NARCISO E O FIM DO MUNDO

O meu querido tio, Holdemar Menezes, completaria essa semana o seu centenário. Então, para homenageá-lo, eu escolhi uma bela crônica que ele publicou no livro “O Barco Naufragado”. Sua bênção, meu tio!

Olha, eu nem estava preparado para aquilo. Apenas fui ler o meu livro e tomar a minha cerveja gelada. Por sinal, é um hábito salutar, como recomendou o meu terapeuta. Tanto é verdade, meus amigos, que fiquei na parte de cima do clube, bem afastado, numa mesa de canto.

Procurei, ao menos, resguardar um angulozinho de visão, através dos vidros sujos de poeira acumulada. A minha paisagem começava no trampolim e se estendia pelo “deck” da enorme piscina. Mas eu sabia, evidentemente, que a nesga de visão servia de ponto de observação do banho de mil pessoas e lindas mulheres. Eu sabia, confesso, mas nem estava preocupado com isso.

Até porque, de fato, eu estava mesmo era envolvido com a leitura da deliciosa novela de Gabriel Garcia Márquez, “Ninguém escreve ao Coronel”. Por aí vocês podem sentir o meu desarmamento de intenções. Afinal, é um livrinho bom para se ler no clube, na companhia de uma cerveja gelada.

O que sei dizer é que era ainda muito cedo. Afinal, o avião das nove horas da manhã nem havia passado, riscando o céu ensolarado. Sei também que de vez em quando, como é do meu feitio, eu suspendia a leitura do livro, até para descansar os olhos, e os lançava sobre as águas tranquilas da piscina. Porém, nada disso tem importância. O que vale mesmo é que nem estava pensando tolices.

Entretanto, é o tal negócio: quanto mais eu rezo, mais o diabo me aparece. No fundo, eu sou um perseguido, isso sim. Mas, calma aí, que eu explico a vocês. A verdade é que só fui à janela porque pensei ter ouvido gritos do meu neto. Porém, não era ele que estava gritando. Ele permanecia sentadinho, tomando o suco de laranja e empilhando brinquedos. Mas o diabo, por certo, também estava lá, deitado sobre a toalha estampada, de óculos escuros e biquíni.

Foi nesse exato momento que senti um ‘solavanco’ nas coronárias, assim como um entupimento súbito. Sei lá. Ainda olhei discretamente para a janela, pois eu não conseguia acreditar que toda aquela ‘entrega’ era para mim. E era!

Daí por diante, confesso, eu fui ver o garoto várias vezes e, repetidamente, ela me fazia sinal para que eu descesse. Ainda pensei: deve ser uma coleguinha do meu filho ou até mesmo uma de suas namoradas. Mas, qual o quê! Era para mim mesmo. Então, tive um ataque de ‘burrice’ e não mais entendi uma só folha do livro. Até a cerveja passou a descer com dificuldade. Meu erro maior, reconheço, foi pedir ao garçom uma dose dupla de uísque.

Na aflição do momento, eu fui ao banheiro do clube. E lá estava Narciso me esperando. Como consequência, desapareceram os meus cabelos brancos, os meus músculos flácidos e a minha proeminente barriga encolheram abruptamente. Ou seja, cumprira-se o vaticínio mitológico: “Eco”, ninfa filha do Ar e da Terra, estava doidamente apaixonada por mim. Por isso, bati no peito com forca, ergui o queixo desafiadoramente e voltei as costas ao espelho…

Tudo bem que tais ilusões todos nós temos, minha gente, e até nos fazem bem. Mas o problema é que não voltei à mesa de leitura: ganhei as escadas e desci para a piscina. Empoderado, apossei-me das águas e nadei como um peixe alado. “Eco” deveria estar encantada com a minha destreza, minha formosura e suavidade!

Subi ao trampolim, volteei no ar várias vezes e mergulhei como um biguá. Meu neto, que sempre foi um grande mentiroso, afirma que eu nadava como um boi cansado, espalhando água, e que, ao cair do trampolim, dei com a barriga contra as plácidas águas da piscina, provocando o riso de todas as pessoas que se encontravam no “deck”. O mais doloroso, meus amigos, é que eu acho que foi verdade mesmo.

