PASSAPORTE PARA VIDA

Eu sou daqueles que acreditam que todo indivíduo deveria ter um período de repouso em seu local preferido. Sim, meus amigos. Seria uma espécie de ‘recompensa ao cidadão do bem, desses que vivem de modo digno e respeitoso nesse mundão de Deus. Justo, né?!

Mas enquanto isso não acontece, o que é uma lástima, nós vamos fazendo a nossa parte. Por isso, escolhi Porto Seguro para o meu ‘retiro espiritual’. Já que aqui eu me sinto reconectado comigo mesmo, com os meus ancestrais que plantaram em mim um esperançoso DNA. Sou grato a todos eles!

Aliás, com o tempo, a gente descobre que ‘família’ é um conceito amplo. Porquanto incorpora um sem-número de criaturas não consanguíneas mas que mesmo assim são irmãos, primos, tios e avós do peito. De coração!

Ontem mesmo, ao passearmos na orla em busca de um restaurante, eu me encontrei com um desses ‘primos’ adotados: o “Xuxa”. Conhecem ele? Por certo que sim. Afinal, quem não se esbarrou com um sujeito feito ele: corpulento, alto e com um sorriso largo e uma fala mansa?

Enquanto esperávamos a comida ficar pronta, eu o percebi solitário, sentado num canto do restaurante. E não resisti em querer confirmar as impressões iniciais. Fui até a mesa dele e falei dessas sensações que narrei acima. Não é que se sentiu acolhido, abraçou-me com carinho e até mostrou as fotos da esposa e da filha universitária. Lindas mulheres que, seguramente, formam com o “Xuxa” uma bela família!

Daí, nós saímos para outra caminhada, plenos de emoção, de fortes energias vindas desse lugar mágico que é Porto Seguro.

E fiquei com aquela certeza gostosa de que tenho muita sorte nessa vida. Recebendo dela muito mais do que mereço ou do que esperava…

Não é que o universo rapidamente conspirou e, sentado no “deck” da piscina, acabo de ouvir Mercedes Sosa entoar o hino da latinidade “Gracias a la vida”. Dizer o quê?!

Obrigado Xuxa… muito obrigado, primo!

RETRATOS DO BRASIL

Hoje eu acordei com saudades do meu Ceará. Mas não do Ceará que fica no nordeste brasileiro. Não, meus amigos. Na verdade, eu acordei saudoso de um Ceará que a gente carrega no peito. Com muito orgulho e alguma teimosia, vá lá… Saudades daquele Ceará atávico, que insiste em visitar às nossas lembranças mais remotas. Ah, se todo o nosso país pudesse encarnar o amor que o nordestino tem por sua terra e por sua gente… Quem sabe as coisas fossem mais fáceis?!

É que nesses tempos de crises, em que ‘aceitamos’, inadvertidamente, que dividam nosso país e nossas convicções, que nos arrastem para insanas manifestações de radicalismos de lado a lado, eu me pergunto: precisamos disso?! É assim que retomaremos nosso destino?

Pois é. Nessas horas é que eu percebo o quanto ‘eles’ insistem em falar por nós. Falar sem nossa autorização à medida que não outorgamos a ninguém o direito de nos separar dos outros irmãos. E foi por tudo isso que eu me lembrei de Elomar e de sua maravilhosa canção “O canto do guerreiro Mongoiô”. Céus, que maravilha. E reconheço: ele sim entoou o canto de todos nós, guardado no peito. E esse canto, ah, eu assino embaixo!

“Um dia bem criança eu era / Ouvi de um velho cantador / Sentado na Praça da Bandeira / Que vela a tumba dos heróis / Falou do tempo da conquista / Da terra pelo invasor / Qui em inumanas investidas / Venceram os índios mongoiôs / Valentes mongoiôs!”

“Falou de antigos cavaleiros / Primeiros a fazer um lar / No vale do Gibóia no Outeiro / Filicia, Coati, Tamanduá / Pergunto então cadê teus filhos / Os homens de opinião / Não dói-te vê-los no exílio / Errantes em alheio chão.”

“Nos termos da Virgem Imaculada / Não vejo mais crianças ao luar / Por estas me bato em retirada / Vou ino cantar em outro lugar / Cantá pra não chorar…”

“Adeus vô imbora do rio Gavião / No peito levarei teu nome / Tua imagem nesta canção / Por fim já farto de tuas manhas / Teus filtros, tua ingratidão / Te deixo entregue a mãos estranhas / Meus filhos não vão te amar não / E assim como a água deixa a fonte / Também te deixo pra não mais / Do exílio talvez inda te cante / Das flores a noiva entre os lenções / Dos brancos cafezais”.

Adeus, adeus meu-pé-de-serra / Querido berço onde nasci / Se um dia te fizerem guerra / Teu filho vem morrer por ti!”

