Dizem que nessa vida nós herdamos muitas coisas dos nossos antepassados. Coisas boas e outras nem tanto. E que a partir daí, cabe a cada indivíduo efetuar um apurado ‘pente fino’ do patrimônio recebido, seja ele material ou afetivo. Até aí, tudo bem. Faz parte da nossa trajetória, não é mesmo?
No entanto, se isso não for feito em tempo hábil, corre-se o risco de incorporar ‘tralhas’ indesejadas. E é aí que mora o perigo, minha gente. Porquanto uma vez que essas ‘heranças’ sejam anexadas, torna-se difícil livrar-se daquilo que não nos serve.
Eu não sei dizer quanto a vocês, amigos leitores. Mas, no meu caso, confesso: foi um processo penoso e arrastado. Demorei muito tempo para separar o ‘joio do trigo’. Afinal, saber o que de fato me cabia e o que era indevido, convenhamos, era uma tarefa complicada. Por isso, demorei décadas a fio efetuando esse ‘inventário’. Até que um dia eu percebi que havia me livrado da ‘tralha excedente’. E, assim, eu me senti mais livre, leve e solto. Ou seja: havia conquistado a minha verdadeira ‘carta de alforria’!
Também é verdade que eu não culpo ninguém por isso. É da vida! Até porque esse processo é algo que cabe somente a criatura envolvida dar conta. Sequer pode ser ‘delegado ou transferido’.
O lado bom dessa história, minha gente, é que podemos receber alguns ‘presentes interessantes’, vindos de parentes que nem imaginávamos. Vejam só o que me ocorreu:
Foi na casa do tio Holdemar, irmão de papai, que eu fui apresentado à literatura de Gabriel Garcia Márquez. Estávamos em 1968, eu tinha 17 anos e vivíamos tempos difíceis, pois boa parte da América Latina sofria com os regimes autoritários. No pequeno escritório da casa, no primeiro andar, ele me presenteou com a novela de Gabriel, intitulada “Ninguém escreve ao Coronel”. Céus, que estilo! Fiquei extasiado com o texto. Tempos depois, para minha sorte, eu conheci “Cem anos de solidão”, “O outono do patriarca”, “Crônica de uma morte anunciada” e tantos outros livros, incluindo o magistral romance “O amor nos tempos do cólera”. Ao mesmo tempo, conheci também John Coltrane e as incríveis baladas. “Carlos, você conhece as baladas do Coltrane?”, perguntou-me Holdemar. Claro que não “conhecia”. Então, escutei. Uma, duas, diversas vezes. Incríveis! Somente após ouvir aquelas baladas é que fui “compreender” o que era elegância e bom gosto no jazz. No meu imaginário, Coltrane tocava “Say it (over and over again)” vestido a rigor, tal era o finesse com que ele soprava o sax. Desde então, nunca mais pude me separar de Coltrane, de Gabriel Garcia e nem das lembranças que carrego do nego velho Holdemar…
