Quando eu era menino havia uma coisa que me dava imenso prazer: andar de bonde. Mas, cá entre nós, não se tratava de ir de bonde para a escola ou para o cinema. Nem mesmo como transporte para ir ao Maracanã ver o meu Flamengo sofrer nas disputas. Não, minha gente! O que realmente me dava prazer era pegar o bonde que ia do Estácio até a Muda da Tijuca – fim da linha – e observar as pessoas. Sim!, pois ao observá-las eu podia criar histórias envolvendo aquelas criaturas. Meu Deus do Céu, que coisa maravilhosa era esse exercício, podem acreditar. Era algo que alimentava o meu espírito livre!
É bem verdade que algumas vezes eu não tinha sucesso. Seja porque os transeuntes não ajudavam ao meu imaginário, seja porque havia alguma interferência no momento da criação da história. Vai saber?! Contudo, o mais importante era alcançar a ‘sincronização’ dos eventos, porquanto assim as peças se encaixavam com delicadeza no ‘enredo’ inventado. Com isso, as cenas propiciavam a construção de pequenos dramas ou de hilariantes comédias, que para outros olhos não fariam sentido. Na realidade, o que mais valia era a sorte de conseguir o encaixe perfeito entre a cena real e a fantasia das minhas imaginações…
Lembro até que essa ‘brincadeira’ envolvia um determinado ‘risco’, uma vez que para ir e voltar nessa linha de bonde o percurso demandava quase duas horas de duração. Isso porque, convenhamos, o bonde não era um transporte veloz, ainda que extraordinário. A velocidade máxima dele atingia algo entre 20 e 30 km/h. Além disso, existiam as paradas obrigatórias em cada ponto. Assim, juntando uma coisa à outra, já viram, né?! Eu tinha que sair de casa logo após o almoço, por exemplo, para retornar lá pelas quatro da tarde. Caso contrário, haveria ‘encrenca’ em casa!
Outra coisa que me ocorre é dizer que esse passeio se assemelhava, de algum modo, a uma sessão de terapia, com direito ao divã autoconcedido. Afinal, à medida em que se está construindo ‘enredos’ para as histórias dos outros, no fundo, acaba-se alimentando às nossas próprias, ocorridas ou não! Além disso, ‘viajar’ na imaginação, de um jeito ou de outro, libera as nossas emoções represadas. E, de quebra, drena muitas dores. Lá, isso ocorre!
O fato é que eu estava me recordando disso tudo e, de repente, algumas lembranças daquele tempo me vieram a mente. Como no caso do “Rei do Cuscuz”. Eu explico. É que sempre que eu passava pelo Largo da Segunda-Feira, no meio da Tijuca, percebia a subida no bonde de um homem muito forte, todo vestido de branco, que trazia na cabeça um enorme tabuleiro contendo “Cuscuz branco” e “Quebra-queixo”. E como ele era bastante conhecido pelos passageiros, foi apelidado de “Rei do Cuscuz”.
Só que a vida não anda em linha reta, minha gente. Não é que após alguns meses fazendo esse percurso eu acabei sabendo de um bocado de coisas? É bem verdade que muitas delas têm maledicência embutida. Até mesmo inveja, que é pior ainda!
O que sei é que o coitado do vendedor de cuscuz, um trabalhador sempre gentil e simpático com todos, acabou se tornando pivô de um caso super sinistro. É que ele descia, aleatoriamente, em diferentes pontos, quem sabe, por estratégia de venda?! O certo é que ele botava o tabuleiro na cabeça e anunciava os produtos com um vozeirão que fazia sucesso. Até que um dia uma bem-apanhada morena, que morava próximo a Igreja dos Capuchinhos, o chamou e pediu uma fatia de cada. Dizem que o “Rei do Cuscuz”, como de hábito, contou alguns causos engraçados. Ela sorriu bastante e os dois se despediram alegremente. Segundo consta, isso aconteceu durante mais de um ano…
No entanto, em um determinado dia eu percebi que o bonde se aproximava da casa da morena. Aí, já desconfiado nas minhas fantasias, fiquei sentado na ponta do banco para poder olhar cuidadosamente o encontro deles. Por coincidência, foi quando o bonde parou e o motorneiro saiu para ajustar o cabo da rede elétrica. Nesse exato momento, eu vi o “Rei do Cuscuz” saindo apressado da casa da morena. Logo atrás dele, veio o ‘marido’ dela. Pelo menos, era o que a minha imaginação estabelecera. E eu confiava nisso!
Então, dois tiros foram disparados à queima-roupa. E o pobre trabalhador caiu na calçada. Um corre-corre danado de gente curiosa e os gritos da mulher: “seu cretino! você matou o meu grande amor!”
No dia seguinte, ao ler as notícias do jornal, eu confirmei as suspeitas: “Delegado ciumento mata o amante de sua companheira. Não aguentava mais sofrer humilhações!” Deixei o jornal de lado e comentei com o Luiz Henrique: “tá vendo, meu chapa? Não erro uma só história inventada. Quando eu imagino o enredo para a cena, pode acreditar: acerto sempre!”
Luiz Henrique, por sua vez, sorriu discretamente e saiu balançando a cabeça… Talvez, ele tenha pensado: “Esse Chau é uma peça rara. Que eu saiba, essa foi a primeira história que ele acertou!”
