O SALVO-CONDUTO

(Para o grande mestre Aldir Blanc)

Uma parte da minha existência eu vivi nas ruas e ladeiras do velho Estácio, no coração do Rio de Janeiro. E foi lá também que eu aprendi a driblar as incertezas desse mundo, em busca de oportunidades e um ‘lugar ao sol’. A encrenca é que nem sempre elas vinham. Por isso, ainda muito novo, eu tive que aprender a soletrar as rimas presentes nos desafios que cercam toda infância. E, com isso, provar que tinha algum valor…

“O menino cresceu entre a ronda e a cana / Correndo nos becos que nem ratazana / Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha / Subindo em pedreira que nem lagartixa…”

O fato é que naquela época o Estácio exigia dos meninos o mais duro ‘vestibular’ que podia haver: a sobrevivência e o êxito. Porquanto eram muitas as provas a que fomos submetidos. Sim! Provas que envolviam coragem e resiliência. Convicção e força de vontade. Quem sabe, até mesmo teimosia?! Afinal, dentre os tantos moleques que disputavam as pelejas, os ‘sobreviventes’ tinham que apresentar ‘algo a mais’ para serem distinguidos naquela multidão.

“Ídolo de poeira, marafo e farelo, / Um deus de bermuda e pé-de-chinelo, / Imperador dos morros, reizinho nagô, / O corpo fechado por babalaôs.”

E assim o tempo foi passando. Enquanto isso, eu procurava crescer. Por dentro e por fora. Procurava seguir o meu rumo de modo digno, para não ‘envergonhar’ ninguém. Para não deixar nenhuma ‘dívida moral’ nas mãos de credores duvidosos. Acreditando, assim, que conseguiria escapar do duro destino que muitos colegas tiveram.

“Grampearam o menino do corpo fechado / E barbarizaram com mais de cem tiros / Treze anos de vida sem misericórdia / E a misericórdia no último tiro.”

A minha sorte, devo reconhecer, é que sempre atraí pessoas do bem. E foram elas as responsáveis pelo meu crescimento e a minha sobrevivência. A começar pelo seu Rodrigo, um velho sargento reformado da Marinha do Brasil, que muitas vezes, debaixo daquela marquise da Zamenhof, teve a paciência de me ensinar a soletrar o mundo. Ah, abençoado seja, seu Rodrigo!

“Iansã trouxe as almas e os vendavais, / Adagas e ventos, trovões e punhais / Oxum-Maré largou suas cobras no chão / Soltou sua trança, quebrou o arco-íris / Omulu trouxe o chumbo e o chocalho de guizos / Lançando a doença pra seus inimigos…”

O que eu posso dizer a vocês é que depois disso, após esse percurso inicial, tudo o mais foi mera consequência. Uma coisa oportunizando a outra. E no meio dessa estrada, eu  aprendendo a ser bancário e ser professor. Aprendendo a ser marido, pai e avô. Céus, como foi boa essa ‘viagem’. Como fui ‘sortudo’ por conhecer no trajeto tantas pessoas maravilhosas. Criaturas que deixaram registros permanentes em minha alma. E essa incrível sensação de que tudo valeu a pena…

Valeu mesmo!

DESENHOS DE GIZ

Outro dia nós estávamos conversando com o nosso filho sobre as perspectivas que se abriram para ele após o término da universidade. Como resposta, Gabriel fez uma longa exposição de motivos, elencando os projetos que tem em mente para realizar. Ouvimos com interesse e atenção. Por conta disso, eu e a mãe dele ponderamos sobre os prós e contras presentes nos argumentos explicitados por ele. E manifestamos entusiasmo com a visão de mundo, embutida em cada etapa apontada, à medida que percebíamos que a narrativa era plena de propósitos, planos e objetivos. No entanto, confesso a vocês, eu sentia falta de alguns aspectos ‘humanos’, tais como medos, sonhos, fantasias e dúvidas. Isto porque, convenhamos, estando ele com 21 anos de idade e sem ainda ter experimentado as ‘dores do amor’, no fundo, tudo aquilo me soava bonito, porém incompleto. É que para nós, mais velhos e experimentados, o discurso dele não contemplava a presença dos conflitos inerentes à vida. Foi quando eu lembrei da bela melodia de João Bosco e Abel Silva, intitulada “Desenho de Giz”:

