Carlos Holbein Antunes de Menezes

Quando comecei a escrever para revistas, em abril de 2000, fiz-me duas perguntas: o que pretendo com essas crônicas? E a quem eu quero me dirigir?

Na verdade, eu demorei um bom tempo para descobrir as respostas, porquanto eram muitas! Precisei, por exemplo, atingir 73 anos de idade e estar feliz com isso. Ter alcançado 35 anos numa vitoriosa carreira no magistério, onde aprendi bem mais do que ensinei. Talvez, também tenha sido necessário consumar dois casamentos maravilhosos, muito embora sentisse falta do filho que só veio no terceiro casamento… Ainda bem! No entanto, a maior razão para eu escrever é acreditar que tenha algo a dizer para alguém. Sem o quê, convenhamos, nada disso teria sentido!

No fundo, eu creio que o que me move na direção da literatura é a grande oportunidade de fazer as minhas ‘expiações’. Tão somente! Ou seja, enfiar a mão na ‘caixa-preta’ da memória afetiva e retirar de lá o que puder… e souber. Desse modo, ao revisitar antigos episódios, quem sabe eu possa renovar os laços que estão no presente?! O mais importante é convidar o leitor a fazer uma longa “viagem” comigo.

Quando me disponho a escrever, fico imaginando que há nesse “mundo mundo vasto mundo”* alguém que deseja se identificar nas minhas histórias. E dizer: eu também sinto isso! Ou, então, quem sabe, eu apenas queira ouvir de alguém: você me tocou! Seria sinal de que o texto valera a pena!

Nas minhas crônicas há um aspecto bem marcado: opto sempre pela primeira pessoa do singular. Porquanto é mais íntimo e convidativo. Com isso, quebra-se o constrangimento, estabelece-se a tácita cumplicidade e o ‘rapto’ é concedido afinal.

As crônicas pretendem desencadear no leitor alguns desejos. De modo óbvio, o de “embarcar” na história. E logo a seguir, o de refletir sobre o “em volta” dela. Isso porque, as crônicas raramente falam sobre o cinema ou o jazz de forma direta. Muito ao contrário, são os filmes e os discos que pegam carona no texto, como pano de fundo. Ou alavanca.

Os artigos são destinados a um público ávido por informações: às criaturas que ao fazerem uso de uma leitura rápida e instigante possam ter um entretenimento agradável. Como professor, sei bem que a pior coisa que uma pessoa gosta de ouvir é: “você não entende disso”. Sendo assim, sempre tive o cuidado de não ferir ninguém ou me mostrar arrogante. Até porque, convenhamos: o conhecimento é algo para ser repartido, socializado e difundido.  E, sempre que possível, sem cerimônias!

O escritor tem a obrigação de seduzir o leitor. Primeiro para que o leia. Depois, para que tome gosto pela leitura. Mas, acima de tudo, para que se sinta tentado a prosseguir nesse maravilhoso caminho.

Um grande abraço a todos e boa diversão!

(*Carlos Drummond de Andrade: “Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo  mundo vasto mundo, / mais vasto é o meu coração.”)

UMA LONGA CAMINHADA

Já faz um bom tempo que eu frequentei aquela interessante sala de música, lá no apartamento do Rio Comprido, no velho Rio de Janeiro. Lembro até que embora não morasse mais lá, por certo, fazer uma visita ao meu pai e a minha mãe tinha sempre um sabor especial. A começar pelos ‘mimos’ que mamãe reservava para mim. Ah, o que posso dizer é que ela foi a mais doce criatura que eu tive a sorte de conviver. Isto porque, Dona Jarina estava sempre bem-humorada e oferecia a quem chegasse em sua casa um inigualável sorriso de aconchego. Sim! Ver e abraçar a minha mãe era uma dessas coisas da qual nunca se esquece. Porquanto aquele abraço possuía um aspecto mágico, profundamente restaurador para quem recebia. E eu tive a sorte grande de recebê-lo incontáveis vezes. Coisa linda!

Passados os quinze minutos iniciais da visita, dedicados inteiramente a minha mãe, eu me dirigia à sala de música, onde o meu pai estaria envolvido com alguma montagem ou desmontagem de projetos sonoros. Como um experiente ‘cientista’, ele encarnava o velho “Professor Pardal”, que Walt Disney tão bem criara. E como ato contínuo, eu sempre indagava o porquê daquela mudança. Não que isso fosse importante para mim. Mas, certamente, seria para ele! Assim, o meu gesto representava o primeiro sinal de admiração que regaria a longa conversa posterior. Pois é. São os códigos de qualquer relação, pensava eu. E papai admirava isso. Profundamente.

