O ‘FLAGRANTE’

Segundo constava no relato, Canelau tinha pouco mais de dez anos naquela ocasião. Mas no Condomínio Esperanto ele era considerado um menino esperto e bastante inquieto. Aliás, por conta disso, os vizinhos viviam reclamando com o síndico sobre o barulho que Canelau fazia pelos corredores. É que ele não gostava de andar de elevador, preferindo descer pelas escadas pulando os degraus em disparada… Coisa de criança!

Já o Dr. Edgar, este sim, era figurinha carimbada do prédio. Os moradores o conheciam muito bem, uma vez que ‘encrencava’ com tudo e com todos. Sim, minha gente! A fama dele se baseava nas inúmeras queixas contra obras realizadas nos apartamentos, sem o devido ‘alvará técnico’. E frequentemente alguém era ‘intimado’ a comparecer em juízo e responder a alguma demanda judicial. O certo é que o homem, por ser delegado, era temido por quase todos do prédio. Temido e detestado. Dizem até que a acusação feita a Canelau partiu dele. Eis o relato: “No dia 24 de setembro de 1961, durante o período matutino, o jovem morador do apartamento 707 promoveu algazarra nos corredores do prédio, gerando excessivo barulho e incomodando toda a vizinhança. Por se tratar de indivíduo “recalcitrante”, solicito o urgente comparecimento dos responsáveis na 18ª Delegacia Policial para prestar esclarecimentos. Assinado: Delegado Edgar Menezes.”

Pronto. Deu-se início ao primeiro ‘litígio’ naquele condomínio. É que os pais de Canelau não aceitaram a ‘convocação’ e foram interpelar o controvertido delegado. Aí, foi um bate-boca danado no hall de entrada do prédio. E cada morador que passava pelo local aproveitava para dar ‘sua opinião’. Já viram, né?! Formou-se uma tremenda algazarra e foi preciso muita paciência para apaziguar os exaltados ânimos…No entanto, o ‘destino’ muitas vezes é cruel e ‘apronta’ determinadas ironias. Ao menos, foi assim com Canelau. Porquanto ele cresceu, tornou-se adolescente, mas manteve aquela famosa ‘energia’. Só que agora, é verdade, ela se estabelecera nos ‘hormônios’ do jovem púbere. Assim, de quando em quando se ouvia ‘murmúrios’ e respirações ofegantes nas escadas do Edifício Esperanto. Risos e corridas em disparada também aconteciam. Coisa de adolescente! O azar de Canelau, segundo o relato, foi se ‘engraçar’ logo com a filha do delegado… Xi! Muito embora os ‘namoros’ nas escadas fossem de conhecimento velado, por conta dos muitos jovens do prédio, o fato é que até aquela data ninguém desconfiava da filha do ‘carcará’. Ela era uma jovem lindíssima, no auge dos quatorze anos. E entrava e saía do prédio sem dar uma palavra. Super discreta.

No entanto, o destino é impiedoso, minha gente. E a jovem Helena, por sua vez, acabou se rendendo às investidas de Canelau. Sendo assim, muitos beijos e afagos ocorreram naquele ‘esconderijo’ do oitavo andar. Até que, meses depois, o casal de namorados foi surpreendido pelo vizinho da cobertura. Céus! Vocês podem imaginar o alvoroço estabelecido. Para piorar a situação, o delegado havia chegado para almoçar em casa e, por infortúnio, soube do ‘ocorrido’ na portaria do edifício. Imediatamente, ele procurou a esposa para dar ciência acerca do ‘delito’ da filha. Só que a desgraça, muitas vezes, não anda desacompanhada. E o Dr. Edgar soube disso da pior forma possível. Porquanto além da notícia sobre a filha, ele ficou sabendo que sua esposa o traía há tempos com o vizinho de porta, o dono da farmácia local. Descobriu até as dezenas de cartas que eles trocaram durante o tórrido romance. Meu Deus do Céu…

Quanta ironia!

OS NOVOS TEMPOS…

Dizer que foi um ano complicado, cá entre nós, talvez seja exagero. Na verdade, devemos reconhecer: esse ano nem existiu, meus amigos! Ao menos, sob o ponto de vista da ‘normalidade’ da vida. Até porque, é bom que se diga, ficou faltando muita coisa em 2020. Faltou, por exemplo, o velho Maracanã lotado com torcedores. Faltaram as viagens de fins de semana com os amigos. Faltaram os abraços e comemorações e por aí afora…

Em contrapartida, é verdade, sobraram dias e noites nos desconfortáveis sofás assistindo aos filmes. Um atrás do outro, feito maratona. No entanto, para ser justo, eu até fui surpreendido com belíssimas histórias, narradas com talento e beleza. Sim! Sorte a nossa que os ‘contadores de histórias’ estão por aí, espalhados pelos quatro cantos desse alvoroçado mundo de pandemia.

Também é verdade que há muita gente reclamando de 2020 sem ter o devido ‘crédito’. Porquanto, no fundo, são pessoas que passam a vida reclamando dos outros e nada fazem para ‘contribuir’ com a humanidade! Contudo, convenhamos, houve quem arregaçasse as mangas e dedicassem preciosos momentos de suas vidas tentando tornar a vida dos outros mais ‘confortável’. Lá, isso sim! São os verdadeiros ‘anjos’, capazes de aliviarem períodos conturbados como esse que atravessamos. Pode-se dizer que eles foram ‘onipresentes’, uma vez que pudemos observar o esforço empreendido em busca de salvaguardas. De todas as ordens!

Certo mesmo é que a ‘pulsação’ do mundo foi alterada pela COVID. E muitas voltas tivemos que dar para segurarmos a barra da vida. Algo muito difícil para muitas famílias, cuja dor bateu mais fundo. Seja pela perda de algum ente querido, seja pela perda do emprego, extraviado no mar da crise. E para piorar as coisas, ainda tivemos a ‘interdição’ dos abraços. Ah, meus amigos, só agora é que a gente se deu conta da falta que eles nos fazem, não é verdade?

Além de tudo isso, que não é pouco, nós ainda teremos que contabilizar outras perdas. Desafortunadamente. Afinal, são perdas bem mais difíceis de serem percebidas por nós. Perdas que surgiram no ‘distanciamento social’, não apenas aquele imposto pelas autoridades sanitárias. Não! Lamentavelmente, os que me refiro foram originados por nós mesmos, quando deixamos de desejar ‘bom dia’ aos filhos e esposas. Quando não mais cumprimentamos o porteiro do prédio. Ou quando reclamamos daquela fila ‘exclusiva’ para os idosos nos bancos. Pois é. Esse comportamento, creio, é até mais contagioso, mais devastador. Até porque, não há imunidade que estanque essa hemorragia.

Então, o que nos resta a fazer é apelar para ‘São Longuinho’ e pedir de volta a velha e costumeira amizade sincera. Quem sabe, assim, nós possamos recuperar parte da autoestima amassada pela pandemia. E ‘recuperados’, talvez sejamos mais generosos com toda vizinhança, com os parentes distantes, enfim, com vistas ao Ano Novo que se aproxima…

Por conta disso, eu quero desejar o melhor Natal possível para os amigos leitores!