“…Aí, diz o meu coração

Que prazer tem bater se ela não vai ouvir

Aí, minha boca me diz

Que prazer tem sorrir

Se ela não me sorrir também

Quem pode querer ser feliz

Se não for por um bem de amor…”

Pois é, minha gente. Ao mesmo tempo, durante a argumentação, eu tentei frear alguns pensamentos meus para permitir que Gabriel atravesse esse percurso do seu jeito e no seu tempo. Afinal, cada um de nós tem lá as heranças e legados, e algumas missões a cumprir, não é verdade? Então, quem sou eu para ditar comportamentos?! O melhor é deixar o Gabriel por sua ‘conta e risco’, atento ao caminhar dele, mas, à distância, sem grandes interferências. O diabo é que nós, pais e mães, temos a irrefreável tendência de querer ‘ajustar’ os passos dos filhos. Sim! Isso pode até ser feito com a melhor das intenções, com muito amor, todavia, devemos reconhecer, nós corremos o risco de pagar um alto preço pela intromissão. Pior ainda: eles é que acabam pagando por isso!

“Eu sei que vocês vão dizer

A questão é querer, desejar, decidir

Aí, diz o meu coração

Que prazer tem bater se ela não vai ouvir

Cantar, mas me digam pra quê

E o que vou sonhar

Só querendo escapar à dor…”

“E agora, José?”, lembraria o nosso poeta Drummond. O que fazer? Sei não. Eu acredito que o mais indicado, talvez, seja colocar na conta do ‘destino’ os rumos que ele irá tomar. E imbuído de confiança, deixar que o talento, a obstinação e a mão de Deus acompanhem os passos dele. Afinal, ele tem tudo para ser feliz. E em caso de dúvida, basta lembrar a belíssima canção: “Quem pode querer ser feliz / Se não for por amor?”

“SUJEITO DE SORTE”

Há quem acredite na sorte e no azar. Há quem aposte nas chances de cada lado dessa moeda do destino. Aliás, se pensarmos bem, nós aceitamos que a vida é assim: dúbia e cheia de idas e vindas. Repleta de certezas e incertezas. De alegrias e tristezas. Porquanto tudo isso faz parte dessa surpreendente estrada, não acham? Por isso mesmo, ela seja o nosso maior desafio e o mais importante ‘objeto do desejo’.

Os poetas, criaturas cuja visão de mundo ultrapassa os limites do nosso entendimento, costumam dizer que o melhor da vida é viver. Aí, sim… creio que eles têm toda razão. Afinal, sem o medo de errar aqui e acertar acolá, no fundo, eles desafiam a própria sensibilidade.

Já eu, porém, não sou poeta. E nem pretendo arriscar a minha cota de sorte. Vai que ela não me dê uma segunda oportunidade, como é que eu fico?! Então, prefiro conduzir a vida de modo mais sereno. Até porque, convenhamos, eu já não tenho idade para alguns riscos.

Isso não quer dizer que a minha vida seja monótona ou sem graça. Não, muito ao contrário! Eu gosto do que faço, podem acreditar. Gosto muito. E não tenho dúvida em declarar que aprecio intensamente o jeito que aprendi a ‘soletrar esse mundo’ ao longo desse caminho.

Belchior, meu querido conterrâneo, certa vez cantou em verso e prosa: “Presentemente, eu posso me considerar um sujeito de sorte / Porque apesar de muito moço / Me sinto são, e salvo, e forte… / Tenho sangrado demais / Tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri / Mas esse ano eu não morro.”

Pois é, minha gente. No ano passado, eu festejei o centenário do meu velho pai. E percebi que ele soube conquistar, com sabedoria, essa marca extraordinária. Por conta disso, se a genética for condescendente, eu também pretendo chegar lá. Para tanto, é preciso manter o foco e cuidar da saúde física, mental e espiritual. Aproveitando cada pedaço desse chão percorrido e se preparando para o que vem pela frente.