Em contrapartida, ele colocava um disco de jazz para tocar e me convidava para sentar nas confortáveis poltronas da sala de música. Com isso, nós procurávamos relaxar todos os músculos e ideias. A partir daí, ficávamos por conta do sopro intimista de Miles Davis ou de John Coltrane. Muito embora meu pai preferisse ouvir música erudita, ele sabia que o meu gosto musical de maior deleite era o jazz. E novamente os “códigos afetivos” da nossa relação eram seguidos com respeito e reverência. Sempre em favor do outro.

Além disso, havia na mesa ao lado uma garrafa de vinho Guglielmone, o “Velha Capital”. Ele permanecia ali, pacientemente, aguardando a nossa sede de conversas e, quem sabe, ajudasse a soltar represadas conversas? Desse modo, já envoltos pelo ambiente criado, nós dávamos início a prosa do dia. É que papai era um exímio contador de história e de causos, nem sempre muito verídicos. Mas isso, pouco importava. O que valia mesmo era ouvir as suas histórias, que iam das andanças no Partido Comunista aos primórdios das aventuras familiares no sítio do vovô Ezequiel, no distante Ceará. O mais interessante é que tudo aquilo era comemorado com cerimônia e prazer. E eu, por meu turno, embevecido pelo vinho e pela história da família, sempre consentia ao final das nossas conversas. E para minha sorte, foram muitas e proveitosas conversas de pai e filho.

Aliás, devo confessar: dessas lembranças, o que me dói é saber que somente eu testemunhei tais acontecimentos. Considero uma grande injustiça, já que eu gostaria muito que meu filho fosse vivo, à época, para que ele pudesse acompanhar ao nosso lado o que de melhor os “Menezes” conversaram nessa vida… Saudades suas, meu pai!

Meu velho e querido pai, Holbein Menezes, que viveu 100 anos!

O GUARDADOR DE REBANHOS (*)

Tem vezes que a gente se depara com situações que nos parecem profundamente familiares. E desse modo, somos até capazes de acreditar que já conhecíamos ou, pelo menos, já tínhamos visto aquela pessoa ou situação em outro lugar…

Pois é. Isso parece incrível, o verdadeiro “déjà vu”. Mas foi o que me ocorreu quando escutei a voz de António Zambujo. É que ao ouvir, logo de início, ela me soava algo muito próximo. Íntimo até. E mais feliz eu fiquei quando ouvi a canção “Ao sul”. Céus! Zambujo consegue acolher com profunda sensibilidade o solitário violão e, carinhosamente, canta a linda melodia: “Sob as águas desse rio / onde a barca dos sentidos / nunca partiu. / Lá longe / inventei o dia azul / pelo desejo de chegar ao sul…”

Como ato contínuo, devo reconhecer, imediatamente eu me lembrei dos versos de Fernando Pessoa, em “O Guardador de Rebanhos”: “Não tenho ambições nem desejos / Ser poeta não é uma ambição minha / É a minha maneira de estar sozinho.”

O que sei dizer, meus amigos, é que ouvindo o CD, “Outro sentido”, de Antônio Zambujo, eu fui tomado por muitas lembranças de Portugal. Recordações de um tempo que eu já não sabia mais que existiam em minhas memórias. Porquanto eu tinha apenas vinte e cinco anos de idade e conheci, sozinho, aquele maravilhoso país. Sim! Eu perambulei um bocado pelas ruas de Lisboa. Ora fuçando a Livraria Bertrand, na Rua Garret, 72, bem atrás dos Armazéns do Chiado. Ora extasiado pelo passeio nas ruas e becos da Alfama, visitando o Museu do Fado e ouvindo toda sorte de canções de Amália Rodrigues e tantos outros.

“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos… / Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, / Mas porque a amo, e amo-a por isso, / Porque quem ama nunca sabe o que ama / Nem sabe por que ama, nem o que é amar…”

É bem possível que hoje eu tenha recebido a visita do meu avô materno, João Antunes. Ah!, meus amigos, essa foi uma visita especial. Afinal de contas, eu mal conheci o meu avô. Ele faleceu quando eu tinha pouco mais de dois anos de idade. Contudo, em algum ponto do meu DNA ficou gravado o imenso amor que ele tinha por sua terra… e me repassou!

“O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério. / Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é o sol / E a pensar muitas cousas cheias de calor.”

Então, por tudo isso é que nesse ensolarado sábado de frio, após a caminhada matinal pela Beira-mar, eu acabei pegando na estante um disco para ouvir, enquanto me acomodava na rede do escritório. Não por acaso, o disco escolhido foi esse de António Zambujo, intitulado “Outro sentido”. Belíssimo. Comovente! E tem os ingredientes necessários para o deleite de todos: lindas melodias, belas interpretações e um imenso amor ao canto português!

