O SALVO-CONDUTO

(Para o grande mestre Aldir Blanc)

Uma parte da minha existência eu vivi nas ruas e ladeiras do velho Estácio, no coração do Rio de Janeiro. E foi lá também que eu aprendi a driblar as incertezas desse mundo, em busca de oportunidades e um ‘lugar ao sol’. A encrenca é que nem sempre elas vinham. Por isso, ainda muito novo, eu tive que aprender a soletrar as rimas presentes nos desafios que cercam toda infância. E, com isso, provar que tinha algum valor…

“O menino cresceu entre a ronda e a cana / Correndo nos becos que nem ratazana / Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha / Subindo em pedreira que nem lagartixa…”

O fato é que naquela época o Estácio exigia dos meninos o mais duro ‘vestibular’ que podia haver: a sobrevivência e o êxito. Porquanto eram muitas as provas a que fomos submetidos. Sim! Provas que envolviam coragem e resiliência. Convicção e força de vontade. Quem sabe, até mesmo teimosia?! Afinal, dentre os tantos moleques que disputavam as pelejas, os ‘sobreviventes’ tinham que apresentar ‘algo a mais’ para serem distinguidos naquela multidão.

“Ídolo de poeira, marafo e farelo, / Um deus de bermuda e pé-de-chinelo, / Imperador dos morros, reizinho nagô, / O corpo fechado por babalaôs.”

E assim o tempo foi passando. Enquanto isso, eu procurava crescer. Por dentro e por fora. Procurava seguir o meu rumo de modo digno, para não ‘envergonhar’ ninguém. Para não deixar nenhuma ‘dívida moral’ nas mãos de credores duvidosos. Acreditando, assim, que conseguiria escapar do duro destino que muitos colegas tiveram.

“Grampearam o menino do corpo fechado / E barbarizaram com mais de cem tiros / Treze anos de vida sem misericórdia / E a misericórdia no último tiro.”

A minha sorte, devo reconhecer, é que sempre atraí pessoas do bem. E foram elas as responsáveis pelo meu crescimento e a minha sobrevivência. A começar pelo seu Rodrigo, um velho sargento reformado da Marinha do Brasil, que muitas vezes, debaixo daquela marquise da Zamenhof, teve a paciência de me ensinar a soletrar o mundo. Ah, abençoado seja, seu Rodrigo!

“Iansã trouxe as almas e os vendavais, / Adagas e ventos, trovões e punhais / Oxum-Maré largou suas cobras no chão / Soltou sua trança, quebrou o arco-íris / Omulu trouxe o chumbo e o chocalho de guizos / Lançando a doença pra seus inimigos…”

O que eu posso dizer a vocês é que depois disso, após esse percurso inicial, tudo o mais foi mera consequência. Uma coisa oportunizando a outra. E no meio dessa estrada, eu  aprendendo a ser bancário e ser professor. Aprendendo a ser marido, pai e avô. Céus, como foi boa essa ‘viagem’. Como fui ‘sortudo’ por conhecer no trajeto tantas pessoas maravilhosas. Criaturas que deixaram registros permanentes em minha alma. E essa incrível sensação de que tudo valeu a pena…

Valeu mesmo!