OS ‘FEITICEIROS’ DO NOSSO TEMPO

É certo que cada criatura carrega no seu imaginário alguns mitos e heróis. E mesmo que a gente não queira confessar, no fundo, o ‘encantamento’ por determinadas pessoas ou causas quase sempre ultrapassa os limites da simples admiração.

De fato, meus amigos, desde muito jovem eu me senti ‘abduzido’ em diversos momentos. Algumas vezes, foram ‘causas’ que me encantaram e eu as defendi com profunda determinação. Foi o caso dos movimentos estudantis. Eu ainda era um estudante secundarista e me vi abraçando essa bandeira. E assim, eu lutava pela nossa liberdade e participação nos destinos da educação. Até porque, no mundo inteiro ocorriam manifestações em busca de uma educação de qualidade.

Pouco tempo depois, novamente me vi enredado pelo ‘fascínio’, só que dessa vez era pelo cinema. Sim! Aquela telinha mágica, capaz de nos transportar por mares nunca dantes navegados. Meu Deus, o que foi aquilo? Eu parecia muito mais um daqueles ardorosos membros de fã-clubes que cultuam seus ícones. Afinal, eu e meus amigos aficionados íamos assistir diversas vezes aos filmes “cult” de Jean-Luc Godard, como o “Acossado”, na esperança de aprender a ‘soletrar o mundo’.

Nessa mesma época, eu também descobri o gosto pela leitura e o prazer que ela nos oferece. E durante as descobertas, eu fui encontrando os meus gurus: Rubem Fonseca, Vargas Llosa, Camus, Faulkner, Gabriel Garcia Márquez e tantos mais. Ah, que maravilhoso encantamento! Quanta sedução pode haver em um bom texto?!

Rubem Fonseca, por exemplo, escreveu histórias surpreendentes. Sedutoras. Por isso, é um verdadeiro mestre para mim. Aliás, foi com ele que eu comecei a entender o que é o bom uso das palavras em favor de uma ideia. Rubem mais parece um artesão, pois consegue construir com imensa paciência e dedicação o enredo de suas comoventes histórias. Seus livros estão aí para o deleite de todos. “O cobrador”, “Feliz Ano Novo”, “Lúcia MacCartney”, “Histórias de amor”, “A grande arte” e muitos mais.

Pois é. Já houve quem afirmasse que uma arte só tem total legitimidade quando é capaz de ‘ferir mortalmente’ as percepções alheias, deixando registros permanentes na alma de quem acolheu. Céus… Que verdade! São poucos os que possuem tal virtude. E eles, podemos dizer, são os verdadeiros ‘feiticeiros’.

Se pensarmos bem, essa é uma das grandes razões porque vale a pena viver!

Foto: Em 2003, Rubem Fonseca e Gabriel Garcia Márquez no Prêmio de Literatura Latinoamericana e do Caribe.

PRESTANDO CONTAS A ‘ZEO’

Zeo foi meu irmão. Mas somente até os sete anos de idade. Porquanto ele quis partir mais cedo, talvez em busca de outros acolhimentos, vai saber?! Certo mesmo é que nós tivemos muitas conversas interrompidas. Sim! Conversas que poderiam me propiciar uma visão de mundo mais ajustada. No entanto, não ocorreram… Foi uma pena!

Por conta disso, eu fui obrigado a desbravar as estradas sem saber muito bem como agir, como adequar as rotas. Buscando tornar a travessia mais confortável. Por outro lado, sem os conselhos de Zeo, eu tive que desenvolver métodos intuitivos, bem como a capacidade de avaliação conforme o momento vivido. E isso, meus amigos, nem sempre a gente acerta a mão, não é verdade?

Daí, então, o mundo girou mais um bocado. E pôs à minha frente um sem-número de dúvidas e aflições. Assim, o processo de ‘crescimento’ aconteceu de modo forçado, sem o necessário tempo para depurar pequenas contradições. O que me cabia, quando muito, era ter algumas conversas ‘ocultas’ com Zeo, tentando imaginar quais seriam os argumentos dele para cada episódio enfrentado. Algumas vezes isso dava certo. Mas, nem sempre!

O tempo foi passando e eu cresci de tamanho e de vontade de acertar. O diabo é que quanto mais se deseja acertar, ansiosamente, mais a gente acaba errando… Ah, meu prezado doutor Freud, por quê?! Por que é que a vida não facilita as coisas para os ‘necessitados’ de primeira hora? Por que o mundo não é capaz de ser ‘generoso’ com aqueles que pelejam feito doido em busca de rumos mais suaves?

