ERA DIA DE SÃO BARTOLOMEU

Pode-se dizer que Antônio era um sujeito diferente, daqueles que todos costumam considerar como um homem esquisito. Não que ele tivesse uma aparência estranha, vá lá. Afinal, apesar de ser um cara bonito, verdade é que havia muita coisa ‘desengonçada’ nele. O jeito torto de andar. A forma exagerada de falar. Sei não. No fundo, todos diziam que ele não batia bem da cabeça, isso sim!

No entanto, Antônio era um dos poucos daquela rapaziada do Estácio que tinha emprego público. E federal. E como ganhava bem, o povo desconfiava de alguma coisa errada. Primeiro porque ele vivia perambulado pela redondeza em pleno horário comercial. Além disso, todos sabiam da ‘fraqueza’ que ele tinha por corridas de cavalos. Um verdadeiro ‘sócio’ do Hipódromo da Gávea.

Até que um dia Antônio arrumou uma bonita namorada, moça de boa família, e isso ajudou a melhorar a imagem dele. Porquanto ele passou a frequentar o portão da namorada todos os dias, angariando a confiança de todos da vizinhança. E, por algum motivo que eu nunca entendi, Antônio gostava de conversar comigo. Tanto é verdade que após algum tempo eu comecei a entender as razões das corridas de cavalo. No fundo, apesar de ser esquisito, Antônio era bastante religioso. E me dizia que era devoto de São Bartolomeu e que iria ganhar muito dinheiro nas patas de um cavalo…

Lembro que naquela manhã de 24 de agosto, um lindo sábado ensolarado, Antônio apareceu bem cedinho no prédio da namorada. Não para procurá-la e sim para me convidar para assistir ao “Grande Prêmio Brasil”, no Hipódromo da Gávea. Topei na hora, embora nunca tivesse ido a uma corrida de cavalos. Lá chegando, ele me disse que por ser o “dia de São Bartolomeu”, havia muita chance de ganhar dinheiro. Segundo ele, por ser alfaiate, mesmo sem exercer a profissão, ele estaria ungido de bons presságios, amparado por São Bartolomeu, seu protetor.

O que eu posso dizer a vocês é que Antônio estava certo. No terceiro páreo daquela manhã, Antônio apostou todo o salário em um cavalo. Na ponta e na trifeta, veja vocês. Com isso, saiu de lá com mais de um milhão. Ao me abraçar, comemorando o feito inédito, ele quis me ofertar um bom dinheiro, mas eu não aceitei, pois não saberia justificar isso em casa. Só sei que a partir dali ele sumiu do bairro e nunca mais se soube do paradeiro dele. Há quem diga que ele perdeu tudo em outras apostas e ficou nas mãos dos agiotas. Outros afirmam que ele se envolveu com uma mulher casada e o marido ciumento o fez mudar de cidade. Enfim, vai saber?!

(Imagem ilustrativa do Grande Prêmio Brasil de 1968)

OS ESPELHOS DE CADA CRIATURA

Ah, minha gente, eu só posso dizer que já faz muito tempo. Sim! Foi muito antes de eu nascer. E foi Cecília Meireles que escreveu o antológico poema “Retrato”. Nele, a fabulosa Cecília derrama toda sua indignação contra o implacável ‘esmeril’ do tempo. Vale a pena lembrar:

“Eu não tinha este rosto de hoje,

Assim calmo, assim triste, assim magro, / Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo. / Eu não tinha estas mãos sem força, / Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração / Que nem se mostra. / Eu não dei por esta mudança,

Tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida a minha face?”

Pois não é que eu acordei hoje lembrando desses versos? Quem sabe, por estar próximo ao aniversário de 72 anos, eu esteja experimentando as primeiras dores narradas no impiedoso poema? Vai saber? Afinal, as pernas já não são as mesmas de outras épocas e reclamam o tempo de serviço prestado. Tão pouco a visão consegue descortinar aquelas paisagens que em outros tempos eu me deliciava em apreciar. Pois é. Talvez, alguém corra para me dizer que “esse processo é natural e não pode ser evitado, Carlos”. Tudo bem, sei disso. Mas, ainda assim, não me sinto confortado, meus amigos.

Só para ilustrar, lembro que na tardinha de hoje, eu saí para comprar materiais de construção para a reforma do banheiro. E na volta para casa, ao fazer uso da Via Expressa, com seu movimentadíssimo trânsito de veículos, eu me dei conta de que não estou enxergando bem e tenho dificuldades em fixar a visão no veículo da frente. Por ser portador de glaucoma e pingar cinco gotas diárias de colírios há mais de quinze anos, eu percebo que meus olhos estão exauridos de tanta química. Chego a acreditar que os meus dias de condutor de automóvel estão se encerrando. Não quero correr riscos desnecessários e nem provocar acidentes!

Por outro lado, também é verdade que a ‘maior idade’ me trouxe coisas preciosas. Como a capacidade de deixar as emoções fluírem mais intensamente em meu coração. Sim! Isto porque, quando se é jovem, parece que colocamos uma enorme barreira à nossa frente. De tal maneira, que o direito de viver as emoções fica quase interditado…

No entanto, não estou aqui a lamentar o meu destino. Muito ao contrário, sinto-me um privilegiado nessa vida. E tenho procurado ‘ajudar’ a minha trajetória fazendo o que está a meu alcance. Boa alimentação. Exercícios diários na academia de ginástica. E aproveitar ao máximo as vantagens da bendita aposentadoria: viagens, bons livros, filmes e amigos ao redor. O resto…  bem…  o resto é com aquele senhor lá de cima. Afinal, se o meu pai completou 100 anos de vida, quem sabe a genética forneça aquela preciosa ‘ajudinha’?!

( Imagem: a inesquecível Corfú, na Grécia)