TIA ALBA E A “MACONDO” DE MINHA INFÂNCIA

A folhinha do calendário informava que estávamos em janeiro de 1962. Nessa época, eu tinha apenas dez anos de idade e não sabia como seriam as primeiras férias longe dos meus pais. Lembro até que uma semana antes, eu já estava no maior “frisson” e mal conseguia aguardar o tão sonhado dia da viagem. “Bocaina”, esse era o nome do objeto do desejo!

Aliás, é sabido que a Serra da Mantiqueira possui diversas montanhas. E numa delas, existia uma fazenda que abrigava a colônia de férias da Tia Alba: a encantada Bocaina. Sim! Era um lugar maravilhoso, que ficava entre Santos Dumont e Juiz de Fora, em Minas Gerais.

A primeira etapa da viagem consistia em pegar o trem litorina que saía da Estação Leopoldina, logo após a Praça da Bandeira, em direção ao Gasômetro. Verdade é que eu nem sei quantas horas de viagem nós levamos até Santos Dumont. Contudo, acredito que foram mais de seis horas. E ao chegarmos naquela pequena cidade, descemos para o nosso primeiro almoço mineiro. Daí, após um breve descanso, pegamos um caminhão para a fazenda. Passados alguns metros de calçamento, ele se embrenhou por uma estrada de barro que parecia não ter fim. Mais de duas horas sacudindo na boleia do caminhão, sentindo um friozinho na barriga toda vez que parávamos para atravessar algum córrego. Parecia até a viagem do Indiana Jones.

Por fim, nós chegamos na fazenda da Tia Alba, a tão sonhada Bocaina. Abriram a enorme porteira que dava acesso e apeamos do veículo, seguindo em direção ao refeitório. Ali já estava preparado um delicioso café com leite mineiro, com bolachas, pão com manteiga e toda sorte de doces e salgadinhos. Nossa… Comi feito um glutão!

Depois disso, nós fomos para o galpão principal, local onde aconteciam os jogos e as brincadeiras programadas. Lá chegando, fomos divididos em pequenos grupos, conforme a idade e a Tia Alba e o Tio Marquinhos se encarregam de formar os times. Os quartos recebiam nomes de bichos. Eu, por exemplo, fiquei no quarto dos Quatis, bem ao lado dos Lobos. Havia um tal de “Bossa-Nova”, exclusivo para os adultos, e Formiguinha, Oncinha e quase toda a fauna também…

O que sei dizer é que foram os sessenta dias mais incríveis da minha infância. Tudo isso, com direito a rodas de conversa, bailes dançantes, contação de histórias junto à fogueira, banhos de rio e de cachoeira, trilhas a cavalo, passeios a pé em busca de pedras preciosas e muito, muito mais. Um dia naquela fazenda, meus amigos, parecia não ter fim. Nós acordávamos com o sino da Tia Alba anunciando o café da manhã e as atividades eram tantas que ao final do dia estávamos moídos, isso sim. Mas, plenos de satisfação!

A coisa toda foi seguindo o rumo da diversão, sempre de modo imprevisível. Porquanto os ‘combinados’ para o dia seguinte eram agendados na noite anterior. E quase sempre essas atividades nos surpreendiam. Afinal, os dias eram intensos e marcantes.

Foi assim que um dia eu conheci o tal do Henrique. Ele devia ter um pouco mais dezoito anos de idade. E era, na verdade, o legítimo galã das adolescentes. Ao mesmo tempo, ele se apresentava como o “enfant terrible” para a Tia Alba, uma mulher conservadora até a raiz do cabelo. Vez por outra acontecia algum quiproquó e nem precisava investigar. Dava sempre o Henrique na cabeça!

Contudo, não sei por que, Henrique demonstrava gostar de mim, pois me tratava com muito carinho e deferência. Tanto é que nas brincadeiras dos adolescentes, ele sempre arrumava um jeito de me inserir. E isso me causava profundo deleite. Mas, é o tal negócio: um dia a ‘panela entorna’, não é verdade? E foi o que aconteceu naquela tarde ensolarada em que fugimos das atividades rotineiras e fomos escondidos para a cachoeira. O diabo é que houve uma tempestade monstruosa no dia anterior. Assim, muitos danos ocorreram na paisagem, como árvores caídas, buracos na estrada e o escambau. No percurso entre a fazenda e a cachoeira, nós percebemos o estrago que a tempestade causou. Isso, porém, não esmoreceu o nosso desejo de ir ao delicioso banho. Lá chegando, observamos que o cenário havia se modificado: muitas pedras rolaram e caíram no lago central.

Henrique, então, propôs um campeonato de mergulhos da pedra alta para o lago. E os meninos menores preferiram aguardar os mais velhos experimentarem os primeiros pulos. Até que chegou a minha vez. Eu devia ter escutado aquela voz que insistia em soprar em meu ouvido: “não vai, cara. É perigoso demais!”

Qual o quê? No outro ouvido, o pedido mais parecia uma ordem: “Vai fundo… não tem risco algum!” E eu nem pestanejei: “chibum”, mergulhei de cabeça… Só não contava com aquela pedra no caminho (pois é, Drummond: “no meio do caminho, tinha uma pedra…”). Bati a cabeça com muita força, apesar da freada que a água proporcionou. O impacto foi tão forte que fiquei desacordado por um período. Tanto é que Henrique, ao perceber o mergulho que eu havia dado, pulou imediatamente em meu socorro. Levantou-me na água e nadou comigo até a borda da cachoeira.