A saga nordestina, como se sabe, é carregada de muita dor e sofrimento. Uma triste sina, que somente o tempo poderá aplacar tamanha injustiça. Por isso, eu quero lembrar aqui algumas poesias, oriundas dos cordéis. E assim, fazer tantas ‘expiações’ quanto a imaginação for capaz de tecer. Confiram:

Reflexões nordestinas

(Catulo da Paixão Cearense)

Oh! Que saudade

Do luar da minha terra

Lá na serra branqueando

Folhas secas pelo chão

Esse luar cá da cidade tão escuro

Não tem aquela saudade

Do luar lá do sertão

(Catulo da Paixão Cearense)

Se Deus me ouvisse com amor e caridade,

Me faria esta vontade – o ideal do coração!

Era que a morte, a descantar, me surpreendesse,

E eu morresse numa noite de luar, no meu sertão!

(Patativa do Assaré)

Eu sou de uma terra que o povo padece

Mas não esmorece e procura vencer.

Da terra querida, que a linda cabocla

De riso na boca zomba no sofrê

Não nego meu sangue, não nego meu nome.

Olho para a fome, pergunto: que há?

Eu sou brasileiro, filho do Nordeste,

Sou cabra da Peste, sou do Ceará!

UMA NOITE INESQUECÍVEL

Canelau me confessou que tinha muita expectativa com relação a apresentação de Miles Davis para aquele sábado, 30 de novembro de 1957. Tanto é verdade que ele passou o dia inteiro ouvindo os discos de Miles, como se desejasse gravar na memória cada frase das melodias do fabuloso trompetista. E ele assegurava a todos os clientes da livraria em que trabalhava que aquela apresentação, sem dúvida, entraria para a história.

Por sinal, como morava perto do teatro, na Rue Joubert, logo atrás da Galeria Lafayette, Canelau conhecia muito bem aquela área. Afinal, desde que chegou em Paris, ele trabalhava na Livraria Monnier, que fica no caminho da “Gare Saint-Lazare”. Além disso, Canelau já ouvia falar da apresentação de Miles há mais de três meses. Por isso, então, ele procurou se inteirar sobre o repertório da noite, pois imaginava que o show seria gravado ‘ao vivo’ para o lançamento de algum disco.

Também foi preciso muito esforço e consultas variadas para que Canelau conseguisse um ingresso para a aguardada apresentação do Quinteto Miles Davis. Somente no sábado, após o almoço, é que o ‘bendito’ ingresso chegou às mãos de Canelau. Foi um presente da proprietária, Adrienne Monnier. Aliás, ela era uma mulher extremamente culta, que atraía escritores e intelectuais, como o escritor irlandês James Joyce e os escritores franceses Paul Valéry, André Gide, Jean Cocteau e André Breton, entre outros. Fundadora da famosa “La Maison des Amis des Livres”, na Rue de l’Odéon, Adrienne encantou não somente os franceses, mas os leitores de vários países que visitavam a França em busca de divertimento, conhecimento, criatividade, livros e, sim, de uma atmosfera cultural de inspiração. A livraria ‘recriou’ a Rua do Odéon, tornando-a famosa e icônica.

Exultante, Canelau não escondia o nervosismo em ver e ouvir o seu grande ídolo musical. Fechou a livraria e acelerando o passo, foi para o quarto da velha pensão em que vivia. Tomou aquele demorado banho, tirou um pequeno cochilo e, ao acordar, arrumou-se para a ‘grande noite’. Como soprava um ventinho frio, lembrou-se do agasalho que fora enviado por sua mãe para o primeiro inverno em Paris. Sorriu ao vestir o “blazer” de veludo, pois sentia naquele agasalho o imenso carinho de sua mãe…

O espetáculo estava marcado para começar as dezoito horas e, com apenas quinze minutos de atraso, Miles Davis adentrou no palco. Ele teve que esperar mais cinco minutos por conta dos frenéticos aplausos do público presente. Emocionado, agradeceu em francês pela bela acolhida. Virou-se para os músicos e com as mãos levantadas sinalizou o início do primeiro “hit”.

A canção que deu início ao show foi “Solar”, uma belíssima melodia em que Miles desfila todo o arsenal de frases melódicas, bem-marcadas pelo piano de René Urtreger, o baixo de Pierre Michelot, a bateria de Kenny Clarke e o envolvente sax tenor de Barney Wilen.

É bem verdade que as músicas deste show se tornaram testemunho perene do estilo envolvente e cativante de Miles Davis. Até porque, elas atestaram a incomparável capacidade de levar os músicos que o acompanhavam para além dos seus limites. Certo mesmo é que Miles Davis se superou nessa apresentação. E para a sorte de toda plateia, ele partilhou o seu talento e a incrível inspiração musical. De fato, foi uma noite para entrar na história.

Terminado o espetáculo, Miles agradeceu a todos e ainda presenteou o público com o bis da antológica composição de Thelonious Monk, “Round Midnight”. Um delírio!