Sei bem que não é uma peleja fácil de encarar. Até porque, as ‘forças contrárias’ estarão presentes, dificultando a empreitada em cada momento do trajeto. Nas esquinas do caminho, sempre haverá um desafio. E em cada estação do ano, por certo, os ventos soprarão fortemente que é pra ver se somos capazes de resistir. Há que pelejar…

O que eu posso dizer é que descobri o meu lugar nesse mundão de Deus. E assim como Belchior percebeu, eu também poderia cantar: “Não você não me impediu de ser feliz / Nunca jamais bateu a porta em meu nariz / Ninguém é gente / Nordeste é uma ficção / Nordeste nunca houve. / Não, eu não sou do lugar / Dos esquecidos / Não sou da nação / Dos condenados / Não sou do sertão / Dos ofendidos / Você sabe bem / Conheço o meu lugar!”

PS. Nossa última foto antes dele se despedir desse plano…

A VIDA VIVIDA*

Sim, meu querido tio, eu bem sei que o título desse texto é inspiração sua. Por sinal, ele foi colocado em uma belíssima crônica, escrita por você nos anos 70. Pois, saiba, então: aquela crônica foi responsável por muitas mudanças na minha vida. É que eu vinha seguindo determinado rumo e, a partir dela, confesso, mudei algumas trajetórias. Muito embora eu reconheça que não eram caminhos ruins, mas por certo não traduziam a essência do meu ser. Havia muita inocência ao meu redor. Muitos sonhos que jamais seriam alcançados, ainda que fossem utopias a serem perseguidas.

O fato é que, de lá para cá, a roda do mundo girou mais um bocado. E, desafortunadamente, muitos de nós nos perdemos no caminho. Uns perderam a coragem de lutar por condições melhores de vida. Outros perderam a noção do que é certo e do que é errado e praticaram coisas feias em nome da ganância. Houve até quem mudasse de lado, fingindo não lembrar as juras e dos compromissos assumidos. Paciência! Sabemos que, no fundo, nem sempre é fácil se manter correto e íntegro…

Também é verdade, meu tio, que inúmeras criaturas abandonaram o apego e a fidelidade às causas mais importantes. E lhe asseguro que não estou aqui a apontar o dedo em direção a essas pessoas. Por mim, elas que prestem conta aos seus pares e as suas consciências. Já me bastaram os incontáveis anos de terapia em busca de arranjos internos mais ajustados. Quem sabe, só assim se consiga seguir em frente com alguma harmonia? Vai saber?!

De minha parte, o que sei é que fui deixando pelo caminho um sem-número de inutilidades, carregadas com extrema dificuldade. O pior de tudo, tio velho de guerra, é que somente agora tudo isso me parece simples e banal. Mas, por que eu tive que pagar esse duro ‘pedágio’? Por que não podia ser mais fácil e suave esse percurso de vida? Até mesmo o Mário Quintana, nosso estimado poeta, experimentou essas dores: “Da vez primeira em que me assassinaram, / Perdi um jeito de sorrir que eu tinha. / Depois, a cada vez que me mataram, / Foram levando qualquer coisa minha…”

Aliás, há um outro poema que é atribuído ao Mário Quintana, mas também a outros autores. Ao que tudo indica, parece ser de autoria desconhecida. Porém, é maravilhoso e oportuno para o momento.

Vejam só:

“De repente tudo vai ficando tão simples que assusta.

A gente vai perdendo as necessidades, vai reduzindo a bagagem.

As opiniões dos outros, são realmente dos outros, e mesmo que sejam sobre nós,

não tem importância. Vamos abrindo mão das certezas, pois já não temos certeza de nada.

E, isso não faz a menor falta. Paramos de julgar, pois já não existe certo ou errado e sim a vida que cada um escolheu experimentar.

Por fim entendemos que tudo o que importa é ter paz e sossego, é viver sem medo, é fazer o que alegra o coração naquele momento.

E só.”

