por certo, fazer uma visita ao meu pai e a minha mãe tinha sempre um sabor especial. A começar pelos ‘mimos’ que mamãe reservava para mim. Ah, o que posso dizer é que ela foi a mais doce criatura que eu tive a sorte de conviver. Isto porque, Dona Jarina estava sempre bem-humorada e oferecia a quem chegasse em sua casa um inigualável sorriso de aconchego. Sim! Ver e abraçar a minha mãe era uma dessas coisas da qual nunca se esquece. Porquanto aquele abraço possuía um aspecto mágico, profundamente restaurador para quem recebia. E eu tive a sorte grande de recebê-lo incontáveis vezes. Coisa linda!

Passados os quinze minutos iniciais da visita, dedicados inteiramente a minha mãe, eu me dirigia à sala de música, onde o meu pai estaria envolvido com alguma montagem ou desmontagem de projetos sonoros. Como um experiente ‘cientista’, ele encarnava o velho “Professor Pardal”, que Walt Disney tão bem criara. E como ato contínuo, eu sempre indagava o porquê daquela mudança. Não que isso fosse importante para mim. Mas, certamente, seria para ele! Assim, o meu gesto representava o primeiro sinal de admiração que regaria a longa conversa posterior. Pois é. São os códigos de qualquer relação, pensava eu. E papai admirava isso. Profundamente.

Em contrapartida, ele colocava um disco de jazz para tocar e me convidava para sentar nas confortáveis poltronas da sala de música. Com isso, nós procurávamos relaxar todos os músculos e ideias. A partir daí, ficávamos por conta do sopro intimista de Miles Davis ou de John Coltrane. Muito embora meu pai preferisse ouvir música erudita, ele sabia que o meu gosto musical de maior deleite era o jazz. E novamente os “códigos afetivos” da nossa relação eram seguidos com respeito e reverência. Sempre em favor do outro.

Além disso, havia na mesa ao lado uma garrafa de vinho Guglielmone, o “Velha Capital”. Ele permanecia ali, pacientemente, aguardando a nossa sede de conversas e, quem sabe, ajudasse a soltar represadas conversas? Desse modo, já envoltos pelo ambiente criado, nós dávamos início a prosa do dia. É que papai era um exímio contador de história e de causos, nem sempre muito verídicos. Mas isso, pouco importava. O que valia mesmo era ouvir as suas histórias, que iam das andanças no Partido Comunista aos primórdios das aventuras familiares no sítio do vovô Ezequiel, no distante Ceará. O mais interessante é que tudo aquilo era comemorado com cerimônia e prazer. E eu, por meu turno, embevecido pelo vinho e pela história da família, sempre consentia ao final das nossas conversas. E para minha sorte, foram muitas e proveitosas conversas de pai e filho.

Aliás, devo confessar: dessas lembranças, o que me dói é saber que somente eu testemunhei tais acontecimentos. Considero uma grande injustiça, já que eu gostaria muito que meu filho fosse vivo, à época, para que ele pudesse acompanhar ao nosso lado o que de melhor os “Menezes” conversaram nessa vida… Saudades suas, meu pai!

Meu velho e querido pai, Holbein Menezes, que viveu 100 anos!

O GUARDADOR DE REBANHOS (*)

Tem vezes que a gente se depara com situações que nos parecem profundamente familiares. E desse modo, somos até capazes de acreditar que já conhecíamos ou, pelo menos, já tínhamos visto aquela pessoa ou situação em outro lugar…

Pois é. Isso parece incrível, o verdadeiro “déjà vu”. Mas foi o que me ocorreu quando escutei a voz de António Zambujo. É que ao ouvir, logo de início, ela me soava algo muito próximo. Íntimo até. E mais feliz eu fiquei quando ouvi a canção “Ao sul”. Céus! Zambujo consegue acolher com profunda sensibilidade o solitário violão e, carinhosamente, canta a linda melodia: “Sob as águas desse rio / onde a barca dos sentidos / nunca partiu. / Lá longe / inventei o dia azul / pelo desejo de chegar ao sul…”

Como ato contínuo, devo reconhecer, imediatamente eu me lembrei dos versos de Fernando Pessoa, em “O Guardador de Rebanhos”: “Não tenho ambições nem desejos / Ser poeta não é uma ambição minha / É a minha maneira de estar sozinho.”

O que sei dizer, meus amigos, é que ouvindo o CD, “Outro sentido”, de Antônio Zambujo, eu fui tomado por muitas lembranças de Portugal. Recordações de um tempo que eu já não sabia mais que existiam em minhas memórias. Porquanto eu tinha apenas vinte e cinco anos de idade e conheci, sozinho, aquele maravilhoso país. Sim! Eu perambulei um bocado pelas ruas de Lisboa. Ora fuçando a Livraria Bertrand, na Rua Garret, 72, bem atrás dos Armazéns do Chiado. Ora extasiado pelo passeio nas ruas e becos da Alfama, visitando o Museu do Fado e ouvindo toda sorte de canções de Amália Rodrigues e tantos outros.

“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos… / Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, / Mas porque a amo, e amo-a por isso, / Porque quem ama nunca sabe o que ama / Nem sabe por que ama, nem o que é amar…”

É bem possível que hoje eu tenha recebido a visita do meu avô materno, João Antunes. Ah!, meus amigos, essa foi uma visita especial. Afinal de contas, eu mal conheci o meu avô. Ele faleceu quando eu tinha pouco mais de dois anos de idade. Contudo, em algum ponto do meu DNA ficou gravado o imenso amor que ele tinha por sua terra… e me repassou!

“O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério. / Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é o sol / E a pensar muitas cousas cheias de calor.”

Então, por tudo isso é que nesse ensolarado sábado de frio, após a caminhada matinal pela Beira-mar, eu acabei pegando na estante um disco para ouvir, enquanto me acomodava na rede do escritório. Não por acaso, o disco escolhido foi esse de António Zambujo, intitulado “Outro sentido”. Belíssimo. Comovente! E tem os ingredientes necessários para o deleite de todos: lindas melodias, belas interpretações e um imenso amor ao canto português!

“Mas abre os olhos e vê o sol, / E já não pode pensar em nada, / Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos / De todos os filósofos e de todos os poetas. / A luz do sol não sabe o que faz / E por isso não erra e é comum e boa.”

Assim, como não há nada mais a dizer, eu quero apenas deixar o meu registro de gratidão por esse Portugal que me acolheu tão bem. De quebra, eu presto uma homenagem ao meu avô João Antunes. Decerto, ele plantou nas terras brasileiras a marca de sua brava trajetória. Abençoado seja, meu avô materno!

“Mas se Deus é as flores e as árvores / E os montes e sol e o luar, / Então acredito nele, / Então acredito nele a toda a hora, / E a minha vida é toda uma oração e uma missa, / E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos…”

(*) “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

Fernando Pessoa

Vovô João Antunes