“Mas abre os olhos e vê o sol, / E já não pode pensar em nada, / Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos / De todos os filósofos e de todos os poetas. / A luz do sol não sabe o que faz / E por isso não erra e é comum e boa.”

Assim, como não há nada mais a dizer, eu quero apenas deixar o meu registro de gratidão por esse Portugal que me acolheu tão bem. De quebra, eu presto uma homenagem ao meu avô João Antunes. Decerto, ele plantou nas terras brasileiras a marca de sua brava trajetória. Abençoado seja, meu avô materno!

“Mas se Deus é as flores e as árvores / E os montes e sol e o luar, / Então acredito nele, / Então acredito nele a toda a hora, / E a minha vida é toda uma oração e uma missa, / E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos…”

(*) “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

Fernando Pessoa

Vovô João Antunes

OS SONHOS DE CADA UM

Há quem assegure que por trás da ‘criação’ nada mais há do que paixão. Sim, paixão! Esse doce e lindo sentimento que impulsiona a humanidade, que arrebata espíritos inquietos e, com isso, acaba nos fazendo acreditar em tudo. Por sinal, o que seria do homem sem a paixão? Seria ela uma manifestação de desvio, obsessão ou até mesmo doença? Afinal, como ficamos diante disso? Em outras palavras: onde é o nosso lugar?!

Para os céticos, o que existe é tão somente técnica e conhecimento. Será?! Então, vejamos:

É sabido que o ser humano é capaz de se sensibilizar diante da arte. Mas, arte, convenhamos, é algo subjetivo. Algo que suscita diferentes reações em cada criatura, e depende do momento vivido. É possível que, frente à arte, tenhamos diferentes comportamentos: o que para uns se traduz em desafio, para outros é motivo de certa resistência. O que eu posso dizer é que a arte é capaz de nos transportar. É capaz também de subverter a ordem e até mesmo efetuar significativas transformações. Tudo depende da gente, ou seja, do quanto somos capazes de permitir que ela nos conduza por “mares nunca dantes navegados…”

Quando eu assisti, pela primeira vez, ao belíssimo filme “Cinema Paradiso”, confesso a vocês: fiquei profundamente comovido. Tão emocionado que me senti ‘paralisado’ diante de tamanha beleza. Meu Deus do Céu, como pode um simples mortal produzir tanta poesia em apenas 123 minutos de filme? Como pode alguém ser capaz de fazer o espectador ‘viajar’ na linguagem mais sensível da raça humana: o olhar para dentro?! Talvez alguns insistam na resposta: técnica e conhecimento! E eu refuto: não bastam! Com toda certeza, minha gente, é preciso bem mais do que um bom enquadramento, diálogos impecavelmente produzidos, interpretações corretas e uma trilha sonora comovente para se fazer um filme extraordinário. Pela simples razão de que é preciso tudo isso ‘junto’! E em dose perfeita!

Pois é. De uma coisa eu tenho certeza: no “Cinema Paradiso”, ocorre exatamente assim. É que a nostálgica atmosfera, criada desde os primeiros minutos, sugere sempre um contato íntimo com o espectador. E pelas mãos de Giuseppe Tornatore, diretor do filme, os personagens vão ganhando vida. Vão assumindo o espectro da dor, mas com profunda poesia e delicada cerimônia. Revelando as frustrações presentes em cada um de nós, sim, mas com suavidade e encantamento. O sentimento desencadeado pelo toque de Alfredo na vida de Totó, por exemplo, só pode ser comparado à linguagem materna, que é divina e universal.

De fato, sabemos que o ‘conhecimento’ é o bem mais almejado na vida. Pelo menos, deveria ser, uma vez que representa a busca mais incessante empreendida pelo homem. É algo extraordinário e, de certa forma, constitui o seu verdadeiro objeto de desejo. Também é verdade que, por ele, temos sido capazes de buscar soluções, de criar um sem número de técnicas e, até mesmo, de pagar um bom preço para lográ-lo. Tudo isso para que tenhamos atendido a nossa ânsia de “desenvolvimento”. No entanto, eu falo de paixão. Sim! Aquilo que nos dá a capacidade de sonhar, sonhar e sonhar. E, quem sabe, sonhando, possamos aplacar nossos recalcados desejos de imitar a vida por intermédio da arte?!
No filme em questão, foram muitos os “beijos proibidos” a que Totó não pode assistir na tela do Cinema Paradiso. Como consequência, quando ele se tornou um homem maduro e bem-sucedido, passou a ser extremamente importante ‘recuperar’ aqueles antigos beijos…

Do mesmo modo, não restou a Totó outra escolha senão retornar à sua cidade natal e enterrar os seus mortos. Tudo isso para poder, enfim, recuperar ‘outras vidas’ dentro dele. Afinal, como representante de uma raça dotada de emoção, Totó seguidamente viu-se enredado por doídas lembranças. E ao se ver paralisado por essas insidiosas memórias, ele percebeu que era preciso desatar os muitos ‘nós’ que a vida foi enredando. Ao que tudo indica, ele conseguiu!

