OS ‘NAMORADOS’ DA MODERNIDADE

Há quem afirme que os relacionamentos afetivos ‘aprisionam’ as pessoas. Pudera! Eles proclamam que a natureza dessas relações subverte, tacitamente, o instinto de liberdade presente no ser humano. Olha, isso pode até ser verdade, mas desconfio de que constitua mero discurso retórico. Digo isso, meus amigos, porque percebo que temos o hábito de buscar explicações, muitas vezes, solidamente ‘elaboradas’. No fundo, eu acredito que tal comportamento serve apenas para justificar as nossas descontroladas emoções. Afinal, ao que tudo indica, a capacidade de ‘racionalização’ de o homem parece ser inesgotável. No entanto, creiam-me: apesar das heroicas resistências que oferecemos, bastam algumas sessões deitados no ‘divã’ e vai tudo por água abaixo. Meu Deus do Céu, que incrível desperdício…

Quando eu tinha os meus vinte e poucos anos de idade, também pensava em levar a vida amorosa na flauta. Na época, devo confessar, eu não queria me sentir ‘ligado’ a uma pessoa em especial. Preferia me manter como um franco atirador, desses que se imaginam imunes a qualquer relação mais contínua e profunda. Como se isso fosse possível… “Mas o tempo passa muito rápido”, vaticinavam os mais velhos. Sim, é verdade, devo admitir.

Hoje, confesso, eu acho que isso é uma dádiva e não um pesar. Aliás, sem medo de errar, eu acredito que não há nada mais belo nessa vida do que a maturidade. Sim, somente quando atingimos esta fase na vida é que nos damos conta de como é maravilhoso estar ligado a alguém. E mais: que extraordinárias emoções podemos sentir quando estamos sob os auspícios da ‘cumplicidade’!

O nosso saudoso Lupicínio Rodrigues já cantou em verso e prosa: “Estes moços, pobres moços / Ah! Se soubessem o que eu sei / Não amavam, não passavam / Por tudo que eu já passei / Por meus olhos, por meus sonhos, / por meu sangue, tudo enfim… / É que eu peço a esses moços / que acreditem em mim. / Se eles julgam que há um lindo futuro / Só o amor nessa vida conduz / Saibam que deixam o céu por ser escuro / E vão ao inferno a procura de luz. / Eu também tive nos meus belos dias / essa mania que muito me custou / E só as marcas que trago em meu peito / São essas rugas que o amor me deixou…”


Ah, como essa canção é maravilhosa, ainda que o amor cantado por ele soe tão doído! Mas, se observarmos bem, o que Lupicínio sentiu foi uma tremenda ‘dor-de-cotovelo’. Nada mais do que isso. E cá entre nós: quem não sofreu desse mal? Afinal de contas, a dor-de-cotovelo é um sentimento intimamente ligado ao amor e pertinente à vida de qualquer criatura. Além disso, convenhamos, Lupicínio teve esse direito. Isto porque, acostumado à boemia, ele deve ter experimentado muitas paixões, grandes amores e, de quebra, algumas ‘dores’. Algo que só quem está pulsando pode sentir. Quem não viveu um grande amor, jamais saberá como é a dor da perda. Isto sim, meus amigos, é bem triste, muito embora seja passageiro. É algo que alimenta a inspiração dos músicos e poetas. Tão somente. No entanto, para nós, ‘pobres mortais’, é bem ao contrário, à medida que evitamos, desesperadamente, sentir a dor e vivenciar o processo do luto amoroso. Geralmente, o que se verifica é uma brutal dissimulação. E para tanto, nós lançamos mão do enorme arsenal de ‘racionalizações’ de que somos portadores. É impressionante o ‘malabarismo’ emocional empreendido.

Com tudo isso, apesar das dificuldades, o importante é acreditar que o amor é possível nas relações afetivas. Sim! É preciso acreditar que ele pode ser duradouro. Com sorte, pode até ser para sempre!

PARA ‘ADOÇAR’ MEU CORAÇÃO

Foi o nosso querido Carlos Drummond de Andrade que afirmou em seu extraordinário poema, “Resíduo”, que “de tudo fica um pouco”. Pois é. Tinha ele razão, meus amigos. Aliás, muitas razões! Vale a pena lembrar:

“De tudo ficou um pouco / Do meu medo. Do teu asco. / Dos gritos gagos. Da rosa / ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz / captada no chapéu. / Nos olhos do rufião / de ternura ficou um pouco (muito pouco).

Pouco ficou deste pó / de que teu branco sapato se cobriu. / Ficaram poucas roupas, / poucos véus rotos / pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco. / Da ponte bombardeada, / de duas folhas de grama, / do maço – vazio – de cigarros, ficou um pouco.

De tudo fica um pouco. / Não muito: de uma torneira / pinga esta gota absurda, / meio sal e meio álcool… / este vidro de relógio / partido em mil esperanças… / este segredo infantil…

…Oh! abre os vidros de loção / e abafa / o insuportável mau cheiro da memória…”

O mais interessante de tudo é que ao reler este poema nesta ensolarada manhã, eu tinha, ao fundo, a suave e inebriante companhia de Ana Caram, interpretando as canções de Tom Jobim. O CD se intitula “The other side of Jobim” e o encontrei, após a mudança, no fundo da estante, indesculpavelmente esquecido por mim. Ah, meu maestro soberano, queira me perdoar. Saiba, contudo, que isso não foi intencional. De maneira alguma! Porquanto o dia a dia da gente, muitas vezes, acaba nos infringindo alguns ‘esquecimentos’ imperdoáveis. E eu lamento por esse, creia-me.

Assim, para me redimir, eu coloquei o disco a tocar enquanto folheava a antologia de poemas de Drummond. Desse modo, a deslumbrante voz de Ana Caram acabou acalentando os meus pensamentos, fazendo-me lembrar das belezas que ele escreveu. Sim! Desde muito cedo eu fui ‘tocado’ por Drummond, já no “Poema de Sete Faces”, quando eu ainda nem atinava para as dores do mundo. Vejam:

“Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

… Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo.”

Portanto, minha gente, eu prefiro ficar com as melodias que estão esparramadas pelo universo. No fundo, elas são sábias. E me embalam nesta manhã de sexta-feira. Só que agora, na voz de António Zambujo, todos os anjos sussurram em meus ouvidos o testemunho deixado por Chico Buarque, em “Futuros amantes”:

“Não se afobe, não / que nada é pra já / o amor não tem pressa / ele pode esperar / em silêncio, num fundo de armário / na posta restante / milênios, milênios ao ar…

…Sábios em vão / Tentarão decifrar / O eco de antigas palavras / Fragmentos de cartas, poemas / Mentiras, retratos / Vestígios de estranha civilização.”