A LONGA CAMINHADA – Parte 5

Meu pai me contou que a primeira vez que viu minha mãe, ela estava sentada em uma cadeira na porta da casa em que morava. Ao olhar para ela, sentiu um forte solavanco no peito. Sentiu, também, uma quentura no rosto, algo que ele jamais havia experimentado na vida. Por conta disso, procurou caminhar com passos lentos na esperança de receber um novo olhar. E aconteceu. Acompanhado de um tímido sorriso, aquela moça lançou mais um olhar em direção a ele, confirmando que o ‘encontro’ ocorrera.

“E agora penso na réstia / Daquela luz amarela / Que escorria do telhado / Pra dourar os olhos dela…”

Como aquele era um dos caminhos que meu pai utilizava para ir ao trabalho, a partir daquele dia, sim, tornou-se ‘roteiro obrigatório’. E assim permaneceu, até que decorridos dois meses, ele resolveu parar para perguntar o nome dela. Tremendo de emoção, ela respondeu: eu me chamo Jarina. Céus… que vontade de manter a conversa. Contudo, o olhar das irmãs ao lado avisava sobre o grande perigo.

Não é difícil presumir os artifícios que ele utilizou para estabelecer um convívio. Certo mesmo é que ele precisou de muita coragem para pedir permissão de namoro ao pai de Jarina. Sim! Foi um gesto muito ousado, porquanto ele tinha apenas 20 anos e ela 16. No fundo, eram dois adolescentes, sem nenhuma experiência na vida. Porém, ‘enfeitiçados’ pelo amor!

“Lembro um flamboyant vermelho / No desmantelo da tarde / A mala azul arrumada / Que projetava a viagem…”

Oito meses após o primeiro encontro, meu pai e minha mãe se casaram. Visivelmente apaixonados. No entanto, a vida do casal era de muita dureza. Ainda mais porque eles acolheram dois irmãos caçulas de minha mãe, uma vez que o vovô João ficara viúvo.

A partir daí, vieram os filhos. Um atrás do outro, até completarem seis. Com isso, a cada ano e meio minha mãe acalentava uma nova criança nos braços. Eu imagino que não deva ter sido fácil para eles, mas ainda assim seguiram em frente. Sempre com determinação e muito amor. Até mesmo quando o destino pregou uma peça e ‘infringiu’ a perda de um dos filhos. Ah, foi um duro golpe, é verdade. E Jarina sentiu isso! Demasiadamente. Extraviando em alguns momentos até mesmo o apego pela vida…

No entanto, papai teve que se virar para dar conta de tantas demandas. E a principal delas, sem dúvida, era recuperar a sanidade emocional de mamãe. Para tanto, ele a conduziu a inúmeras terapias, até encontrar a que conseguiu ‘restaurar’ as emoções de sua companheira. Um processo longo e sofrido, mas que trouxe respostas adequadas.

“Recomeçando das cinzas / Vou renascendo pra ela / E agora penso na réstia / Daquela luz amarela…”

O mundo, então, girou mais um bocado. Papai e mamãe atravessaram uma vida intensa e desafiadora. Acertando aqui e errando acolá. O certo é que os dois sempre mantiveram as mãos dadas. Literalmente. Com isso, tornaram-se cúmplices em diversos projetos. E criaram um espectro de amor que, certamente, os filhos e netos haverão de se orgulhar. Só que o ‘destino’ novamente pregou uma peça e Jarina foi chamada precocemente. Assim, ela deixou meu pai profundamente desnorteado, além dos filhos órfãos.

“E agora penso que a estrada / Da vida, tem ida e volta / Ninguém foge do destino / Esse trem que nos transporta.” (*)

Tempos depois, foi a vez do meu pai se despedir da vida, tendo completado cem anos de existência. O que eu posso dizer é que a história de Jarina e de Holbein não é apenas uma bela história de amor. Bem mais do que isso, ela revela tudo que fica em nosso redor: amor, paixão, dignidade e respeito. E nada mais tem importância. Afinal, eles finalmente se reencontraram… só que em outro plano da existência!