Bem… O que eu posso dizer, minha gente, é que o processo de crescimento é difícil. Doloroso, até. Tem vezes que dá vontade de desistir e de pedir o ‘colo materno’, na esperança do acalento. Porém, logo a seguir, nós percebemos que “navegar é preciso”! E que temos que pagar o irremediável pedágio para descobrir como conduzir esse aprendizado. Com ou sem medos, com ou sem angústias, o fato é que temos que ‘tocar a vida’. Não há outra maneira!

Contudo, curiosamente, a vida vai nos empurrando pelos becos e esquinas. E de algum modo, ela acaba nos dando a chance de aprender a “soletrar o mundo”. Para que o infortúnio de Drummond não nos bata de forma tão dura: “Quarenta anos e nenhum problema resolvido / sequer colocado. / nenhuma carta escrita nem recebida. / Todos os homens voltam para casa. / Estão menos livres, mas levam jornais / e soletram o mundo, sabendo que o perdem.”

A verdade é que faz muito tempo que Zeo nos deixou. Com ele, foram-se também muitos sonhos e desejos de uma vida mais amena. Paciência, fazer o quê?! O jeito foi encarar a vida e ir à luta. Do melhor jeito que eu pudesse. Agora, se deu certo ou não, aí, são outros quinhentos. O importante foi continuar a caminhada tentando manter o coração íntegro. No fundo, eu acredito que obtive algum êxito, à medida que consigo olhar para trás e não sentir arrependimentos profundos. O que restou foi essa a sensação de que ‘toquei a vida’ com bastante amor e determinação. E isso já me basta, creiam-me.

O que ainda vem pela frente, ah, eu não sei dizer. Sei apenas que o tempo se encarregou de dissipar certas lembranças de Zeo. Ao mesmo tempo, eu guardo a certeza de que tenho a meu lado dois solidários ‘escudeiros’: minha esposa e meu filho. Afinal de contas, eles têm sido a razão dessa caminhada de desafios em busca de novos sentidos, descobertas e alguns prazeres…

Abençoados sejam!

“SUJEITO  DE  SORTE”

Há quem acredite na sorte e no azar. Há quem aposte nas chances de cada lado dessa moeda do destino. Aliás, se pensarmos bem, nós aceitaremos que a vida é assim mesmo: dúbia e cheia de idas e vindas. Repleta de certezas e incertezas. De alegrias e tristezas. Porquanto tudo isso faz parte dessa surpreendente estrada, não acham? Por isso mesmo, ela seja o nosso maior desafio e o mais importante ‘objeto do desejo’.

Os poetas, criaturas cuja visão de mundo ultrapassa os limites do nosso entendimento, costumam dizer que o melhor da vida é viver. Sim! Eles têm razão, creio. Afinal, sem o medo de errar aqui e acertar acolá, no fundo, eles desafiam a própria sensibilidade.

Porém, eu não sou poeta e nem pretendo arriscar banalmente a minha cota de sorte. Vai que ela não me dê uma segunda oportunidade, como eu fico?! Então, prefiro conduzir a vida de modo mais sereno. Até porque, convenhamos, eu já não tenho idade para alguns riscos…

Isso não quer dizer que a minha vida seja monótona ou sem graça. Não, muito ao contrário! Eu gosto do que faço, podem acreditar. E não tenho dúvida em declarar que aprecio intensamente o jeito que aprendi a ‘soletrar esse mundo’ ao longo do caminho.

Belchior, meu querido conterrâneo, certa vez cantou em verso e prosa: “Presentemente, eu posso me considerar um sujeito de sorte / Porque apesar de muito moço / Me sinto são, e salvo, e forte… / Tenho sangrado demais / Tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri / Mas esse ano eu não morro.”

Pois é, minha gente. Recentemente, eu festejei o centenário do meu velho pai. E percebi que ele soube conquistar, com sabedoria, essa marca extraordinária. Por conta disso, se a genética for condescendente, eu também pretendo chegar lá. Para tanto, é preciso manter o foco e cuidar da saúde física, mental e espiritual. Aproveitando cada pedaço desse chão percorrido e se preparando para o que vem pela frente.

Sei bem que não é uma peleja fácil de encarar. Até porque, as ‘forças contrárias’ estarão presentes, dificultando a empreitada em cada momento do trajeto. Nas esquinas do caminho, sempre haverá um desafio. E em cada estação do ano, por certo, os ventos soprarão fortemente que é pra ver se somos capazes de resistir.

O que eu posso dizer, meus amigos, é que descobri o meu lugar nesse mundão de Deus. E assim como Belchior percebeu, eu também poderia cantar: “Não você não me impediu de ser feliz / Nunca jamais bateu a porta em meu nariz / Ninguém é gente / Nordeste é uma ficção / Nordeste nunca houve. / Não, eu não sou do lugar / Dos esquecidos / Não sou da nação / Dos condenados / Não sou do sertão / Dos ofendidos / Você sabe bem / Conheço o meu lugar!”