Quanto a nós, ‘desavisados náufragos’, quem sabe se um dia poderemos conquistar o conhecimento, sem perder de vista a paixão que nos domina? Sem que viremos às costas ao humanismo em nome do desenvolvimento… Com sorte, talvez possamos dar ao conhecimento novas formas e novos ambientes que atendam às individualidades de cada criatura. Com isso, devolveríamos a quem de direito o extraviado ‘selo de autoria’. Essa mesma autoria que fez Giuseppe Tornatore buscar em Ennio Morricone a trilha sonora perfeita para soltar suavemente o enredo dessa comovente história…

“NAS ASAS DA PANAIR…”

Vejam vocês: foi preciso viver setenta anos para descobrir que essa bela melodia de Elis Regina, de algum modo, sempre esteve ao meu lado. Sim! Ainda que eu não fosse capaz de perceber muitas coisas quando elas ocorreram. Foi uma lástima, à medida que deixei extraviar o entendimento sobre a minha vida. E somente tempos depois é que eu fui me dar conta dos movimentos internos e externos ocorridos à minha revelia… Paciência!

Decerto, eu não culpo ninguém por isso. É da vida. Porquanto os acontecimentos e a história não pedem atestado de antecedentes… Eles simplesmente ‘acontecem’! E sem nos dar explicação alguma. Na realidade, eu é que deveria ter desenvolvido um melhor senso de observação. Ao menos, mais apurado a ponto de ‘acompanhar’ os fatos, os desdobramentos e, principalmente, suas consequências.

Ferreira Gullar, o nosso encantado poeta, foi mais feliz nesse aspecto, pois conseguiu compreender os conflitos que cercavam sua vida. Daí porque pode declarar no poema “Traduzir-se”:

“Uma parte de mim é todo mundo: / outra parte é ninguém: fundo sem fundo. / Uma parte de mim é multidão: / outra parte estranheza e solidão. / Uma parte de mim pesa, pondera: / outra parte delira.”

Pois é. Sorte a dele. Sorte por ter identificado esses ‘dualismos’, tão presentes em cada um de nós, e deles conseguiu tirar proveito. Pudera! No fundo, somos todos sujeitos à semelhantes trajetórias. O que nos diferencia, quando muito, é a capacidade de percepção do que está ao redor… Tão somente!

Ah, é bem verdade que a vida é traiçoeira e, muitas vezes, não perdoa os ‘desavisados’. Lembro que na minha infância distante, o meu avô costuma declarar: “o segredo da vida é nascer burro, criar-se ignorante e morrer de repente.” Céus! Eu confesso que isso me impressionou durante um punhado de anos. Pelo menos, até o dia que eu pude compreender que se tratava muito mais de uma frase de efeito do que uma verdade universal…

Há quem acredite que tudo isso faça parte da nossa seleção natural. Porque no fim das contas, somos nós que devemos desbravar esses labirintos. Fazendo uso das ferramentas que conseguirmos acumular. Ou construir. Mesmo que para isso seja necessário repassar velhas histórias. E, com isso, observá-las mais uma vez, buscando identificar o que foi verdadeiro e o que foi ‘alegoria’. Convenhamos: todos nós temos inúmeros episódios para rever. O jeito, então, é arregaçar as mangas e ir à luta! O resto… bem… o resto é paisagem e, com o tempo, vira até mesmo ‘folclore’.

Elis Regina nos mostrou isso, com cores vivas:

“Descobri que as coisas mudam / E que tudo é pequeno nas asas da Panair… / … O medo em minha vida nasceu muito depois… / Descobri que minha arma / é o que a memória guarda / dos tempos da Panair…”

PARA SEMPRE NA MEMÓRIA

Eu tinha apenas cinco anos de idade e era uma criança franzina, como tantas outras nordestinas. Nem sequer imaginava qual futuro estava reservado para mim. Sabia, ao menos, que o mundo rico e civilizado ficava no sul maravilha (Henfil que o diga!). E que o meu bom e velho Ceará seria, doravante, “apenas um retrato na parede”. Talvez, por não conhecer o poeta Carlos Drummond, eu não atinasse para a dor: a imensa dor que um ‘retrato’ pode conter. E pode, creiam-me… pode!