PS. *Alceu Valença, nosso menestrel, acolheu nos versos do seus “Sete desejos” o entendimento desse maravilhoso encontro!

A LONGA CAMINHADA  – Parte 4

A ordem foi bem clara: aguardar a chegada da Kombi na esquina da Rio Branco com a Presidente Vargas, em frente ao prédio do Banco do Brasil. E mais ainda: às 19 horas. Impreterivelmente. A senha para o reconhecimento seria: “ONDE FICA SÃO CRISTÓVÃO?” E a resposta deveria ser: “BASTA SEGUIR EM FRENTE!”

Como Amaral trabalhava ali perto, teve tempo de tomar um café com leite e comer um pão com manteiga, pois sabia que a empreitada seria longa. Aliás, muita longa. Assim, por precaução, comprou um maço de Continental e uma revista de palavras cruzadas. Afinal, nunca se sabe o tempo de espera…

Às 19 horas, pontualmente, ele ouviu a discreta buzina da Kombi e, ao confirmarem as senhas, percebeu que deveria entrar rapidamente no carro. Abriu a porta traseira e sentou-se no último banco. Dali, eles pegaram a Presidente Vargas em direção ao Gasômetro, via Francisco Bicalho. Foi quando o motorista avisou que ele devia vendar os olhos, tão logo entrassem na Avenida Brasil.

Dito e feito. Amaral era uma criatura muito disciplinada e seguia todos os protocolos de segurança. Além disso, ele sabia que a viagem seria longa e sem conversas. Apenas o rádio da Kombi quebraria o silêncio, transmitindo o hilário programa “Balança, mas não cai”.

Foram quase cinco horas de viagem e Amaral sentiu que o motorista deu muitas voltas em estradas esburacadas, o que tornou o trajeto mais cansativo e tenso. Somente por volta da meia-noite eles chegaram ao destino. Desceu da Kombi e, relaxando a musculatura, pode tirar a venda dos olhos. Entrou na casa e recebeu a instrução de que aguardasse a chegada do ‘chefe’. Isso, porém, só ocorreu às três da madrugada, quando as portas do escritório se abriram e Amaral caminhou lentamente em direção ao escritório.

É bem verdade que ele nunca havia se encontrado com o ‘chefe’. Conhecia apenas por meio das informações dos bastidores e pelas fotos dos jornais. Luís Carlos Prestes, ao cumprimentá-lo, parecia não saber sobre o papel do companheiro no Partido. Tanto é que iniciou a conversa indagando sobre as movimentações e manobras na ‘célula’ do Banco do Brasil. Amaral, por sua vez, prestou contas dos processos e, conforme ia narrando as estratégias que eram usadas, percebia que o ‘chefe’ estava desinformado. Porquanto, de quando em quando, Prestes perguntava algo a respeito para os seus assessores. É aquela velha história: só levam ao conhecimento do ‘chefe’ os assuntos que são do interesse do escalão intermediário. Assessor que se preza, espertamente, fornece apenas as ‘boas notícias’…

Passados cinquenta minutos de conversa, Amaral já se sentia decepcionado com o encontro. No fundo, ele foi se dando conta de que as velhas leis que regem os ‘estatutos do Partido’ são discursos retóricos. Algo que não funciona mais. Ou até mesmo, nunca funcionou. Fazem parte apenas do ‘manual de ação’.

Talvez, por isso, Amaral tenha se sentido ‘encorajado’ a cobrar mais transparência do Comitê Central, na figura do Secretário-Geral Luís Carlos Prestes. Daí, iniciou uma longa exposição de motivos baseados nos mais de vinte anos de militância dentro do Partido. Ao final da argumentação, ouviu do secretário a concordância, bem como as novas orientações para os assessores. Saiu de lá exultante, sentindo-se vitorioso!

Contudo, decorridos três meses, Amaral percebeu que nada havia mudado e que os enganos do Partido continuavam iguais. Foi um duro golpe, isso sim. Principalmente, por lembrar que muitos companheiros acreditavam nas mudanças. E esperança, meus amigos, é algo que não se posterga. Tampouco se negocia.

