Eu nem precisei ouvir o relato do companheiro Ênio para saber que o ‘cerco’ havia se intensificado. Paciência! No fundo, é preciso aceitar que isso faz parte do jogo. Porquanto o papel ‘deles’ é de nos procurar e o nosso é de se esconder. Aliás, a vida da gente é assim mesmo, não acham? Em tudo que observamos no mundo, convenhamos, tem sempre o lado certo e o avesso. Tem o forte e o fraco. O bom caráter e o mau caráter e outras coisas mais que não vêm ao caso… Por isso, nós nunca ligamos para o estardalhaço que eles faziam. Preferíamos, isso sim, permanecer reservados, com poucas conversas. Afinal, nesse ramo de negócio, meus amigos, a ‘discrição’ é fundamental.
Mesmo assim, por precaução, nós resolvemos adotar algumas medidas, sabe como é?! Nunca se deve pôr em dúvida do que são capazes esses ‘pilantras’. Lembro até quando foi a vez do ‘Berimbau’. Eles foram para as rádios e TVs e falaram um monte de sandices. Disseram até que foi a mãe do coitado do Berimbau que havia dado o serviço, fornecendo informações sobre o paradeiro do filho. Sacanagem! Foi uma tremenda injustiça… Qual mãe deseja ‘entregar’ o filho? Ainda mais um filho carinhoso como ele? Conversa fiada, isso sim! Dona Odete era de total confiança e jamais denunciaria o filho. O que eles queriam, na verdade, era provocar a discórdia entre nós. A velha técnica de nos dividir, semeando desconfianças. Mas, pra cima da gente, não. Nós somos ‘escolados’!
Por sinal, foi Ênio que lembrou o pensamento do livro de Sun Tzu, “A arte da guerra”. Segundo constava no livro: “A guerra é um dos assuntos mais importantes do Estado. É o campo onde, a vida e a morte são determinadas. É o caminho da sobrevivência ou da desgraça de um Estado. Assim, o Estado deve examinar com muita atenção este assunto antes de buscar a guerra.”
Pois é. De certo modo, essa questão é até muito simples e não requisita ‘criar planos mirabolantes’. Até porque, a vida em comunidade exige determinadas ‘posturas’, certos compromissos. E quem topa viver aqui, ah, sabe muito bem quais regras deve seguir. De mais a mais, essa guinada que a vida deu não é culpa de ninguém. No caso do Chau, vejam vocês, foi ele que escolheu viver assim… Antes disso tudo vir à tona, devemos reconhecer, ele era um bem-comportado professor de química, que dava quarenta aulas por semana em cinco escolas diferentes. Mesmo assim, o pobre coitado vivia endividado, encalacrado até o pescoço… Cheio de empréstimos para pagar!
Mas não estou aqui ‘chorando pitangas’. É da vida, seu moço! O diabo é que a gente não pode relaxar um minuto sequer. E foi o que na verdade aconteceu. Eu conto a vocês.
Depois daquele último assalto ao Banco Boavista, ali no começo do Estácio, ele jurou que iria dar um tempo. Afinal de contas, o dinheiro arrecadado foi muito bom: mais de duzentos mil cruzeiros! No entanto, os ‘filhos da puta’ divulgaram que os assaltantes levaram mais de quinhentos mil cruzeiros. Miseráveis! Eles se aproveitam de tudo! Até do roubo alheio, vejam vocês… Seguramente, algum gerente pilantra aproveitou para tirar a ‘casquinha’ dele!!
Depois do assalto, eu me encontrei com o Chau perto da pedreira, seu local preferido. É que lá de cima ele podia controlar todo o movimento do morro. Foi quando ele me mostrou os contracheques dos salários. Céus! Somados, não chegavam aos oitocentos cruzeiros e só de empréstimo, minha gente, havia mais de trezentas pratas. Talvez, por isso, ele fosse tão revoltado com o ‘sistema’, uma vez que os donos das escolas, estes sim, iam todos os anos para a Europa passar as férias. E ele, na merda, nunca viajou para além de Muriqui…
Sim. Mas eu estava contando sobre o cerco que eles fizeram. O que posso dizer é que eram mais de dez ‘camburões’ nas imediações do São Carlos. Até aí, tudo bem: nós já estávamos acostumados e sempre tivemos ‘sangue-frio’. Não nos impressionávamos com aquele ‘aparato’ todo. O que não contávamos, porém, era com a ‘deduragem’ de antigos parceiros. E o desgraçado do ‘Pará’ nunca inspirou confiança na rapaziada…
Os primeiros tiros vieram da região da curva da pedreira. Nós nem revidamos, pois não queríamos confirmar a nossa localização para os ‘meganhas’. Passava um pequeno intervalo de tempo e, a seguir, já se ouvia outra série de tiros. Foi quando o Chau cometeu o grande erro. Resolveu pular o muro e ir para a rua de trás em busca de um melhor plano de fuga. Contudo, veio a rajada certeira e duas ou três balas atingiram o peito dele. Caiu do muro, já com o olhar perdido…
Pode até ser que ele estivesse pensando na mãe e na tristeza que ela iria sentir. Ou, quem sabe, lembrasse de Belinha e dos sonhos do casamento nunca realizado?! O certo é que ele só teve tempo de ouvir os últimos versos de Luiz Melodia, vindos de algum lugar: “O pôr do sol / vai renovar, brilhar de novo o seu sorriso / E libertar / da areia preta e do arco-íris cor de sangue, / cor de sangue, / cor de sangue …”
Imagem: o velho morro do São Carlos, no Estácio.