O mundo, então, girou mais um bocado. Seguiu a roda do seu caminho e me apontou alguns para escolher. Agora, se as minhas escolhas foram boas ou não… aí, são outros quinhentos. O certo é que venho pelejando nessa vida. Tentando fazer o meu melhor. Sabendo que tanto posso errar aqui, quanto ter medos acolá. Aceitando que o destino é algo mágico e individual, por mais coletiva que seja a nossa trajetória.

A verdade é que durante muitos anos eu arrastei, feito bola de prisioneiro, muitas culpas por conta daquela prematura saída do Ceará. Ainda que as culpas fossem indevidas, eu me sentia um ‘traidor’, uma vez que virara às costas ao meu povo, à minha cultura e, dessa forma, estabelecera a minha ‘herança vacante’.

É bem provável que algumas pessoas corram em minha defesa e digam: “isso não é motivo de culpa, Carlos. Quando muito, destino”. É até possível que afirmem que essa viagem não foi exclusividade minha, pois muitos outros retirantes seguiram o mesmo rumo. Cada um com o seu motivo. Cada um com seu legado… E uma diferente ‘sentença’ para cumprir…

Pois é. Eu sempre soube disso. Mesmo assim, devo confessar: tais pensamentos não me redimiam. Ao contrário, doíam, isso sim. Doíam. Intensamente!

Foram necessários incontáveis anos para drenar a dor e aprender como a transformar. Para tanto, eu precisei de muita ajuda e, por sorte, vieram de todos os lados. Vieram das angustiadas sessões de análise com o Alexandre Kahtalian, solidário e competente terapeuta. Vieram das maravilhosas pessoas que fui encontrando pela vida e que, de alguma forma, depositaram generosas esperanças no meu coração. Criaturas que se tornaram verdadeiros irmãos e, ao atravessarem o meu destino, deixaram marcas em minha alma.

Somente a partir daí é que eu comecei a realizar o inventário afetivo. Ainda bem. Porquanto somente assim os episódios começaram a adquirir significado junto ao meu patrimônio afetivo. Convenhamos: não há nada mais belo nessa vida do que dar sentido a ela! Aliás, foi Ingmar Bergman, o extraordinário diretor-cineasta, que disse que “a imaginação tece a sua teia e cria novos desenhos… e novos destinos”.

Por tudo isso, então, eu acredito que a minha inserção nessa latinidade pode ser confirmada no testemunho do Gonzaguinha, em “Caminhos do Coração”. Vale a pena lembrar:

Há muito tempo que eu saí de casa

Há muito tempo que eu caí na estrada

Há muito tempo que eu estou na vida

Foi assim que eu quis, assim eu sou feliz.

Principalmente por poder voltar a todos os lugares aonde já cheguei

Pois lá deixei um prato de comida, um abraço amigo, um canto pra dormir e sonhar.

E aprendi que se depende sempre de tanta muita diferente gente

Toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas…

É tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho por mais que pense estar.

Portanto, se me permitem, eu gostaria de finalizar este texto fazendo algumas saudações. Primeiramente, ao meu querido Ceará, sem o qual a grande ‘América’ pouco me diria. Depois, ao poeta Gonzaguinha que nos deixou esse maravilhoso legado e de alguma forma permitiu essa ‘expiação coletiva’. Saúdo, também, aos irmãos nordestinos, na figura do simpático Ariano Suassuna, que encantadamente acrescentam voz à nossa alma.

Mas saúdo, principalmente, os que se comovem com essas vozes… e as libertam. Como fez o Alexandre Kahtalian!

O SOBE-E-DESCE LADEIRA

Ah, eu queria dizer que hoje acordei com saudades de algumas criaturas especiais. Sim! Pessoas que, de algum modo, marcaram definitivamente a minha trajetória. Aliás, como é bom a gente perceber a importância que essas pessoas tiveram ou ainda têm em nosso percurso. É que, desse modo, as lembranças restauram em nós o desgaste que o tempo provoca. Afinal de contas, o tempo é um esmeril impiedoso e não poupa ninguém. Somente os tolos conseguem acreditar que passarão ilesos às intempéries da roda da vida…

Milton Nascimento e Fernando Brant, por exemplo, foram capazes de compreender esse drama. E registraram isso na belíssima canção, “Conversando no Bar”. Pedindo emprestado o talento de Elis Regina, eles perpetuaram essas lembranças:

