AS HERANÇAS DE CADA UM

É interessante observar como as coisas acontecem em nossas vidas. E, sempre que for possível, é ainda melhor perceber os efeitos e as consequências dessas passagens. Sim! Eu digo isso porque adquiri o hábito de ‘desentranhar’ velhas histórias, acontecimentos que passaram ao largo e não demos a devida importância.

Por sinal, foi com o seu Rodrigo, sargento aposentado da Marinha de Guerra, nos idos dos anos sessenta, que eu descobri essa capacidade de desembaralhar fatos, ‘causos’ e lembranças. É que o seu Rodrigo, apesar da idade avançada, possuía profunda paciência comigo e, assim, ajudou-me a desenvolver o caráter, bem como o meu imaginário. Nossas incontáveis conversas, ao pé da marquise da velha Zamenhof, no Estácio, foram determinantes nas minhas escolhas. Porquanto propiciaram reflexões e acolhimentos aos episódios da vida. Ah, minha gente, de uma coisa eu estou seguro: sempre serei grato aos ensinamentos que seu Rodrigo me oportunizou.

Aliás, por conta disso, de algum modo, eu passei parte da vida tentando entender as heranças que recebi dos ‘Antunes’ e dos ‘Menezes’, responsáveis por minha formação. É o tal negócio: em cada ‘pacote’ herdado, no fundo, há sempre a necessidade de se ‘inventariar’. Cuidadosamente. Para que a nossa cota desse latifúndio seja, de fato, bem-vinda e legitimada, não é mesmo?! Caso contrário, céus, haveremos de carregar, feito bolas de prisioneiros, alguns quilos de indesejáveis ‘presentes’ ou heranças indevidas.

O que posso dizer a vocês, meus amigos, é que esse processo é bastante demorado e, quem sabe, não termine nunca?! Pois é. Até porque, quando acreditamos que um determinado episódio foi encerrado, logo a seguir, percebemos que as memórias envolvidas estão ‘contaminadas’. Por isso mesmo, elas disseminam dúvidas sobre o ‘real’. Paciência! Por sorte, isso é algo que, com o tempo, aprendemos a aceitar: conviver com a dúvida!

É bem verdade que diversas vezes eu constatei, pelas reações de amigos e parentes, que as minhas memórias sofreram influências das minhas emoções. Sim… mas, e daí? São minhas as memórias (ou fantasias, como queiram!). Além do mais, elas não são expostas com o objetivo de ‘denigrir’ a imagem de quem quer que seja. Convenhamos, quando essas ‘lembranças’ são tomadas como textos literários elas adquirem o selo da liberdade de expressão. Sendo assim, as ‘criaturas’ envolvidas nos textos, por ato contínuo, acabam se tornando meros ‘personagens’ a serviço da ficção.

Entretanto, se for o caso, eu pedirei antecipadas desculpas aos que se sentirem referenciados nas minhas histórias. Saibam que eu respeito a todos, sejam amigos, parentes ou mesmo personagens. Enfim, tudo isso me fez lembrar de Cora Coralina. Certa vez, ela nos disse: “Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é decidir.”

( Foto: o meu velho e querido “Canelau” que, ao que tudo indica, apredeu a ‘soletrar o mundo’.)