HISTÓRIAS NÃO CONTADAS

Nem bem ele terminou a palestra que veio dar no SESC-Cacupé, aqui de Florianópolis, em agosto de 2013, já se via a longa fila de admiradores para os cumprimentos e autógrafos. E Ariano, sempre paciente, atendeu a todos com a habitual gentileza nordestina. Além do tímido sorriso, ele fazia questão de agradecer a presença na palestra. Isso rendeu mais de uma hora e a fome já batia fundo nele, tenho certeza. Saímos dali e fomos para a minha casa no Rio Vermelho, que é um bairro quase rural, distante mais de 30 km do centro da cidade. Ao entrarmos na garagem, minha esposa veio abrir a porta do carro para Ariano e o abraçou com extrema alegria. Anunciou que o almoço sairia em cinco minutos e que bastaria que lavassem as mãos e se sentassem na sala de jantar.

Como eu previra, Ariano confirmou que adorava camarão. Assim, iria experimentar o bobó feito pela minha mulher. Céus! Eu nunca vi o homem tão feliz como naquele dia, meus amigos. E após o almoço, ele se refestelou na rede da sala e, aproveitando o silêncio, tirou uma ‘pestana’ de meia hora.

Ao acordar, passeou pelo jardim, observando as árvores e o canto dos pássaros. Disse-me que não trocaria Recife por Florianópolis por dois motivos: primeiro pelo nome da cidade, que era indevido, pois homenageia um ‘cabra tirano’. E depois, por causa do frio que faz no sul, do qual foge feito ‘cão ressabiado’.

Fomos para a varanda da frente e nos acomodamos nas espreguiçadeiras. Eu, ele e minha mulher. Foi quando eu lembrei do ‘causo’ que contou na palestra. Segundo ele, toda cidade pequena que visita tem o ‘maluco-beleza’ bastante conhecido do povo. Numa dessas cidades, Ariano percebeu que havia um homem com o ouvido encostado na parede do muro. Vez por outra a criatura tirava e voltava a pôr o ouvido no muro. Foi quando o escritor se aproximou, sem nada dizer, e encostou também o ouvido no muro, na esperança de alguma ‘revelação’. Passados alguns instantes, virou-se para o cidadão e comentou: “não estou ouvindo nada!” Prontamente, o homem respondeu: “Pois é. Está assim desde ontem!”

Ele sorriu com a lembrança e declarou que sente uma enorme identificação com os doidos. Isso porque, tanto os doidos quanto os escritores veem o mundo por uma ótica original, particular. Ao ouvir o seu argumento, acabei concordando com ele. De fato, ambos experimentam sensações diferentes, mas com semelhante olhar alternativo.

Passamos algumas horas proseando a valer e eu nunca mais esquecerei o jeito dele, quando calmamente anunciou: “Carlos, meu amigo, não quero que se assuste… mas o seu filho Gabriel acaba de subir no telhado!”

Já acostumados a isso, eu e minha mulher demos uma longa gargalhada. É que já imaginávamos que o inquieto Gabriel pudesse ‘aprontar alguma’ para cima de Ariano Suassuna!

Pelo sim ou pelo não, eu posso imaginar que algum leitor desconfiado queira me indagar: “Ô, Carlos… isso tudo realmente aconteceu ou é conversa fiada?!”

E eu, minha gente, apenas respondo:- “Não sei. Só sei que foi assim!”

As Criaturas da Vida

Ontem, eu enviei uma foto para minha irmã mais velha, já que estamos há mais de um ano sem nos ver. E ela, com muita gentileza, me respondeu: “Carlinhos, o tempo tem sido generoso contigo. Novinho em folha!”

Pois é. Foi somente aí que eu me dei conta que a vida, de fato, tem sido bastante generosa comigo. Mas, não por causa da aparência, muito embora a genética esteja sendo ‘cúmplice’, aos quase 70 anos. Na verdade, a generosidade tem sido a ‘sorte grande’ de encontrar no caminho um sem-número de criaturas incríveis. Dessas que deixam marcas (ou retiram!) na alma da gente. Vem daí a minha gratidão a todos elas por esse ‘presente’ especial…

A FEIJOADA DO “PAIXÃO”

Há quem acredite que o sujeito mais inventivo desse mundo é o ‘pobre’. E que isso não se deve pelo talento inato e sim por conta da necessidade. Céus… Pode isso, Arnaldo?! Sei não. Talvez, por força das circunstâncias, desde cedo o pobre se vê obrigado a improvisar tudo na sua vida. E por conta disso, ele se torna capaz de desenvolver e até mesmo determinar o rumo das coisas… Mas, e agora, José?!

