Quase todos os meninos da rua Zamenhof, no velho Estácio, já haviam levado surras de seus pais em algum momento. Os motivos para isso eram variados e, quase sempre, justificados. No entanto, aos 12 anos de idade, eu ainda estava ileso, o que constituía um feito enorme.
Na verdade, não que eu deixasse de merecer uns beliscões de minha mãe. Mas é o tal negócio: eu até podia não saber o motivo deles. Mas, o certo é que no fim das contas alguma coisa dizia que eles eram procedentes… lá, isso sim!
Nem mesmo quando eu fui pego ‘matando aula’ para pegar carona de bonde. E olha que o plano estava funcionando certinho. Eu deixava a mala da escola escondida na garagem do prédio e me mandava para a Praça da Bandeira, a “Broadway” dos meus sonhos juvenis. Lá chegando, eu vislumbrava os companheiros de jornada e, então, renovávamos os desafios: quem iria soltar de costas? Quem conseguiria parar em poucos metros e coisas assim?
Tudo funcionava bem, como um relógio. Até que um dia, ao voltar das aventuras, eu percebi a minha mãe parada na esquina da Zamenhof. Xiiii, alguma coisa deu errado… e, quando cheguei, o primeiro beliscão alcançou a minha orelha direita. Não deu nem tempo para dizer ‘boa tarde, mãe’. Ela estava com a minha mala na mão e o sangue nos olhos: só vendo!
Verdade é que eu não sabia que era gago. Mas, naquele dia eu fiquei. Afinal, não consegui explicar por que há três dias eu não aparecia na escola. Para refletir sobre tudo aquilo eu fiquei de castigo por duas semanas, sem ver televisão e sem brincar com os amigos.
O tempo, nessa época, passava muito devagar, quase parando durante as noites. Eu não saberia explicar o porquê. Aliás, acredito que nem os físicos da época sabiam. O fato é que o tempo é algo relativo e foi preciso surgir um gênio feito Einstein para dar luz à escuridão do tema. Vejam só um exemplo: como ainda estava de castigo, perguntei a minha mãe se podia conversar com o Antônio nas escadas do corredor. Ela olhou para o meu pai e como ele não disse nada, acabou consentindo. Então, eu e Antônio começamos as conversas. E vai daqui e dali, e muda de assunto e coisa e tal. Quando vi, já estava na rua jogando bola. Animado que só vendo. Foi quando o Luisão maluco deu aquela cacetada e isolou a bola na casa do seu Nacib. “Quem isola é quem busca!”, dizia o almanaque da Zamenhof.
Sendo assim, fomos obrigados a sentar no meio-fio e aguardar a bola ser recuperada. Mas, diabo, o tempo é algo imprevisível mesmo. De repente, alguém me avisa: “Chau, o teu pai está chegando…”. Foi quando senti aquele solavanco de adrenalina e me lembrei que estava de castigo. Meu pai, sem dizer uma única palavra, pegou-me pelo braço e lentamente desceu a ladeira da Zamenhof comigo em direção ao prédio. Meu Deus do Céu! Nunca havia imaginado que a pior surra do mundo foi a que eu levei sem receber nenhum tapa, nem cinto, nem beliscão. Naquela noite, apenas o silêncio ensurdecedor bateu duramente em meu corpo…
