A criança que nunca nos deixa

Quando uma criança chega ao mundo, convenhamos, ela vem impregnada de pureza angelical. Logo a seguir, ela passa a receber a forte carga emocional dos pais que, por vezes, se apresenta de modo bastante instável. Daí, começa a “via-crúcis” do novo indivíduo, que pode enveredar por caminhos imprevisíveis. Aliás, se olharmos bem, veremos que tudo isso é profundamente injusto. Afinal de contas, o inocente ‘rebento’ nem bem adquiriu imunidades e já é bombardeado por um monte de insanidades. Paciência…

O problema vem depois, já que essa ‘batalha’ não mais cessará. Com isso, esses filhos estarão sujeitos a toda sorte de frustrações e violências. De tal forma, meus amigos, que se eles não criarem rapidamente mecanismos ‘sadios’ de autodefesa, a coisa vai longe. E como!

Por ironia, é nesse exato momento que se dá início a formação do caráter de uma pessoa. E digo isso de forma consternada, pois acredito que seria bem melhor se tivessem mais tempo para depurar a ‘herança’ recebida da família. Como resultado, muito precocemente eles serão obrigados a fazer sérias escolhas. Escolhas do tipo: ‘quero isso’ e não ‘aquilo’ ou ‘gosto disso’, mas não ‘daquilo’…

De todo modo, indiferente aos nossos problemas, o mundo segue o caminho que pode. Lentamente, ele vai nos apresentando às encruzilhadas, oferecendo tentações e nos empurrando aos becos, quase sempre, sem saída. Céus, que vida complicada, não? O que fazer, então?!

Sinceramente, não sei. Juro a vocês. Sei apenas que o destino de cada criatura a ela pertence. Lá, isso sim! E ao que tudo indica, não há ‘receita de bolo’. Tampouco o ‘dever de casa’ pode ser postergado ou transferido. Pois é, meus amigos, pelo visto, o jeito é arregaçar as mangas e ir à luta. Da melhor maneira que puder. Ou souber. Quanto ao futuro, bem… aí ficará por conta de outros fatores: talento, sensibilidade, determinação… e, até mesmo, sorte. Muita sorte!

O que posso dizer é que comigo não foi diferente. Ainda que a tarefa seja interminável, eu também tive que desbravar os meus caminhos e muitas voltas fui obrigado a dar. Não posso garantir que eu tenha alcançado sucesso, mas que me sinto feliz, lá, isso é verdade.

Talvez, por isso, quando vejo meu filho com dezenove anos e meu ‘adotado’ neto com cinco, confesso que sinto um aperto no estômago. Sim! Desafortunadamente, eu sinto medo por eles. Medo pelos percalços que ainda terão que enfrentar, em um mundo mais conturbado do que nunca…

Ah, minha gente, só me resta torcer. Torcer para que o ‘anjinho da guarda’ de cada um deles seja gentil e prestativo, desses que não se cansam de permanecer de prontidão à espera de eventual ‘servicinho extra’… Que assim seja, Meu Deus!!

(*) A foto serve apenas para me lembrar que um dia eu fui criança feito o querido João Pedro…

OS CAMINHOS DE CADA UM

Lembro muito bem quando conheci Renato Alvim. Eu era ‘calouro’ no magistério e ele já dava aulas a alguns anos. Além disso, Renato esbanjava talento e isso impressionava a todos.

Lembro até que por ser o meu primeiro ano como professor, faltava-me desenvoltura, autoconfiança e uma pitada de ‘malandragem’ em sala de aula. É o tal negócio: eu podia ter competência e boa vontade, vá lá, mas me faltava aquele ‘algo mais’ que somente a experiência desenvolve. Paciência… Fazer o quê?!

O mais interessante, contudo, é que o universo se encarregou de me aproximar de Renato. E assim, acabou criando uma sólida e profunda amizade. Sim! Nós fomos amigos e companheiros por mais de duas décadas e, durante esse percurso, eu pude conhecer outros atributos da personalidade dele.

Para início de conversa, é bom que se diga, Renato era uma criatura extraordinária, com múltiplos talentos. Na Matemática, ele era unanimidade: talento puro! Mas a coisa não parava aí, já que Renato também era um exímio violonista. Aliás, tenho imensas saudades dos encontros musicais conduzidos pelo violão de Renato. Sorte a nossa, isso sim, pois ficávamos noites e mais noites embevecidos pela apurada técnica e elegância que ele nos brindava.

Além disso, não podemos esquecer, Rento Alvim tinha um senso de humor espetacular. E como ele sabia disso, abusava dos improvisos em qualquer ambiente que estivesse. Como consequência, todos paravam para ouvir seus comentários. E, não raro, externavam admiração ao carisma que ele irradiava.

Após alguns anos de convívio, estimulado por ele, eu posso dizer que consegui ‘crescer’ como professor e adquiri um maior traquejo em sala de aula. Desse modo, eu passei a receber os primeiros reconhecimentos dos colegas professores. Por sinal, naquela época era costume dizer: “se a pessoa tiver realmente vocação e talento, bastam uns poucos anos no magistério e a carreira seguirá de vento em popa!”

Pouco tempo depois, eu e Renato passamos a alternar as caronas para o trabalho, uma vez que as unidades do cursinho, Meier e Madureira, eram bem distantes. Então, para economizar gasolina, combinávamos a ida ao trabalho ora no meu fusca, ora no Chevette dele. O diabo é nos dias dele eu era obrigado a aceitar a escolha do percurso, de acordo com o humor e a sensibilidade presentes no Renato. Porquanto ele sempre escolhia trajetos inusitados, normalmente, bem mais longos e demorados.

No início, eu reclamava um bocado com ele: “porra, Renato, vamos gastar meia hora a mais para chegarmos ao cursinho!” E ele, com aquela serenidade quase bovina, respondia com um sorriso nos lábios: “calma, Carlos, é que esse caminho é muito mais bonito, não acha?!” O pior é que ele tinha razão. Invariavelmente!

A vida seguiu o rumo que pode e, por sorte, ainda me presenteou com alguns anos de convívio com essa especial criatura. Depois, eu mudei de cidade e vim morar em Florianópolis. Aqui, eu constitui família e sentei praça. Quanto ao Renato, soube que ele trocou o magistério pela carreira de músico. Ah, meus amigos, eu acredito que ele tenha sido mais feliz enquanto viveu.

Em minhas lembranças, Renato sempre ocupará um lugar de destaque. Afinal, foi com ele que eu aprendi a desvendar alguns caminhos… Abençoado seja, Renato Alvim!