Talvez, até mesmo o secretário Prestes tenha se tornado vítima da ‘burocracia interna’. Paciência… Fazer o quê?!

A LONGA CAMINHADA – Parte 3

Quase todos os meninos da rua Zamenhof, no velho Estácio, já haviam levado surras de seus pais em algum momento. Os motivos para isso eram variados e, quase sempre, justificados. No entanto, aos 12 anos de idade, eu ainda estava ileso, o que constituía um feito enorme.

Na verdade, não que eu deixasse de merecer uns beliscões de minha mãe. Mas é o tal negócio: eu até podia não saber o motivo deles. Mas, o certo é que no fim das contas alguma coisa dizia que eles eram procedentes… lá, isso sim!

Nem mesmo quando eu fui pego ‘matando aula’ para pegar carona de bonde. E olha que o plano estava funcionando certinho. Eu deixava a mala da escola escondida na garagem do prédio e me mandava para a Praça da Bandeira, a “Broadway” dos meus sonhos juvenis. Lá chegando, eu vislumbrava os companheiros de jornada e, então, renovávamos os desafios: quem iria soltar de costas? Quem conseguiria parar em poucos metros e coisas assim?

Tudo funcionava bem, como um relógio. Até que um dia, ao voltar das aventuras, eu percebi a minha mãe parada na esquina da Zamenhof. Xiiii, alguma coisa deu errado… e, quando cheguei, o primeiro beliscão alcançou a minha orelha direita. Não deu nem tempo para dizer ‘boa tarde, mãe’. Ela estava com a minha mala na mão e o sangue nos olhos: só vendo!

Verdade é que eu não sabia que era gago. Mas, naquele dia eu fiquei. Afinal, não consegui explicar por que há três dias eu não aparecia na escola. Para refletir sobre tudo aquilo eu fiquei de castigo por duas semanas, sem ver televisão e sem brincar com os amigos.

O tempo, nessa época, passava muito devagar, quase parando durante as noites. Eu não saberia explicar o porquê. Aliás, acredito que nem os físicos da época sabiam. O fato é que o tempo é algo relativo e foi preciso surgir um gênio feito Einstein para dar luz à escuridão do tema. Vejam só um exemplo: como ainda estava de castigo, perguntei a minha mãe se podia conversar com o Antônio nas escadas do corredor. Ela olhou para o meu pai e como ele não disse nada, acabou consentindo. Então, eu e Antônio começamos as conversas. E vai daqui e dali, e muda de assunto e coisa e tal. Quando vi, já estava na rua jogando bola. Animado que só vendo. Foi quando o Luisão maluco deu aquela cacetada e isolou a bola na casa do seu Nacib. “Quem isola é quem busca!”, dizia o almanaque da Zamenhof.

Sendo assim, fomos obrigados a sentar no meio-fio e aguardar a bola ser recuperada. Mas, diabo, o tempo é algo imprevisível mesmo. De repente, alguém me avisa: “Chau, o teu pai está chegando…”. Foi quando senti aquele solavanco de adrenalina e me lembrei que estava de castigo. Meu pai, sem dizer uma única palavra, pegou-me pelo braço e lentamente desceu a ladeira da Zamenhof comigo em direção ao prédio. Meu Deus do Céu! Nunca havia imaginado que a pior surra do mundo foi a que eu levei sem receber nenhum tapa, nem cinto, nem beliscão. Naquela noite, apenas o silêncio ensurdecedor bateu duramente em meu corpo…

A LONGA CAMINHADA – Parte 1.

Eu bem sei que em diversos momentos nós discordamos nas opiniões. Algumas vezes, até mesmo brigamos e ficamos de mal um com o outro. Porém, verdade é que isso não resistia muito tempo, uma vez que éramos criaturas parecidas. É o tal negócio: dizem que os contrários se atraem e os semelhantes se repelem. No entanto, é preciso reconhecer que isso funciona bem nas ciências naturais. Mas não na vida, pai!