Minha testa sangrava um pouco e um enorme galo já surgira. Como eu estava desfalecido, Henrique se apavorou e pediu para que todos ajudassem. Fizeram ‘cadeirinha’ e eu fui carregado durante o caminho de volta. Passados quinze minutos, embora zonzo, eu já havia acordado. Todos pararam para o acertar o ‘pacto final’. Ficou estabelecido que nós estávamos brincando de “pique esconde” e eu escorreguei na estrada e bati com a cabeça numa pedra… puro acidente…

Jurado e sacramentado por todos. Assim ficou!  

O meu espaço era aqui: o quarto dos Quatis!
A nossa roda de conversa era disputada…
Muitas brincadeira e festas aconteceram nesse galpão.

JOÃO PEDRO E A PONTA DO ‘ICEBERG’

Se há uma coisa imensamente prazerosa para mim, esta, sem dúvida, é acompanhar o crescimento do meu querido neto, João Pedro. Isto porque as alterações que eu observo, cada vez que o encontro, são inúmeras e sempre diferentes. É que o João Pedro teve a sorte de ter pais que estimulam bastante o seu desenvolvimento. Além disso, ele também conta com tios e avós que adoram o estilo participativo e desafiador empreendido na educação dele.

Contudo, há outro aspecto interessante nesse processo. Porquanto o aprendizado de qualquer coisa nessa vida, de algum modo, também carrega embutido o desafio inverso. Ou seja, quem estimula alguém para o que quer que seja, acaba recebendo o ‘troco”. E esse troco, convenhamos, pode vir de diversas formas. Aliás, surpreendentes formas! Mas, calma aí que eu explico…

Na verdade, nem seria preciso lembrar que eu fui professor de química durante mais de trinta anos. E nesse longo período, o que mais eu percebi é que ‘ensinar’ não representa apenas o lado avesso do ‘aprender’. Pois é, meus amigos. Afinal, sempre que se ensina algo a alguém, simultaneamente, nós nos tornamos uma ‘via aberta’ para outros retornos. Se tivermos acuidade, pode-se perceber que nesse ofício se aprende muito mais do que se ensina. É algo impressionante, creiam-me!

Lembro até de uma conversa que eu tive com um colega professor, bem no início da minha carreira. Moura já era era professor de física há quase dez anos. Só que na escola onde nos encontramos ele lecionava francês. Na época, eu fiquei espantado e perguntei: “Mas você não é formado em física? Como, então, dá aulas de francês?” Moura, que era um sujeito inteligente e muito bem-humorado, sorriu para mim e disse: “Carlos, eu era recém-formado quando procurei essa escola para saber se estavam precisando de professores. Antes que eu dissesse a eles que era professor de física, eles me responderam que estavam precisando ‘desesperadamente’ de um professor de francês. Céus! Eu havia me casado naquele ano e estava mais ‘liso’ que piso encerado, daí respondi de bate-pronto: agora já tem um professor de francês!”

Confesso que fiquei chocado com a coragem do relato. Ao mesmo tempo, eu também fiquei ‘desconfiado’ da seriedade dele. Mas, com o passar do tempo, eu descobri que ele era um magnífico profissional e muito empenhado. Até que um dia surgiu uma vaga para professor de física e ele migrou de disciplina. Lembro até que ao comemorarmos a transferência para o quadro de professores de física, em um barzinho que havia em frente ao colégio, eu perguntei ao Moura; “Como você fazia para dar aulas sobre algo que não dominava?” Foi quando Moura me confidenciou de que seu pai havia sido professor de francês durante toda a vida. Com isso, Moura preparava as aulas de francês com a ajuda do pai. Decorava inúmeras palavras, aprendia a conjugação dos verbos, tudo em nome da ‘sobrevivência’. Mas é o tal negócio, algumas vezes ocorriam ‘surpresas’. Segundo ele, certa vez uma aluna perguntou o significado da palavra “riz”. Moura coçou a cabeça e respondeu que aquela palavra era muito pouco usada na conversação francesa, uma vez que tinha origem no francês arcaico. Porém, quando chegou em casa e fez a consulta ao dicionário, descobriu que era ‘arroz’. Bem… Paciência, fazer o quê?!

Mas, voltando ao tema do João Pedro. O que eu venho aprendendo com ele é que esse rico mundo infantil revela apenas a ‘ponta do iceberg’. Certo mesmo é que se você deseja saber mais sobre as ‘descobertas’ infantis, aí, só mergulhando de cabeça no mundo deles. Todavia, sem conceitos prévios e sem julgamentos. E, se possível, aberto a toda e qualquer proposta inusitada deles… Por certo, serão muitas as surpresas que teremos nessas vivências. Muitas vezes, elas podem revelar as ‘lacunas’ ou ‘ausências’ que deixamos passar ao largo em nossas vidas. No entanto, se deixarmos de lado alguns remorsos ou culpas, indevidas ou não, talvez possamos aprender com eles coisas surpreendentes. Bem interessantes. minha gente…

Só que para isso, não se esqueça de que ‘navegar é preciso’!