Mas, cá entre nós, eu podia ter ficado apenas nisso e tudo estaria bem. Narciso, no entanto, havia me dominado completamente. Já em terra, desejei fazer a última demonstração: um salto mortal! Parti da amurada do clube, subi aos céus e… caí de cabeça.

Não vi mais nada, minha gente: apenas gritos, risos, Bach tocando órgão, palhaços com guizos nas orelhas, cheiro de incenso e os anjos anunciando o fim do mundo. Agora, devo dizer: o mais difícil é aguentar esta posição incômoda, duas vertebras partidas, tomando sopa com canudinho. Paciência… Fazer o quê?!

DE REPENTE, FERNANDO FOI EMBORA…

De repente, Fernando foi embora. Partiu sem me avisar. Nem sequer se despediu de muitos de nós. Para alguns, isso pode até parecer injusto e, quem sabe, seja mesmo uma tremenda sacanagem?! No entanto, eu desconfio que Fernando devia ter fortes motivos para isso, minha gente. Afinal, ele era um verdadeiro cavalheiro.

Mas, e agora? O que vou fazer com o nosso antigo ‘sonho socialista’, onde imaginávamos um mundo mais justo e harmonioso? Ah, Fernando, pelo visto, nós vamos ter que deixar para outras gerações. A nossa, certamente, não deu conta desse antigo desejo, dessa ‘febre’ quase juvenil. Ainda que tivéssemos muitas esperanças, guardadas com amor e paixão ideológica, no fundo, devemos reconhecer que elas se extraviaram ao longo do caminho.

Também é verdade que eu terei que renunciar àquele acalentado sonho de montarmos um restaurante alternativo. Alternativo não somente na comida, é claro, mas principalmente nos temas interessantes que iríamos propor: jazz, cinema e utopias. Sim… para o deleite de todos. Sem falar das palestras e cursos que o restaurante patrocinaria. Confesso a você, Fernando: eu não consigo empreender esse projeto com outra pessoa. Só seria possível com você, à medida que ninguém mais trazia tanta lucidez nas ideias e propostas. É que você, meu velho amigo, possuía o dom de ‘abduzir’ os nossos sonhos com incríveis argumentos. E sempre sedutores!

Mas saiba, parceiro, que o que restava de brilho nesse mundo de hoje, por certo, vai perder a sua participação. Zizi bem sabe o que estou a dizer. Até porque, ela foi o seu ópio e a razão do seu amor neste mundo. Agora, ela terá que ‘reinventar a roda’ para dar conta desse enorme buraco…

Muitas vezes nós conversamos sobre a vida. E, quase sempre, tínhamos um copo de vinho ou cerveja para instigar os pensamentos. Afinal, no bojo das conversas, surgiam muitas ideias e propostas. Como consequência, vinha o desejo de mandar para cadeia essa ‘cambada de pilantras’ e sanguessugas que estão espalhadas por todos os lados. Ao mesmo tempo, nós acreditávamos que aquela velha ‘ilha do barbudo’ iria resistir aos ventos e furacões vindos do Norte. Tal qual aquela lendária ave, única da espécie, que após viver 300 anos, supostamente, se deixava arder em brasas para, em seguida, renascer das próprias cinzas. “Voilà”, eis a nossa fênix revestida de sonhos e esperanças nos homens de bem…

O pior de tudo, Fernando, é ter que confessar a você que eu não sei como lidar com esse novo momento. Eu explico. É que, de certa forma, você representava o meu ‘alter ego’. Por infortúnio, a partir de agora, eu ficarei sem o contraponto capaz de me dar equilíbrio para tocar a vida em frente. “Paciência”, diria você. “O que não tem remédio, remediado está, Carlos!”

Além disso, eu não sou chegado em despedidas. Principalmente, em despedidas tristes e encabuladas como essa. Porém. eu devo isso a você. Sendo assim, meu amigo, receba o meu melhor e mais afetuoso abraço. Com ele, é verdade, vai junto um esforço de sorriso e os muitos agradecimentos… Bem como esse mar de lembranças que me invadem a alma!

(Na foto: Fernando e Gabriel, meu filho, nos braços de Zizi)

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