OS ELEITOS PARA O SACRIFÍCIO (*)

Ah, meus amigos, essa vida é mesmo interessante. Vejam vocês: o meu querido tio, Holdemar Menezes, publicou em 1983 aquele que eu considero o melhor dos seus livros de contos. Intitulado “Os eleitos para o sacrifício”, o livro é uma coletânea de nove primorosos contos, sendo que um deles, “O anjo Gabriel”, foi tão marcante que serviu até de inspiração para o nome do meu querido filho.

Aliás, o enredo desse conto é sensacional, pois atesta o lado mais habilidoso do escritor, onde ele cria um pano de fundo para que a história se revele aos poucos. Sem pressa de apresentar o começo, meio e fim, Holdemar se apresenta como um bom artesão a confeccionar a sua obra de arte. O resultado é espetacular… Coisa linda!

“De repente, tive uma imperiosa vontade de chorar. Chorar com saudades da Sueli, pois lá de cima da torre da igreja, eu podia ver parte da Vila Palmira, e numa daquelas casas estava Sueli, a Sueli que tinha sido, e ainda era, meu único amor”.

Ao reler o conto esta semana, quem sabe pela décima vez, eu me dei conta de que a vida da gente é, de fato, intrigante. Surpreendente, até. E se observarmos bem, veremos que os fatos vão acontecendo, como que tecendo uma enorme colcha de retalhos. Pois é. No fim das contas, convenhamos, o que nos cabe é tão somente enxergar os desenhos como algo íntimo e familiar. Com isso, em qualquer momento da vida, nós poderemos declarar que tudo valeu a pena ser vivido. De modo tal que, ao olharmos para trás, não tenhamos vergonha ou arrependimentos profundos. Assim como Édith Piaf, também podemos entoar o mesmo canto que ela nos brindou: “Non, rien de rien / Non, je ne regrette rien / Ni le bien qu’on m’a fait / Ni le mal, tout ça m’est bien égal!” E ela tinha ela razão, meus amigos. Afinal, vivemos tudo como soubemos ou pudemos…

“Aí eu peguei o pistom, passei vaselina nos lábios e comecei a tocar. O som saindo embriagado de tanto vinho de laranja do Santo Padre, os olhos do Onofre brilhando no escuro. Aquela melodia eu havia memorizado de um velho disco do “MaioDeives”, que o mister tinha me presenteado”.

Ao mesmo tempo em que relia o conto, ao fundo, eu ouvia o solo lamentoso de Miles Davis, na extraordinária trilha sonora do filme de Louis Male, o “Ascenseur pour l’échafaud”. Além disso, eu sentia algo mágico se passando. Sim! Nas minhas fantasias, confesso, era como se eu estivesse conversando com meu avô Ezequiel, meu tio Holdemar, meu pai e o meu filho. Porém, nessa conversa, eu falava com orgulho desse traço familiar de inventividade e o apurado gosto pelas letras e pela música…

“Era uma melodia mais para o grave, um sopro de percussão, como se a língua partisse a frase em pedaços, como se os lábios esculpissem as notas em madeira de cheiro, perfumada e macia”.

Deitado naquela rede cearense, no aconchego do escritório, ah!, eu repassava a vida em meus pensamentos. Recortando alguns episódios, para que pudesse ordená-los de uma forma mais confortável às minhas emoções.

“Quando terminei o solo, que era uma variação sobre o tema do “MaioDeives”, o Onofre estava chorando, eu acho que de tão mamado que estava. Ele me tomou o rosto, beijou com força e falou:

– Isso não existe! – Igualzinho ao Anjo Gabriel…”

Nesse momento, a porta do escritório foi aberta e Gabriel ficou me olhando, longamente. Sem nada dizer, fiz apenas um gesto de convite. Ele, então, deitou-se na rede comigo e ficamos nós dois em profundo e conveniente silêncio. Ao redor, apenas o sopro suave e melancólico de Miles Davis permanecia ao nosso lado, renovando os laços de afeto…

(*) Capa do livro do tio Holdemar com a ilustração de um trabalho de minha mãe, Jarina Menezes.

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OS ‘NAMORADOS’ DA MODERNIDADE

Há quem afirme que os relacionamentos afetivos ‘aprisionam’ as pessoas. Pudera! Eles proclamam que a natureza dessas relações subverte, tacitamente, o instinto de liberdade presente no ser humano. Olha, isso pode até ser verdade, mas desconfio de que constitua mero discurso retórico. Digo isso, meus amigos, porque percebo que temos o hábito de buscar explicações, muitas vezes, solidamente ‘elaboradas’. No fundo, eu acredito que tal comportamento serve apenas para justificar as nossas descontroladas emoções. Afinal, ao que tudo indica, a capacidade de ‘racionalização’ de o homem parece ser inesgotável. No entanto, creiam-me: apesar das heroicas resistências que oferecemos, bastam algumas sessões deitados no ‘divã’ e vai tudo por água abaixo. Meu Deus do Céu, que incrível desperdício…

Quando eu tinha os meus vinte e poucos anos de idade, também pensava em levar a vida amorosa na flauta. Na época, devo confessar, eu não queria me sentir ‘ligado’ a uma pessoa em especial. Preferia me manter como um franco atirador, desses que se imaginam imunes a qualquer relação mais contínua e profunda. Como se isso fosse possível… “Mas o tempo passa muito rápido”, vaticinavam os mais velhos. Sim, é verdade, devo admitir.