“Lá vinha o bonde no sobe-e-desce ladeira

E o motorneiro parava a orquestra um minuto

Para me contar casos da campanha da Itália

E de um tiro que ele não levou

Levei um susto imenso nas asas da Panair

Descobri que as coisas mudam

E que tudo é pequeno nas asas da Panair

E lá vai menino xingando padre e pedra

E lá vai menino lambendo podre delícia

E lá vai menino senhor de todo o fruto

Sem nenhum pecado, sem pavor

O medo em minha vida nasceu muito depois

Descobri que minha arma é

O que a memória guarda dos tempos da Panair

Nada de triste existe que não se esqueça

Alguém insiste e fala ao coração

Tudo de triste existe que não se esquece

Alguém insiste e fere no coração

Nada de novo existe neste planeta

Que não se fale aqui na mesa de bar

E aquela briga e aquela fome de bola

E aquele tango e aquela dama da noite

E aquela mancha e a fala oculta

Que no fundo do quintal morreu

Morria cada dia dos dias que eu vivi

Cerveja que tomo hoje é

Apenas em memória dos tempos da Panair

A primeira Coca-Cola foi

Me lembro bem agora, nas asas da Panair

A maior das maravilhas foi

Voando sobre o mundo nas asas da Panair

Em volta dessa mesa, velhos e moços

Lembrando o que já foi

Em volta dessa mesa, existem outras

Falando tão igual

Em volta dessas mesas, existe a rua

Vivendo seu normal

Em volta dessa rua, uma cidade

Sonhando seus metais

Em volta da cidade…”

Céus! Que letra maravilhosa. Que interpretação pujante de Elis Regina. Sem dúvida, é algo memorável, que deve ser guardado nos escaninhos da memória.

Ao lembrar disso tudo, ao receber a agradável visita dessas magníficas criaturas em minhas recordações, eu me dei conta de que a vida é mágica e deslumbrante. E mais ainda: se desejamos crescer como seres civilizados, então, precisamos estar de bem com as nossas memórias. Para que tenhamos uma ordenação afetiva mais equilibrada e justa. E, quem sabe com isso, possamos deixar algum legado precioso aos nossos descendentes.

Eu não posso assegurar que eu consiga deixar ao meu filho Gabriel algo de muito valor. Mas ficarei muito feliz em saber que deixarei boas histórias para ele fazer uso com propriedade e valia. E se isso realmente acontecer, meus amigos, é sinal de que terá valido a pena atravessar esse grande percurso…

Na foto: Zelândia, Gabriel, João Pedro e o sorvete e eu após o almoço no Mercado de Florianópolis.

O SALVO-CONDUTO

(Para o grande mestre Aldir Blanc)

Uma parte da minha existência eu vivi nas ruas e ladeiras do velho Estácio, no coração do Rio de Janeiro. E foi lá também que eu aprendi a driblar as incertezas desse mundo, em busca de oportunidades e um ‘lugar ao sol’. A encrenca é que nem sempre elas vinham. Por isso, ainda muito novo, eu tive que aprender a soletrar as rimas presentes nos desafios que cercam toda infância. E, com isso, provar que tinha algum valor…

“O menino cresceu entre a ronda e a cana / Correndo nos becos que nem ratazana / Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha / Subindo em pedreira que nem lagartixa…”

O fato é que naquela época o Estácio exigia dos meninos o mais duro ‘vestibular’ que podia haver: a sobrevivência e o êxito. Porquanto eram muitas as provas a que fomos submetidos. Sim! Provas que envolviam coragem e resiliência. Convicção e força de vontade. Quem sabe, até mesmo teimosia?! Afinal, dentre os tantos moleques que disputavam as pelejas, os ‘sobreviventes’ tinham que apresentar ‘algo a mais’ para serem distinguidos naquela multidão.

“Ídolo de poeira, marafo e farelo, / Um deus de bermuda e pé-de-chinelo, / Imperador dos morros, reizinho nagô, / O corpo fechado por babalaôs.”

E assim o tempo foi passando. Enquanto isso, eu procurava crescer. Por dentro e por fora. Procurava seguir o meu rumo de modo digno, para não ‘envergonhar’ ninguém. Para não deixar nenhuma ‘dívida moral’ nas mãos de credores duvidosos. Acreditando, assim, que conseguiria escapar do duro destino que muitos colegas tiveram.

“Grampearam o menino do corpo fechado / E barbarizaram com mais de cem tiros / Treze anos de vida sem misericórdia / E a misericórdia no último tiro.”

A minha sorte, devo reconhecer, é que sempre atraí pessoas do bem. E foram elas as responsáveis pelo meu crescimento e a minha sobrevivência. A começar pelo seu Rodrigo, um velho sargento reformado da Marinha do Brasil, que muitas vezes, debaixo daquela marquise da Zamenhof, teve a paciência de me ensinar a soletrar o mundo. Ah, abençoado seja, seu Rodrigo!