A bem da verdade, eu não estou convencido disso. No entanto, eu reconheço que tais aspectos são capazes de influir na trajetória de uma criatura. Isto porque, quando se nasce em berço ‘nada esplêndido’, convenhamos, a gente é obrigado a descobrir onde ficam os atalhos, não acham? E isso, de um jeito ou de outro, acaba desenvolvendo essa capacidade mais determinada, mais focada na realidade da vida. Lembro até que na minha infância, relativamente pobre, eu fui capaz de aprender certos ‘truques e artimanhas’, que para muitos colegas não tinham a menor importância. Hoje, sim, eu identifico as ‘vantagens’ que levei ao exercitar a minha criatividade para dar conta de situações. Lá, isso sim!

Aliás, foi no início da fase adulta que eu comecei a ver a cor do dinheiro. Eu tinha 22 anos de idade e havia me tornado professor de cursinho pré-vestibular. O meu primeiro salário, caramba, foi de dois mil cruzeiros. Podia não ser muito, mas, comparado aos outros professores do cursinho, um ‘pé-rapado’ como eu, caramba, parecia festa no arraial. E foi com esse dinheiro que eu comprei o primeiro carro… opa, melhor dizendo, o primeiro ‘fusca’.

Contudo, como um bom ‘retirante’ nordestino, a gente não perde a noção de humildade e tampouco ‘esbanja’ dinheiro à toa. Afinal, nunca se sabe o dia de amanhã, não é verdade? Quem sabe, por isso, eu passei a dar valor ao meu suado dinheirinho? Não aceitava ser passado para trás e nem cair no canto da sereia, sabe como é?

Foi quando eu descobri, perto de minha casa, um restaurante que praticava ‘preços módicos’. Sendo que, aos sábados, havia a tradicional feijoada, bem ao estilo mineiro. Daí, eu chamei o Carlinhos, meu xará, para vir almoçar comigo naquele restaurante. O combinado era que após a praia, iríamos comer a bendita feijoada, descansar um pedacinho e depois partirmos para o Maracanã para assistirmos ao grande Fla-Flu decisivo!

Dito e feito. Sentamos na única mesa disponível do restaurante, bem no canto. Conferimos o cardápio e, então, Carlinhos declarou: “Caracas, feijoada completa por ‘sete reais’! Não dá para acreditar, xará…”

Então, pedimos uma cerveja e os copos bem gelados. No entanto, os copos eram de geleia de mocotó e a cerveja não veio tão gelada assim. Paciência. O principal era comida, já que estávamos famintos. Carlinhos, bem animado, só falava do preço baixo. Foi quando chegaram as cumbucas e travessas: uma de arroz, uma de farofa, de couve e a de feijão.

– Porra, cadê a carne seca e o paio, perguntou Carlinhos.

– Por sete reais, convenhamos, dá para aceitar… respondi.

– E o torresmo, não tem também?!

– Oh, Carlinhos, o importante é o sabor… e a economia que faremos para ir ao Maraca, retruquei sem muita convicção.

– Mas está uma merda isso aqui, xará… O feijão é só caldo, não tem caroço, não tem linguiça, paio e o escambau… Além disso, esse garçom, o “Paixão”, é um cara de pau, isso sim!

Pois é. Só sei que saímos dali com a certeza de que tinha sido uma tremenda furada. E que somente o cachorro-quente do Maracanã poderia salvar a nossa persistente fome…

É tal negócio, meus amigos: você pode até deixar de ser pobre, mas a pobreza não sai de você! Fazer o quê?!

PS. O restaurante não era lá um primor… Mas está igualzinho!

“Galeto ao Primo Canto”

Foram muitas as pessoas que tiveram especial importância em minha infância e adolescência. De certo modo, isso comprova o quanto eu fui sortudo nessa vida, uma vez que outras criaturas não tiveram oportunidades semelhantes. Vem daí, talvez, o meu gosto por amizades sinceras, dessas que marcam a trajetória da gente. Amigos de verdade!