Hoje, confesso, eu acho que isso é uma dádiva e não um pesar. Aliás, sem medo de errar, eu acredito que não há nada mais belo nessa vida do que a maturidade. Sim, somente quando atingimos esta fase na vida é que nos damos conta de como é maravilhoso estar ligado a alguém. E mais: que extraordinárias emoções podemos sentir quando estamos sob os auspícios da ‘cumplicidade’!

O nosso saudoso Lupicínio Rodrigues já cantou em verso e prosa: “Estes moços, pobres moços / Ah! Se soubessem o que eu sei / Não amavam, não passavam / Por tudo que eu já passei / Por meus olhos, por meus sonhos, / por meu sangue, tudo enfim… / É que eu peço a esses moços / que acreditem em mim. / Se eles julgam que há um lindo futuro / Só o amor nessa vida conduz / Saibam que deixam o céu por ser escuro / E vão ao inferno a procura de luz. / Eu também tive nos meus belos dias / essa mania que muito me custou / E só as marcas que trago em meu peito / São essas rugas que o amor me deixou…”


Ah, como essa canção é maravilhosa, ainda que o amor cantado por ele soe tão doído! Mas, se observarmos bem, o que Lupicínio sentiu foi uma tremenda ‘dor-de-cotovelo’. Nada mais do que isso. E cá entre nós: quem não sofreu desse mal? Afinal de contas, a dor-de-cotovelo é um sentimento intimamente ligado ao amor e pertinente à vida de qualquer criatura. Além disso, convenhamos, Lupicínio teve esse direito. Isto porque, acostumado à boemia, ele deve ter experimentado muitas paixões, grandes amores e, de quebra, algumas ‘dores’. Algo que só quem está pulsando pode sentir. Quem não viveu um grande amor, jamais saberá como é a dor da perda. Isto sim, meus amigos, é bem triste, muito embora seja passageiro. É algo que alimenta a inspiração dos músicos e poetas. Tão somente. No entanto, para nós, ‘pobres mortais’, é bem ao contrário, à medida que evitamos, desesperadamente, sentir a dor e vivenciar o processo do luto amoroso. Geralmente, o que se verifica é uma brutal dissimulação. E para tanto, nós lançamos mão do enorme arsenal de ‘racionalizações’ de que somos portadores. É impressionante o ‘malabarismo’ emocional empreendido.

Com tudo isso, apesar das dificuldades, o importante é acreditar que o amor é possível nas relações afetivas. Sim! É preciso acreditar que ele pode ser duradouro. Com sorte, pode até ser para sempre!

PARA ‘ADOÇAR’ MEU CORAÇÃO

Foi o nosso querido Carlos Drummond de Andrade que afirmou em seu extraordinário poema, “Resíduo”, que “de tudo fica um pouco”. Pois é. Tinha ele razão, meus amigos. Aliás, muitas razões! Vale a pena lembrar:

“De tudo ficou um pouco / Do meu medo. Do teu asco. / Dos gritos gagos. Da rosa / ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz / captada no chapéu. / Nos olhos do rufião / de ternura ficou um pouco (muito pouco).

Pouco ficou deste pó / de que teu branco sapato se cobriu. / Ficaram poucas roupas, / poucos véus rotos / pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco. / Da ponte bombardeada, / de duas folhas de grama, / do maço – vazio – de cigarros, ficou um pouco.

De tudo fica um pouco. / Não muito: de uma torneira / pinga esta gota absurda, / meio sal e meio álcool… / este vidro de relógio / partido em mil esperanças… / este segredo infantil…

…Oh! abre os vidros de loção / e abafa / o insuportável mau cheiro da memória…”

O mais interessante de tudo é que ao reler este poema nesta ensolarada manhã, eu tinha, ao fundo, a suave e inebriante companhia de Ana Caram, interpretando as canções de Tom Jobim. O CD se intitula “The other side of Jobim” e o encontrei, após a mudança, no fundo da estante, indesculpavelmente esquecido por mim. Ah, meu maestro soberano, queira me perdoar. Saiba, contudo, que isso não foi intencional. De maneira alguma! Porquanto o dia a dia da gente, muitas vezes, acaba nos infringindo alguns ‘esquecimentos’ imperdoáveis. E eu lamento por esse, creia-me.

Assim, para me redimir, eu coloquei o disco a tocar enquanto folheava a antologia de poemas de Drummond. Desse modo, a deslumbrante voz de Ana Caram acabou acalentando os meus pensamentos, fazendo-me lembrar das belezas que ele escreveu. Sim! Desde muito cedo eu fui ‘tocado’ por Drummond, já no “Poema de Sete Faces”, quando eu ainda nem atinava para as dores do mundo. Vejam:

“Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

… Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo.”

Portanto, minha gente, eu prefiro ficar com as melodias que estão esparramadas pelo universo. No fundo, elas são sábias. E me embalam nesta manhã de sexta-feira. Só que agora, na voz de António Zambujo, todos os anjos sussurram em meus ouvidos o testemunho deixado por Chico Buarque, em “Futuros amantes”:

“Não se afobe, não / que nada é pra já / o amor não tem pressa / ele pode esperar / em silêncio, num fundo de armário / na posta restante / milênios, milênios ao ar…

…Sábios em vão / Tentarão decifrar / O eco de antigas palavras / Fragmentos de cartas, poemas / Mentiras, retratos / Vestígios de estranha civilização.”