Sim! A vida é outra coisa e você sabia disso. Nela, não há regras infalíveis. Não existem soluções definitivas e tampouco previsões certeiras. Na vida, convenhamos, tudo é relativo. Por sinal, pode-se até dizer que a única regra que vale é aquela que assegura que ‘não há regras intransponíveis’. Ou seja: não há limites e nem receitas de bolo a seguir…

Dito isso, nós podemos conversar a respeito de outras coisas, quem sabe mais importantes para os Menezes? A começar, por exemplo, sobre o que significa ser um “Menezes”. Céus! Eis aí um tema que eu entendo bem, pois paguei um alto pedágio para dar conta dessa herança. Afinal, diversas vezes eu tropecei nesse invisível ‘tapete’. Tanto que, em certa altura, eu não conseguia mais caminhar com as próprias pernas. E não fosse a ajuda cuidadosa do Alexandre Kahthalian, por certo, eu estaria até hoje em sérios apuros…

Contudo, é preciso dizer que não lhe culpo por nada disso, uma vez que você foi vítima, tanto quanto eu, dessa forte e complicada ‘demanda’ interior. Basta lembrar a figura do seu pai, meu avô Ezequiel. Ah, eu não sei dizer quanto aos irmãos, mas eu não tenho boas lembranças dele, meu pai. E olha que foi o único dos quatro avós com quem convivi.

Por força da época, os filhos tinham muito pouca importância para os pais. Decerto, eram apenas ‘enfeites’ que ornavam a sala de jantar dos Natais familiares. Ainda mais em famílias numerosas feito a nossa. Aliás, quando o vovô resolvia passar o Natal conosco, Meu Deus do Céu, era um verdadeiro martírio para nós netos, uma vez que a única coisa importante a fazer seria não ‘desagradar’ o velho Ezequiel. No entanto, devemos reconhecer que isso era algo inatingível, meu pai. Pois nada agradava ao homem. Somente a vaidade que vazava por todos os poros dele!

Os longos ‘discursos’ de Natal só não eram piores que os ‘presentes’ que recebíamos (uma nota de cinco cruzeiros que mal dava para comprar um pacote de figurinhas ou uma goma de mascar). E você, pai, sabia que aquilo era uma farsa, mas não conseguia dizer não. E esse rito, então, perdurou por décadas. Hoje, eu fico imaginando que possivelmente você nunca teve uma ‘conversa’ com o seu pai. Nunca discordou dele numa prosa familiar… Foi uma pena. Para todos nós!

Sim, eu estava querendo falar sobre os “Menezes” e os traços comuns na família. E devo reconhecer o alto valor que percebo na personalidade deles. Geralmente, são criaturas bem racionais e que fazem uso da racionalização como instrumento de autodefesa. Normalmente, apresentam um ‘discurso’ bem estruturado ainda que a serviço do escapismo afetivo ou emocional. Muitas vezes eu me pilhei desenvolvendo um conjunto de argumentos para justificar uma simples ‘vontade’ de fazer algo. Um desejo, um pulso, tão-somente!

 Foram necessários sete anos para desmontar tais baterias ‘antiaéreas’ e permitir que as emoções pudessem ter voz dentro de mim. É que, por certo, tive que enfrentar fortes tendências, manias incrustadas e até mesmo esdrúxulas razões tomadas como ‘o jeito de cada um’. Pois é, meu pai. É uma tarefa penosa e que se arrasta por longo tempo.

Depois disso, vem o casamento, filho e o escambau. Os roteiros adquirem outros aspectos, muitas vezes, surpreendentes. E a gente, mais uma vez, é colocado à prova. Daí, são novas provocações, novos desafios e a sina de Riobaldo, do velho Guimarães Rosa, permanece afirmando: “Viver é muito perigoso!”

Então, o que me vale nessa conversa que estamos tendo, é reconhecer o legado que você deixou e saber como fazer bom uso dele. Com sorte, meu filho haverá de empunhar outras bandeiras. Bem mais interessantes e que possam ensejar progressos no DNA emocional da família. De minha parte, confesso, acompanharei essa tendência com entusiasmo e esperança…

(continua)