Orlando, o Cuca, foi um desses casos especiais, pois bem antes de se casar com minha irmã, ele já nutria simpatia por mim. Era um descendente de família italiana, calabreses de quatro costados. E pela tradição deles, meus amigos, ‘lealdade’ é algo irrenunciável, algo para se orgulhar feito uma condecoração de valor.

O mais interessante é que aquela família ‘calabresa’ era composta por muitos irmãos: quatro homens e uma mulher. E todos eles apresentavam como traço familiar o semblante carrancudo, herança do velho patriarca. Nessa época, eu tinha pouco mais de dez anos de idade e, devo reconhecer, morria de medo quando encontrava alguém daquela família pelo caminho. A exceção era Orlando, que era o caçula e o mais simpático da família. Orlando sempre me tratou com um carinho pra lá de especial. Quem sabe, ele já antevisse o grau de parentesco que teria comigo?!

O que sei dizer é que Orlando pertencia a uma família rica, muito rica mesmo para os padrões da época e do bairro. E os irmãos dele faziam questão de viver ‘abastadamente’, com carros de luxo, roupas caras e tudo aquilo que alguém como eu jamais teria acesso. Afinal, nossa família era de classe média baixa, embora meu pai tivesse um bom emprego. É que nós éramos oito: seis filhos e meu pai e minha mãe. Com isso, por melhor que fosse o emprego do pai, ainda assim, existiam muitas bocas para alimentar… Tempos difíceis!

Eu nunca soube avaliar se Orlando fazia questão de nos presentear com toda sorte de ‘mimos’ para compensar o nosso sufoco ou se por outro motivo. Pouco importa. O fato é que ele sempre nos pareceu sincero e autêntico. Além disso, ‘gato escaldado’ não renega peixe. Só que, no nosso caso, o ‘peixe’ era o galeto do “Cantinho Baiano”, que ficava ali na Rua Pareto, no coração da Tijuca. Meu Deus do Céu! Quando ele chegava lá em casa e nos convidava para comermos o tal do “Galeto ao Primo Canto”, ah! minha gente, era uma verdadeira festa. Ou melhor: um legítimo banquete para estômagos tão sedentos.

Ao me lembrar desses episódios, confesso: imediatamente, eu senti saudades do Orlando. Sim! Que criatura boa foi aquele sujeito. E o que eu posso assegurar é que Orlando deixou ‘gravado’ em minha memória afetiva esse ‘desejo’ de retribuir. Retribuir ao meu filho e ao meu neto o maravilhoso gosto pelos “presentes”, sejam eles quais forem. Algo para vestir ou comer. Algo para ler ou observar. O importante é que consigam usufruir com o mesmo gosto que um bom chocolate é capaz de oferecer. E que possam ‘acalentar’ as nossas carências e nos propiciar, ainda que por alguns instantes, sentir o desejado ‘nirvana’…

Hoje, meus amigos, eu percebo que o prazer não tem preço e nem etiqueta de grife. Por certo, ele advém da nossa acuidade de sentir gostos, visões e sensações. Da nossa capacidade de resgatar antigos episódios e dar a eles novas oportunidades. No fundo, se pensarmos bem, veremos que a vida é bastante generosa com todos. Porquanto ela disponibiliza a cada criatura a possibilidade de bem cuidar da memória. Até porque, no fim das contas, é o bem mais precioso que podemos guardar, não acham?!

Abençoado seja, meu querido Orlando!

PS. Era nessa esquina que ficava o “Cantinho Baiano”: um lugar que eu jamais esquecerei…

“O MUNDO É UM MOINHO”

(CARTA A ZAMIRA)

É quase certo que você, Zamira (personagem de Labina Mitevska), nunca tenha ouvido falar do nosso querido mestre Cartola. Por isso mesmo, não teve a felicidade de conhecer os maravilhosos versos do grande sambista e poeta. Foi uma pena, amiga, porquanto você perdeu a oportunidade de se emocionar com essa belíssima canção:

“Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora da partida / Sem saber mesmo o rumo que irás tomar / Preste atenção, querida / Embora saiba que estás resolvida. / Em cada esquina cai um pouco a tua vida / E em pouco tempo não serás mais o que és. / Ouça-me bem, amor / Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos / Vai reduzir as ilusões a pó…”