“Iansã trouxe as almas e os vendavais, / Adagas e ventos, trovões e punhais / Oxum-Maré largou suas cobras no chão / Soltou sua trança, quebrou o arco-íris / Omulu trouxe o chumbo e o chocalho de guizos / Lançando a doença pra seus inimigos…”

O que eu posso dizer a vocês é que depois disso, após esse percurso inicial, tudo o mais foi mera consequência. Uma coisa oportunizando a outra. E no meio dessa estrada, eu  aprendendo a ser bancário e ser professor. Aprendendo a ser marido, pai e avô. Céus, como foi boa essa ‘viagem’. Como fui ‘sortudo’ por conhecer no trajeto tantas pessoas maravilhosas. Criaturas que deixaram registros permanentes em minha alma. E essa incrível sensação de que tudo valeu a pena…

Valeu mesmo!

DESENHOS DE GIZ

Outro dia nós estávamos conversando com o nosso filho sobre as perspectivas que se abriram para ele após o término da universidade. Como resposta, Gabriel fez uma longa exposição de motivos, elencando os projetos que tem em mente para realizar. Ouvimos com interesse e atenção. Por conta disso, eu e a mãe dele ponderamos sobre os prós e contras presentes nos argumentos explicitados por ele. E manifestamos entusiasmo com a visão de mundo, embutida em cada etapa apontada, à medida que percebíamos que a narrativa era plena de propósitos, planos e objetivos. No entanto, confesso a vocês, eu sentia falta de alguns aspectos ‘humanos’, tais como medos, sonhos, fantasias e dúvidas. Isto porque, convenhamos, estando ele com 21 anos de idade e sem ainda ter experimentado as ‘dores do amor’, no fundo, tudo aquilo me soava bonito, porém incompleto. É que para nós, mais velhos e experimentados, o discurso dele não contemplava a presença dos conflitos inerentes à vida. Foi quando eu lembrei da bela melodia de João Bosco e Abel Silva, intitulada “Desenho de Giz”:

“…Aí, diz o meu coração

Que prazer tem bater se ela não vai ouvir

Aí, minha boca me diz

Que prazer tem sorrir

Se ela não me sorrir também

Quem pode querer ser feliz

Se não for por um bem de amor…”

Pois é, minha gente. Ao mesmo tempo, durante a argumentação, eu tentei frear alguns pensamentos meus para permitir que Gabriel atravesse esse percurso do seu jeito e no seu tempo. Afinal, cada um de nós tem lá as heranças e legados, e algumas missões a cumprir, não é verdade? Então, quem sou eu para ditar comportamentos?! O melhor é deixar o Gabriel por sua ‘conta e risco’, atento ao caminhar dele, mas, à distância, sem grandes interferências. O diabo é que nós, pais e mães, temos a irrefreável tendência de querer ‘ajustar’ os passos dos filhos. Sim! Isso pode até ser feito com a melhor das intenções, com muito amor, todavia, devemos reconhecer, nós corremos o risco de pagar um alto preço pela intromissão. Pior ainda: eles é que acabam pagando por isso!

“Eu sei que vocês vão dizer

A questão é querer, desejar, decidir

Aí, diz o meu coração

Que prazer tem bater se ela não vai ouvir

Cantar, mas me digam pra quê

E o que vou sonhar

Só querendo escapar à dor…”

“E agora, José?”, lembraria o nosso poeta Drummond. O que fazer? Sei não. Eu acredito que o mais indicado, talvez, seja colocar na conta do ‘destino’ os rumos que ele irá tomar. E imbuído de confiança, deixar que o talento, a obstinação e a mão de Deus acompanhem os passos dele. Afinal, ele tem tudo para ser feliz. E em caso de dúvida, basta lembrar a belíssima canção: “Quem pode querer ser feliz / Se não for por amor?”

“SUJEITO DE SORTE”

Há quem acredite na sorte e no azar. Há quem aposte nas chances de cada lado dessa moeda do destino. Aliás, se pensarmos bem, nós aceitamos que a vida é assim: dúbia e cheia de idas e vindas. Repleta de certezas e incertezas. De alegrias e tristezas. Porquanto tudo isso faz parte dessa surpreendente estrada, não acham? Por isso mesmo, ela seja o nosso maior desafio e o mais importante ‘objeto do desejo’.

Os poetas, criaturas cuja visão de mundo ultrapassa os limites do nosso entendimento, costumam dizer que o melhor da vida é viver. Aí, sim… creio que eles têm toda razão. Afinal, sem o medo de errar aqui e acertar acolá, no fundo, eles desafiam a própria sensibilidade.

Já eu, porém, não sou poeta. E nem pretendo arriscar a minha cota de sorte. Vai que ela não me dê uma segunda oportunidade, como é que eu fico?! Então, prefiro conduzir a vida de modo mais sereno. Até porque, convenhamos, eu já não tenho idade para alguns riscos.

Isso não quer dizer que a minha vida seja monótona ou sem graça. Não, muito ao contrário! Eu gosto do que faço, podem acreditar. Gosto muito. E não tenho dúvida em declarar que aprecio intensamente o jeito que aprendi a ‘soletrar esse mundo’ ao longo desse caminho.

