A HERANÇA DO ‘DESCONTENTAMENTO’

(Para a minha querida amiga Mi Vilela)

É certo que as nossas emoções são imprevisíveis. Quase sempre! E por vezes, elas sofrem ainda mais quando estamos diante de acontecimentos desconhecidos. Tudo bem. Pode ser que isso seja apenas uma autodefesa construída para tentar barrar os ‘perigos ou agressões’ externas. Vai saber?! No entanto, creio que em algum lugar da nossa alma se esconde aquele ‘diabinho’ que, sorrateiramente, fica fustigando o nosso espírito. E cobrando da gente um pouco mais de ousadia, de destemor…

Também é verdade que com o passar do tempo nós vamos adquirindo mais cautela e conservadorismo. Há quem considere que isso seja algo bom. Ou, nem tanto assim. É que se formos ouvir o tempo todo a voz da sensatez, no ouvido direito, ah, nós corremos o risco de ver a vida passar muito sem graça, não acham? Além disso, perderemos a capacidade auditiva do ouvido esquerdo.

O que posso dizer é que esse ‘intrincado processo’ não é exclusividade de ninguém. Eu mesmo não me sinto confortável com essas artimanhas. Até porque, ao que tudo indica, essa parece ser a grande peleja da vida, não acham?! Assim sendo, cabe a cada criatura o direito do entendimento e a capacidade de como lidar com essas questões. Bem como o direito de fazer escolhas, sejam elas certas ou erradas. Afinal, de um jeito ou de outro, a vida acaba nos conduzindo e nos ensinando. E vai, também, dando a cada criatura a coragem necessária para enfrentar os desafios. Pois é. O nosso Riobaldo, do Guimarães Rosa, foi um que nos alertou com sabedoria: “…O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

Chico Buarque foi outro que deixou um contundente testemunho: “Arrisquei muita braçada / Na esperança de outro mar / Hoje sou carta marcada / Hoje sou jogo de azar.” E agora, minha gente, onde está a saída?! Ah, eu não sei dizer. Sei apenas que a roda da vida não costuma esperar por ninguém. E nem mesmo aceita que a gente queira ganhar tempo para entender o processo.

Céus! Pelo visto, tudo tem que ser resolvido da melhor maneira que puder. Ou como conseguir. Feito aquele sujeito que ‘vende o almoço que é para pagar o jantar”. Sim! De novo, vem a lembrança da sentença de Riobaldo: “O que a vida quer da gente é coragem!”

Agora, confesso a vocês: toda essa digressão veio por conta da emoção que experimentei ao ver a exposição de fotografia do mestre Bruno Neves. Foi montada na inconfundível Estação Central de São Bento, na cidade do Porto, em terras portuguesas. Aliás, a exposição, intitulada como “As crianças da minha Sé”, foi amparada em um conjunto de fotografias maravilhosas. Eram imagens de crianças brincando nas ruas do Porto, na década de 1970. Segundo o texto no cartaz de apresentação, com o forte título de “A Cidade do Descontentamento”, o fotógrafo Bruno conseguiu captar nas lentes de sua câmera todo o espectro da marginalidade que circundava aquelas crianças. Eram semblantes pobres e sofridos, ainda que não demonstrassem dor. Pois somente as crianças são capazes de escapar das garras da ingrata realidade. Indiferentes, elas conseguem brincar e partilhar o espaço comum. E conseguem até mesmo extrair prazer com suas bolas de futebol de pano, seus improvisados carinhos de madeira e toda sorte de brinquedos que a imaginação infantil pode produzir.

E eu, como um observador envelhecido pelo tempo, e com a infância já distante o suficiente, acabei me comovendo com aquelas belíssimas imagens. Como consequência, reconheço, aquelas fotos foram capazes de retirar a mordaça que o tempo colocou em mim. E nem mesmo o meu velho e conhecido ‘Canelau’ foi capaz de impedir…