Pois é. Sem dúvida alguma, foi uma lástima você não ter ouvido esses versos. Saiba, então, Zamira: Cartola compôs essa música para demover o desejo da filha de sair de casa precocemente. E ele conseguiu! Se você tivesse sido acalentada por essa melodia, quem sabe pudesse compreender e até perdoar o duro destino que a vida estava a lhe reservar? No entanto, a dor que Cartola sentiu não pode ser comparada à sua. Lá, isso não. Ainda que toda dor seja triste, pois dor é sempre dor, o certo é que o seu infortúnio bateu mais fundo. Como prova, basta assistir ao melancólico filme e perceberemos que esta dor sempre esteve presente em sua vida. Impiedosamente, é verdade. Presente, também, no destino das tantas vítimas de guerras, como a do seu sofrido país. Convenhamos, tudo isso serve apenas para denunciar o lado mais obscuro da natureza humana: o sofrimento. E não há nada mais sombrio do que isso, esteja certa!

O que posso dizer, minha menina, é que até mesmo os poetas se sentem impotentes diante da intolerância, da injustiça e da capacidade de destruição que há no homem. Até parece uma ‘vocação’ inata, não é verdade? Você talvez pudesse indagar com rancor: o que caberia a nós – pobres mortais – fazer diante de tudo isso? O que é preciso?

Olha, Zamira, eis aí uma questão antiga. E a despeito de tudo, ela ‘ainda’ nos aflige de forma insidiosa. Meu Deus, até quando?!

Se observarmos bem, perceberemos que o homem, desde que começou a habitar este controvertido planeta, desenvolveu uma destreza crescente. É bem verdade que, por vezes, tal capacidade serviu para a sua própria sobrevivência. Contudo, temos que reconhecer que na maioria das vezes o que falou mais alto foi o lado destrutivo e predador de nossa raça. Sim! Que infortúnio!

É sabido, também, que o ‘homem’ é portador de fortes instintos. Ao longo da sua passagem pela história da civilização, o homem empreendeu práticas que têm variado de acordo com as necessidades atreladas. Até aí, tudo bem. Afinal, foram muitos os momentos vividos por ele. Momentos de glórias e conquistas. Porém, por outro lado, nós tivemos momentos vergonhosos, Zamira. De pura insanidade. E não há como esconder isso… lamentavelmente.

Nos primórdios da era humana, por conta da seleção natural, nós fomos impelidos a desenvolver diversas ‘autodefesas’. Algumas delas foram imprescindíveis à manutenção do “homo sapiens”. Porquanto as condições eram difíceis e, sendo assim, somente os ‘mais fortes’ conseguiriam lidar com as adversidades.

Centenas de anos se passaram para que o homem criasse o fogo e pudesse se aquecer. Dessa forma, mantinha-se a salvo das intempéries do clima e das possíveis ameaças. Logo a seguir, ele experimentou as suas primeiras habilidades manuais, confeccionando os instrumentos de caça. Foram bens extraordinários, sem dúvida, que favoreceram a alimentação e o vestuário. Propiciavam, também, mais oportunidades na formação das tribos, uma vez que a caça coletiva ensejava maior êxito. E com esse espírito gregário assumido, o homem pôde se locomover e ocupar diferentes regiões do planeta. Assim, surgiram os ‘amigos’. O diabo é que na esteira da disputa pela caça vieram, igualmente, os “inimigos”! É que no bojo das lutas por alimento (e mulheres) surgiu a ‘famigerada’ ganância. Como consequência, criou-se o gosto pela dominação e diversos conflitos foram estabelecidos. Tribos ‘irmãs’ tentando dominar os vizinhos. A partir daí, nunca mais cessaram os litígios. Nunca mais…

Até hoje nós estamos no mesmo ponto, apesar dos progressos alcançados em outras áreas. Desafortunadamente, nós empreendemos uma permanente luta para dominar o outro. Lutamos para subjugar o suposto oponente. Estupidamente, lutamos… Contra quem? Qualquer um! Contra o quê? Não importa! Em prol de quê? Não sabemos! Por quanto tempo? Só Deus sabe!

Ah, Zamira, você não sabe como dói acompanhar à sua história mostrada em um filme, mesmo que ela seja contada de modo belo e impecável. É que, irônica e cruelmente, a sua história denuncia as nossas ‘doenças’, revelando as atávicas dificuldades dos homens. Dificuldades essas que nenhuma diferença étnica pode justificar. Ou que religião alguma consegue atinar, porquanto está no nosso interior.

