UMA VELHA HISTÓRIA

A ordem foi bem clara: aguardar a chegada da Kombi na esquina da Rio Branco com a Presidente Vargas, em frente ao prédio do Banco do Brasil. E mais: impreterivelmente, às 19 horas. A senha para o reconhecimento seria: “ONDE FICA SÃO CRISTÓVÃO?” E a resposta deveria ser: “BASTA SEGUIR EM FRENTE!”

Como Amaral trabalhava ali perto, teve tempo de tomar um café com leite e comer um pão com manteiga, pois sabia que a empreitada seria longa. Muita longa. Assim, por precaução, ele comprou um maço de Continental e uma revista de palavras cruzadas. Afinal, nunca se sabe o tempo de espera. Além disso, Amaral conhecia muito bem os ‘ritos’ que o Partido determinava em encontros clandestinos. E esse, convenhamos, não era um encontro qualquer. Ah, não! Por certo, era o encontro mais importante de sua vida!

Às 19 horas, pontualmente, ele ouviu a discreta buzina da Kombi. Logo a seguir, vieram os protocolos de identificação e, ao confirmarem as senhas, ele entrou rapidamente no veículo. Abriu a porta traseira e sentou-se no último banco. Dali, eles pegaram a avenida Presidente Vargas em direção ao Gasômetro, via Francisco Bicalho. Foi quando o motorista avisou que ele devia vendar os olhos, tão logo entrassem na Avenida Brasil.

Dito e feito. Amaral era uma criatura muito disciplinada e seguia todas as regras de segurança. Além do mais, ele sabia que a viagem seria longa e sem conversas. Apenas o rádio da Kombi quebraria o silêncio, transmitindo o hilário programa “Balança mas não cai”. O motorista, de codinome ‘Serjão’, era de pouca conversa, embora soltasse discretos sorrisos por conta do programa do rádio.

Foram quase cinco horas de viagem e Amaral percebeu que o motorista deu muitas voltas em estradas esburacadas, o que tornou o trajeto mais cansativo e tenso. Somente por volta da meia-noite eles chegaram ao destino. Desceu da Kombi e, relaxando a musculatura, pode tirar a venda dos olhos. Mas pouco adiantou, pois o pequeno sítio era muito escuro, quase sem lâmpadas. Entrou na casa e recebeu a instrução de que aguardasse a chegada do ‘chefe’. Isso, porém, só ocorreu às três da madrugada, quando as portas do escritório se abriram e Amaral foi avisado de que deveria entrar no gabinete. Caminhou lentamente, sentindo forte pressão no peito. Mal disfarçava a tremedeira nas pernas…

No entanto, esse intervalo de tempo foi proveitoso, já que permitiu a Amaral o ajuste do raciocínio, Com isso, ele conseguiu pôr em ordem os argumentos que iria abordar. Por ser um homem metódico, Amaral anotava no pequeno caderno de bolso os principais tópicos. “O resto vai ser no improviso!”, pensou aliviado.

O fato é que toda essa espera gerava uma tremenda aflição, justificada, uma vez que a figura de Prestes era idolatrada dentro do Partido. Qualquer um daria tudo para estar frente a frente com o Secretário Geral. E para muitos, isso representava uma condecoração de alto valor: poder, enfim, participar dos ‘rumos’ do Partido.

É bem verdade que ele nunca havia se encontrado com o ‘camarada chefe’. Conhecia a figura apenas pelas fotos dos jornais e pelas informações nos bastidores. Luís Carlos Prestes, ao cumprimentá-lo, parecia não saber sobre o papel que o companheiro desempenhava no Partido. Tanto é que iniciou a conversa indagando sobre as movimentações e manobras na ‘célula’ do sindicato. Amaral, por sua vez, estranhou o equívoco e identificou-se como elemento que atuava no Banco do Brasil, vindo prestar contas sobre os processos de sua ‘célula’. Conforme ia narrando as estratégias que eram usadas, percebia que o ‘chefe’ estava desinformado. Pior ainda: de quando em quando, Prestes perguntava alguma coisa aos seus assessores a respeito do que estava sendo relatado.

Naquele momento, Amaral se lembrou da piada que circulava nos bastidores: “só levam ao conhecimento do ‘chefe’ os assuntos que são do interesse do escalão superior”. Até porque, assessor que se preza, espertamente, fornece apenas as ‘boas notícias’.

Passados cinquenta minutos de conversa, Amaral já se sentia bastante decepcionado com o encontro. Isso porque, ele foi se dando conta de que as ‘velhas leis’ que regem os estatutos do Partido, no fundo, são apenas discursos retóricos. Algo que não funciona mais. Ou, quem sabe, nunca funcionou?! Fazem parte do ‘manual’. Tão somente.

Talvez, por conta disso, Amaral tenha se ‘encorajado’ a cobrar mais transparência do Comitê Central, na figura do Secretário-Geral Luís Carlos Prestes. Foi daí que ele iniciou uma longa exposição de motivos baseados nos mais de vinte anos de militância dentro do Partido. Apontou enganos, salientou desvios, traçou estratégias, enfim, expôs as ‘ideias’ da turma do baixo clero… Ao final da argumentação, ele ouviu do secretário que estava coberto de razões. Que mudanças deveriam ocorrer imediatamente, para o bem da causa e do Partido. Prestes, aproveitou o ‘palanque’ e determinou novas orientações para os assessores que, evidentemente, concordaram em gênero, número e grau com o chefe. Até mesmo o parabenizaram pelas soluções criadas…

Amaral saiu de lá exultante, sentindo-se vitorioso. Ao mesmo tempo, durante o percurso da volta, sentia uma pontada de descrença fustigando os pensamentos. Mesmo assim, tentando se convencer da vitória, pensou: “agora sim, as coisas vão mudar!”

Contudo, decorridos seis meses após o encontro, o bravo camarada Amaral percebeu que nada havia mudado e que os equívocos do velho “Partidão” continuavam iguais… ou piores!

Sim! Foi um duro golpe para ele. Principalmente, por entender que os companheiros da turma de baixo acreditavam profundamente nessas mudanças. E ‘esperança’, meus amigos, é algo que não se posterga. Tampouco se negocia.

Foi assim que o companheiro Amaral, descrente e desestimulado, abandonou o Partido. Saiu com a certeza de que até mesmo o secretário-geral tinha se tornado vítima da ‘burocracia interna’. Paciência. Pelo visto, a ‘engrenagem emperrou’! Fazer o quê?!