POR TRÁS DAS GROSSAS LENTES

Eu nem saberia dizer a quanto anos uso óculos. Pudera! Já faz tanto tempo que eu chego a pensar que nasci com eles. No entanto, é preciso reconhecer que não é lá um objeto confortável, isso sim, pois incomoda um bocado. Seja pelo peso em cima do nariz, seja pela obrigação de sempre limpar as famigeradas lentes.

Aliás, lembro até que foi no curso ginasial que experimentei o primeiro deles. E confesso que havia em mim um dúbio sentimento: o prazer de ver as coisas com nitidez, contrapondo-se à vergonha e raiva de ser apelidado por ‘quatro-olhos’. Sabe como é? É bem verdade que adolescente é uma raça preconceituosa. Basta uma pequena diferença em relação ao senso comum e, por certo, haverá imediatamente um dedo apontando para você. Como se o outro tivesse cometido um ‘delito’ irreparável ou carregasse uma ferida aberta que nunca mais cicatrizará…

O que sei dizer é que eu estava pensando nisso tudo quando veio a vontade de rever o belíssimo filme de Woody Allen, “Meia-noite em Paris”. Ah, minha gente, o filme é uma maravilhosa viagem no imaginário das criaturas. Porquanto desde o início da história a gente se sente ‘raptado’ pela atmosfera criada por Woody Allen. Sim! Quem há de resistir àquelas imagens de uma Paris encantadora e plena de “glamour”? Quem não se renderia ao entrar em ‘bistrô’ parisiense e encontrar Francis Scott Fitzgerald? E mais: quem não se imaginou sentado em um café, às margens do rio Sena, sendo recebido por Ernest Hemingway, Pablo Picasso e Luís Buñuel?!

Céus… o que sei dizer é que “Meia-Noite em Paris” é um prazer cinematográfico do início ao fim. Afinal, a atmosfera criada por Woody Allen, amparada em extraordinária trilha sonora, lentamente vai tecendo a teia de uma recorrente sedução. Além disso, o elenco é primoroso e o desempenho dos atores e atrizes, seguramente, facilitou o trabalho do diretor. Até mesmo a semelhança física de ‘Cole Porter’ foi contemplada pela delicada interpretação de Yves Hack.

Pois é, meus amigos. Sorte a minha ter lembrado desse filme ontem à noite. Só assim eu pude dormir com um invejável sorriso de satisfação. Deitado em minha cama, eu repassava cada cena imaginando como seria bom estar naquele ‘set de filmagem’.

Isso, porém, não foi problema. Até porque, de um jeito ou de outro, eu acabei me encontrando com eles. Sim. Todos eles! Pois saibam, então, que após o filme, eu brindei com Joséphine Baker ao lado da animada Gertrude Stein. Eu abracei festivamente os amigos Salvador Dali e Henri Matisse. Conversei com o poeta T.S. Elliot e, de quebra, combinei outros encontros com várias figuras da “Belle Époque”. Como fiz isso? Putz… eu rogo que me perdoem, mas… isso eu não posso contar!

UÍSQUE  DE  ‘TERCEIRA’

Eu nasci em Fortaleza, no Ceará, em 1951. No entanto, confesso a vocês: no meu imaginário, eu devia ter nascido em 1851, às margens do Mississipi, em New Orleans. E ao completar seis anos de idade, céus, eu receberia de meus pais um trompete de presente. Contudo, paciência! Quis o destino que eu nascesse cem anos depois e às margens do barrento Jaguaribe, no velho Ceará. Pior ainda: não recebi presente algum de aniversário… Quem sabe, apenas um aperto de mão?!

Não, meus amigos, não estou aqui a reclamar da infância distante e tampouco das minhas raízes nordestinas. O diabo é que esse uísque paraguaio me pegou de jeito e botou as emoções na roda. Sabe como é?! Ouvir essa turma tocar “Just a closer walk” com a mesma emoção dos velhos “bluseiros” do Mississipi, quem há de resistir? O que sei dizer é que continuo sonhando com o trompete. Sim! Eu ali, sentado nas improvisadas cadeiras, esperando que alguma alma solidária aprecie o som e nos ofereça sorrisos, palmas e, de quebra, algum dinheirinho para o almoço que insiste em se anunciar.

Pois é. Destino é destino e não se pode cobrar muito dele, não é verdade? Além do mais, não estou aqui para reclamar de nada. Muito ao contrário. Eu acredito que tenho recebido bem mais da vida do que mereço. E de mais a mais, convenhamos, a nossa missão nesse percurso é procurar aprender a ‘soletrar o mundo’ de modo conveniente… Com sorte, haverá um dia em que poderemos ler em voz alta tudo aquilo que aprendemos no caminho. Oxalá!