Sim, minha pobre criança, ao que tudo indica, nós introjetamos de tal maneira àquela antiga destreza, herdada dos nossos ancestrais, que não mais conseguimos nos livrar dela. Céus, quanta ironia!

Apesar disso, devo confessar, eu sou um otimista ‘incorrigível’. Sim, porquanto eu continuo acreditando no homem. Acredito porque percebo que a sua história consegue, como tantas outras, comover muitas criaturas. Então, é sinal de que há esperança. É sinal de que não morreu, de todo, o lado humano de nossa raça. Talvez, ainda tenhamos que pagar com muitas vidas, como em seu país, para descobrirmos a nossa real natureza e vocação. Ah, companheira… Decerto há um outro lado em nossa alma que não é apenas destruidor, e nós já demos provas disso. Deve haver, seguramente, mais solidariedade em nossos corações do que supõe a insensibilidade de muitos. Talvez ela esteja escondida em algum lugar pouco explorado por nós. Quem sabe, estejamos bem próximo de revelar o nosso lado generoso?! O que sei dizer é que é preciso acreditar nisso. Do contrário, tudo aqui perderia o sentido. Perderia, também, a importância e a razão da nossa existência.

Por tudo isso, eu quero deixar aqui um beijo bem carinhoso para você, Zamira. E se possível for, pedir-lhe que perdoe a nossa recorrente insanidade!

Bem, meus prezados leitores, desculpem-me tê-los afastado da conversa que tive com a menina Zamira. Emocionado, eu devo declarar: essa conversa era urgente e necessária, além de muito pessoal. No fundo, há tempos eu me devia esta conversa. Agora, torço apenas para que tenham sido tolerantes comigo e entendido o momento especial.

Voltando ao nosso encontro mensal, o filme em questão é “Antes da chuva”, dirigido por Milcho Manchevski e muito ajudado pelos talentosos Rade Serbedzija, Labina Mitevska, Katrin Cartlidge e Grégoire Colin.

Belíssimo. Comovente. Humano. Corajoso. Sei lá mais o quê!

São três histórias de amor que se cruzam, em meio à guerra fratricida na Macedônia. “Palavras” é o título do primeiro episódio, que descreve a dor de Zamira e do jovem monge Kiril (personagem de Grégoire Colin). Em “Rostos”, o segundo episódio, surge o ‘fotógrafo de guerra’, Aleksandar (personagem de Rade Serbedzija). Envolvido numa difícil relação amorosa em Londres, ele não consegue permanecer distante e sofre com os duros acontecimentos desenrolados em seu país. “Imagens” é o terceiro episódio, que tem o pano de fundo no retorno de Aleksandar à sua terra natal, a Macedônia. Ironicamente, neste último episódio, os caminhos de Aleksandar se cruzam com os de Zamira e Kiril, desenhando de forma impiedosa a intolerância presente nos conflitos entre macedônios ortodoxos e muçulmanos albaneses. O retrato da dignidade daquela gente é, enfim, aviltado e revelado…

Sim, meus amigos, “Antes da chuva” é um filme impiedoso. Desafiador. E ao mesmo tempo, delicado. Um filme produzido com a nítida intenção de ‘impressionar’. E ele consegue!

Ainda bem que podemos fazer pequenas expiações enquanto o mundo não se ajuíza. Sorte a nossa que tivemos o querido Cartola para nos consolar e ainda temos, afortunadamente, o poeta Nei Duclós para nos dizer sem medo:

“Estamos na mesma fogueira / na mesma lenha / usando a mesma coleira / pulando com a mesma raiva / sofrendo a mesma seca / plantando a mesma semente / esperando com a mesma demência / que ela cresça…”

A PROVA FINAL

Quando se é pequeno, pequeno mesmo, há um sem-número de provas que nós somos obrigados a prestar. Muitas delas, devemos reconhecer, são complicadas, difíceis ou mesmo indevidas. Por vezes, até humilhantes elas são. Mas, calma aí que eu explico.

O fato é que para fazer parte de uma ‘turma’ de bairro, convenhamos, são incontáveis as provas a que somos submetidos. E elas vão da coragem de enfrentar o cão brabo para reaver a bola de futebol ao perigo de subir no prédio vazio, ainda em construção, para soltar pipa na cobertura. Pois é. Tudo isso eu tive que encarar com coragem e determinação, minha gente. É bem da verdade que, no meu caso, foi mais determinação do que coragem!