Belchior, meu querido conterrâneo, certa vez cantou em verso e prosa: “Presentemente, eu posso me considerar um sujeito de sorte / Porque apesar de muito moço / Me sinto são, e salvo, e forte… / Tenho sangrado demais / Tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri / Mas esse ano eu não morro.”

Pois é, minha gente. No ano passado, eu festejei o centenário do meu velho pai. E percebi que ele soube conquistar, com sabedoria, essa marca extraordinária. Por conta disso, se a genética for condescendente, eu também pretendo chegar lá. Para tanto, é preciso manter o foco e cuidar da saúde física, mental e espiritual. Aproveitando cada pedaço desse chão percorrido e se preparando para o que vem pela frente.

Sei bem que não é uma peleja fácil de encarar. Até porque, as ‘forças contrárias’ estarão presentes, dificultando a empreitada em cada momento do trajeto. Nas esquinas do caminho, sempre haverá um desafio. E em cada estação do ano, por certo, os ventos soprarão fortemente que é pra ver se somos capazes de resistir. Há que pelejar…

O que eu posso dizer é que descobri o meu lugar nesse mundão de Deus. E assim como Belchior percebeu, eu também poderia cantar: “Não você não me impediu de ser feliz / Nunca jamais bateu a porta em meu nariz / Ninguém é gente / Nordeste é uma ficção / Nordeste nunca houve. / Não, eu não sou do lugar / Dos esquecidos / Não sou da nação / Dos condenados / Não sou do sertão / Dos ofendidos / Você sabe bem / Conheço o meu lugar!”

PS. Nossa última foto antes dele se despedir desse plano…

A VIDA VIVIDA*

Sim, meu querido tio, eu bem sei que o título desse texto é inspiração sua. Por sinal, ele foi colocado em uma belíssima crônica, escrita por você nos anos 70. Pois, saiba, então: aquela crônica foi responsável por muitas mudanças na minha vida. É que eu vinha seguindo determinado rumo e, a partir dela, confesso, mudei algumas trajetórias. Muito embora eu reconheça que não eram caminhos ruins, mas por certo não traduziam a essência do meu ser. Havia muita inocência ao meu redor. Muitos sonhos que jamais seriam alcançados, ainda que fossem utopias a serem perseguidas.

O fato é que, de lá para cá, a roda do mundo girou mais um bocado. E, desafortunadamente, muitos de nós nos perdemos no caminho. Uns perderam a coragem de lutar por condições melhores de vida. Outros perderam a noção do que é certo e do que é errado e praticaram coisas feias em nome da ganância. Houve até quem mudasse de lado, fingindo não lembrar as juras e dos compromissos assumidos. Paciência! Sabemos que, no fundo, nem sempre é fácil se manter correto e íntegro…

Também é verdade, meu tio, que inúmeras criaturas abandonaram o apego e a fidelidade às causas mais importantes. E lhe asseguro que não estou aqui a apontar o dedo em direção a essas pessoas. Por mim, elas que prestem conta aos seus pares e as suas consciências. Já me bastaram os incontáveis anos de terapia em busca de arranjos internos mais ajustados. Quem sabe, só assim se consiga seguir em frente com alguma harmonia? Vai saber?!

De minha parte, o que sei é que fui deixando pelo caminho um sem-número de inutilidades, carregadas com extrema dificuldade. O pior de tudo, tio velho de guerra, é que somente agora tudo isso me parece simples e banal. Mas, por que eu tive que pagar esse duro ‘pedágio’? Por que não podia ser mais fácil e suave esse percurso de vida? Até mesmo o Mário Quintana, nosso estimado poeta, experimentou essas dores: “Da vez primeira em que me assassinaram, / Perdi um jeito de sorrir que eu tinha. / Depois, a cada vez que me mataram, / Foram levando qualquer coisa minha…”

Aliás, há um outro poema que é atribuído ao Mário Quintana, mas também a outros autores. Ao que tudo indica, parece ser de autoria desconhecida. Porém, é maravilhoso e oportuno para o momento.

Vejam só:

“De repente tudo vai ficando tão simples que assusta.

A gente vai perdendo as necessidades, vai reduzindo a bagagem.

As opiniões dos outros, são realmente dos outros, e mesmo que sejam sobre nós,

não tem importância. Vamos abrindo mão das certezas, pois já não temos certeza de nada.

E, isso não faz a menor falta. Paramos de julgar, pois já não existe certo ou errado e sim a vida que cada um escolheu experimentar.

Por fim entendemos que tudo o que importa é ter paz e sossego, é viver sem medo, é fazer o que alegra o coração naquele momento.

E só.”