O pior de tudo é que esses ciclos de ‘provações’ parecem não ter fim, uma vez que emendam um com outro, conforme a nossa idade vai avançando. Se aos dez anos de idade foi difícil dar o primeiro ‘trago’ naquele cigarro, medonho de forte, o “Caporal Amarelinho”, imaginem o frio na barriga que senti quando, aos treze anos, tomei o primeiro gole de o “Conhaque de Alcatrão de São João da Barra”?!

Bem… paciência! Fazer o quê?! Afinal, isso era parte integrante do percurso de qualquer moleque da zona norte do Rio de Janeiro, nos anos 60 e 70. E, apesar de magrelo, até que eu dava conta desses ‘vestibulares’ da vida. Também é verdade que ‘algumas vezes’ eu procurei me esquivar de determinadas empreitadas… Mas, quem poderia saltar de um bonde em movimento, ainda por cima de costas?! Céus, isso era missão para maluco e maluco eu não era!

Aí, veio a fase dos 15 e 16 anos e os desafios se renovaram. Nessa época, a ordem do dia ficava por conta dos bailes de carnaval. E o ‘objeto do desejo’, sem dúvida, era o baile do Clube Municipal, que ficava ali na Haddock Lobo, na Tijuca. Ah, minha gente, todos nós sonhávamos o ano inteiro com as lindas moças que frequentavam aquele clube. E, como não éramos sócios, o jeito era apelar para o alto muro que existia na lateral. O esquema era entrar pela rua Maestro Villa Lobos, que ficava ao lado esquerdo do clube. Logo no início, havia uma vila de antigas casas. Daí, nós tínhamos que checar qual delas estava vazia ou sem os moradores, uma vez que muita gente preferia viajar durante o carnaval.

Feita a escolha, a gente começava a escalada, procurando não fazer barulho e chamar a atenção dos ‘seguranças’ do clube. O diabo era sair ‘ileso’ daquela cerca de arame farpado. Por ser alta, tínhamos que passar pelo meio dos fios e, muitas vezes, a nossa roupa ficava presa e acabava rasgando, o que ‘denunciava’ a nossa chegada triunfal.

Mas, como eu já disse: por ser magrelo, isso me dava alguma vantagem, uma vez que eu conseguia passar por entre os fios mais rapidamente. Já o coitado do Roberto, gordo que só vendo, sempre era “apreendido” pelos seguranças. Tadinho! Passou a juventude toda sem ir aos bailes…

Naquele ano de 1966, eu fui o primeiro a pular para dentro do clube. A seguir, vieram Edinho e Luiz Henrique. E na sequência, vinham Isaac e o Waltinho. No entanto, como dizem por aí, “Deus não dá asas à cobra”. Nem bem o Waltinho pulou no jardim lateral, apareceram mais de cinco seguranças do clube e três PMs. Fomos cercados e colocados contra a parede do muro. Foi triste, meus amigos. Passar a primeira noite de carnaval das dependências da 18ª Delegacia de Polícia, na Praça da Bandeira, não é mole. Ainda por cima, ter que aturar os comissários de plantão, zombando da gente o tempo todo e ‘ameaçando’ de nos colocar nas celas, junto com os ‘bandidões da pesada’… Que sufoco!

MUITO ALÉM DA PAIXÃO

Muito já foi dito sobre o amor. Sei bem. Pode até ser que o tema não careça mais abordagem. Mas, convenhamos: há amores de todos os tipos, minha gente!Não obstante toda forma de amor ser bela e comovente, no fundo, sempre haverá uma ‘especial’. Marcante. Inusitada. Isso porque a capacidade de o homem estabelecer diferentes afetos parece ser inesgotável. Ainda bem, pois assim, quando menos se espera, eis que surge uma outra maneira de ‘ver’ e ‘viver’ o amor. Quem sabe não resida aí a grande beleza dessa vida? Sim, na incrível diversidade do amor!A bem da verdade, devemos reconhecer, o uso da palavra amor acabou sendo banalizado. Lamentavelmente. Porquanto a frequência com que a palavra é utilizada, muitas vezes torna o amor um aparente despropósito. Seja pela fugacidade com que ele, repentinamente, vem e se vai. Seja pela ausência de compromisso com o real sentimento presente, uma vez que seguidamente se confunde amor com ‘posse’. O que sei dizer, amigos, é que parece que estamos tratando o amor de forma indevida. Descuidada. Confusa, até.É sabido que diversas gerações atravessaram fortes correntezas em busca da cara-metade. Por conta disso, desafios tiveram que ser vencidos com uma coragem ímpar. E o que se viu, afortunadamente, é que a determinação sempre foi a mola propulsora dos amantes. Quem sabe seja ela a única aliada da paixão?!Em nome do ‘amor’, impérios foram sacrificados, revoluções foram deflagradas e muitos mártires surgiram na história da humanidade. Algumas vezes, é verdade, estiveram escondidos em ideologias ou ‘utopias’ sem fronteiras. Não importa. O certo é os exemplos estão aí: construídos com profunda garra e esparramados pelos caminhos do universo. São contundentes dramas que lutaram por um final feliz, nem sempre logrado. Quem não se lembra, por exemplo, do velho “Iona” do conto Kusmá Iônitch, de Tchecov? Depois de contar a sua tristeza pela morte do filho a várias pessoas, sem resultado, passou a falar com a sua velha égua, única companheira de todas as horas: “Assim é, meu irmão, minha eguinha… Não existe mais Kusmá Iônitch. Foi-se para o outro mundo… Morreu assim, por nada… Dá pena, não é verdade?”Ou no intenso e absurdo monólogo do Coronel com o seu galo, na novela de Gabriel Garcia Márquez (Ninguém escreve ao Coronel). Ao se ver acuado pela fome e pela falta de perspectiva, o Coronel encontra no galo a força necessária para permanecer lutando: “A vida é dura, camarada!”, sentenciou o exaurido homem ao galo.Por certo, eu ainda poderia citar dezenas de outros comoventes exemplos de amor. Só serviriam para atestar a grandeza desse sentimento que, por vezes, é cego. Outras tantas, surdo. E até mudo já foi. Bem mais do que isso, o amor já foi herói e foi bandido. Foi perseguido e celebrado. Ultrajado e invejado. Ah, o amor… Essa fantástica caixinha de surpresas que arrebata espíritos desavisados. Bendito, seja!É interessante perceber que o mito do amor tem sido mais forte do que a imaginação humana. E até mesmo Bernard Shaw, um mago na criação, preferiu homenageá-lo às avessas. Em seu antológico romance, Pigmalião, ele recria livremente o mito – o lendário rei de Chipre que se apaixona por uma estátua de marfim que ele próprio esculpira e que a Deusa do Amor acaba por dar vida. Pigmalião Higgins, no fundo, idealiza a própria mãe em vez de Eliza Doolittle. Esta, por sua vez, vê-se aprisionada diante da escolha: casar-se com o atraente Higgins para quem passaria a vida toda a procurar os chinelos ou com o repugnante Freddy que, bem ao contrário, a vida toda estaria a lhe procurar os chinelos? A escolha foi dura e muitas complicações se seguiram…Vimos, também, quando o velho Santiago, o pescador solitário de Hemingway (O velho e o mar) – que durante 84 dias não apanhara um só peixe – novamente põe-se no mar. O que o velho carregava no peito, meus amigos, era mais do que coragem. Dentro dele e daquela solitária canoa, tinha amor. Muito amor! Sim, somente um homem com seus sonhos e suas tristezas profundas pode amar com tanta ternura um peixe. E, por conta desse amor, ele empreende bem mais do que uma luta de sobrevivência. Ao travar a longa batalha, o pescador jamais perdeu o respeito ao peixe. “Vou pôr os dois remos cruzados na proa e o peixe terá que abrandar a velocidade durante a noite”, disse o velho. “Ele deve querer descansar e eu também!”Tudo isso me faz crer que o verdadeiro amor é assim mesmo: respeitoso, ainda que sem cerimônias e indulgente, mas sem se culpar. Por certo, em nome da preservação, o amor é até capaz de ferir. No entanto, o perigo que sempre rondou as nossas casas está nos excessos. É que, por vezes, a ‘paixão’ é traiçoeira e manhosa. E não poupa ninguém! Basta olhar para os lados e veremos: quando estamos distraídos e somos tomados pelo inadvertido sentimento, tudo pode ocorrer. E a dor, inescrupulosa parceira da paixão, acaba mostrando as garras e, de alguma maneira, fazendo vítimas. É… São os ‘pedágios’ da vida e nada pode ser feito. Tampouco se adquire imunidades quanto a isso.Não, meus amigos, não estou aqui a repudiar a paixão! Muito ao contrário: dela, sempre fui cúmplice e dependente. Raptado por ela? Inúmeras vezes. Arrependido? Jamais! Disposto a mais uma? Sempre!O que posso afirmar, sem medo, é que a grande sabedoria dessa vida talvez consista em aprender a lidar com a paixão. Permitindo que ela nos subverta, sim, mas, atento aos caminhos que trilhamos. Com isso, podemos desenvolver a capacidade necessária para ‘cicatrizar’ antigas feridas. Com sorte, poderemos experimentar no percurso os mais belos dias de nossas vidas.Foi assim que Zhao Di, a inocente camponesa do belíssimo filme, “O caminho para casa”, entregou o seu amor ao professor Luo Changyu. Coisa linda! A relação que ela estabelece com o professor é tocante. Durante todo o filme, a linda história de amor é narrada pelo filho Yusheng. É que ao receber a notícia da morte do pai, Yusheng retorna à sua antiga aldeia e relembra o decantado romance dos pais, enquanto providencia o enterro. E ao narrar a história de amor deles, com orgulho e admiração, Yusheng consegue nos enfeitiçar. Inteiramente. Sem sobra de dúvida, não há criatura alguma nesse mundo que ao final do filme não se sinta melhor, visto que ele nos emociona e nos engrandece. Pudera! Como um bom filme oriental, ele herdou a sabedoria de não ter pressa. Com isso, as cenas se sucedem com uma impressionante placidez. Lindas. Irretocáveis. E amparado em magnífica fotografia, o enredo vai lentamente arrebatando as nossas almas sedentas de humanismo. Principalmente quando aborda o polêmico tema: a morte.Pois é, minha gente. O povo ocidental tem muito que aprender com os orientais no que diz respeito à forma de encarar a morte. Chega a ser comovente o diálogo entre Yusheng e o marceneiro, quando ele diz: “Carregar os mortos é um costume antigo. E nós gritamos com ele no caminho. Sabe o que dizemos? Dizemos que aquele é o caminho para casa. Assim, ele sempre se lembrará do caminho!” Ou então, na própria voz de Yusheng, que após relutar, acaba compreendendo o pedido da mãe e justifica o sacrifício de conduzir o corpo do pai pela longa estrada: “Esta estrada faz parte da história de amor de meu pai e minha mãe: o caminho que vai da cidade até a nossa aldeia. Talvez, por causa da esperança que representava quando ela esperava a volta de meu pai, ela queira percorrê-lo ao lado dele uma última vez…” E ele tinha razão, uma vez que um amor feito aquele merecia qualquer homenagem. Até mesmo sacrifício.Yusheng nos diz mais sobre o amor deles: “Papai me contou que a primeira vez em que visitou minha mãe, ela ficou esperando na porta. Apoiada no batente, parecia uma pintura num quadro: uma imagem que ele jamais esqueceria!” Ou ainda: “Alguém me contou que no dia em que meu pai finalmente voltou, mamãe vestiu o casaco vermelho, o preferido de papai, e ficou esperando por ele no caminho. Desde aquele dia, meu pai nunca mais deixou a minha mãe…”O que sei dizer é que a história de Zhao Di e do professor Luo Changyu não é apenas uma bela história de amor. Bem mais do que isso, ela revela tudo de melhor que fica em nossa volta: amor, paixão, dignidade e respeito. E nada mais tem importância!Zhao Di compreendeu tudo isso quando quis prestar ao marido a derradeira homenagem, reiterando o seu amor em meio a longa caminhada. No fundo, talvez fosse a caminhada para a grande morada espiritual: a imortalidade do amor que viveu.Portanto, só nos resta torcer para que a vida nos ensine a encarar a morte com o mesmo respeito e dignidade que o filme aponta. Quem sabe, poderemos até guardar na memória onde estão os nossos caminhos? E se isso ocorrer ainda em vida, melhor ainda, pois assim evitaremos ouvir os gritos dos que nos amam!