OS CAMINHOS DESSA VIDA

Eu tinha apenas cinco anos de idade e era uma criança franzina, como tantas outras nordestinas. Nem sequer imaginava qual futuro estava reservado para mim. Sabia, ao menos, que o mundo rico e civilizado ficava no ‘sul maravilha’ (Henfil que o diga!). E que o meu bom e velho Ceará seria, doravante, apenas um ‘retrato na parede’. Talvez, por não conhecer o poeta Carlos Drummond, eu não atinasse para a dor: a imensa dor que um ‘retrato’ pode conter. E pode, creiam-me… pode!

O mundo, então, girou mais um bocado. Seguiu a roda do seu caminho e me apontou alguns para escolher. Agora, se as minhas escolhas foram boas ou não… aí, são outros quinhentos. O certo é que venho pelejando nessa vida. Tentando fazer o meu melhor. Sabendo que tanto posso errar aqui, quanto ter medos, acolá. Aceitando que o destino é algo mágico e individual, por mais coletiva que seja a nossa trajetória.

Verdade é que durante muitos anos eu arrastei, feito bola de prisioneiro, muitas culpas por conta daquela ‘prematura saída’ do Ceará. Ainda que as culpas fossem indevidas, eu me sentia um traidor, uma vez que virara às costas ao meu povo, à minha cultura e, dessa forma, estabelecera a minha ‘herança vacante’.

É bem provável que algumas pessoas corram em minha defesa e digam: “isso não é motivo de culpa, Carlos. Quando muito, destino”. É até possível que afirmem que essa viagem não foi exclusividade minha, pois muitos outros retirantes seguiram o mesmo rumo. Cada um com o seu motivo. Cada um com seu legado… E uma diferente ‘sentença’ para cumprir!

Pois é, minha gente… Eu sempre soube disso. Mesmo assim, devo confessar: tais pensamentos não me redimiam. Ao contrário, doíam, isso sim. Doíam. Intensamente!

Foram necessários incontáveis anos para drenar a dor e aprender como a transformar. Para tanto, eu precisei de muita ajuda e, por sorte, vieram de todos os lados. Vieram das angustiadas sessões de análise com o Alexandre Kahtalian, solidário e competente terapeuta. Vieram das maravilhosas pessoas que fui encontrando pela vida e que, de alguma forma, depositaram generosas ‘esperanças’ no meu coração. Criaturas que se tornaram verdadeiros ‘irmãos’ e, ao atravessarem o meu destino, deixaram marcas em minha alma.

Somente a partir daí é que eu comecei a realizar o inventário afetivo. Ainda bem. Pois somente assim os episódios começaram a adquirir significado junto ao meu patrimônio afetivo. Convenhamos: não há nada mais belo nessa vida do que dar sentido a ela! Ingmar Bergman, o extraordinário diretor-cineasta, dizia que “a imaginação tece a sua teia e cria novos desenhos… e novos destinos”.

Por tudo isso, eu imagino que a minha inserção nessa latinidade pode ser confirmada no testemunho do Gonzaguinha, em “Caminhos do Coração”. Vale a pena lembrar:

“Há muito tempo que eu saí de casa

Há muito tempo que eu caí na estrada

Há muito tempo que eu estou na vida

Foi assim que eu quis, assim eu sou feliz.

Principalmente por poder voltar a todos os lugares aonde já cheguei

Pois lá deixei um prato de comida, um abraço amigo, um canto pra dormir e sonhar.

E aprendi que se depende sempre de tanta muita diferente gente

Toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas…

É tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho por mais que pense estar.”

Então, se me permitem, eu gostaria de finalizar este texto fazendo algumas saudações. Primeiramente, ao meu querido Ceará, sem o qual a grande América pouco me diria. Depois, ao poeta Gonzaguinha que nos deixou esse maravilhoso legado e de alguma forma permitiu essa ‘expiação nordestina’. Saúdo, também, aos irmãos nordestinos, na figura do simpático Ariano Suassuna, que encantadamente acrescentam voz à nossa alma. Mas saúdo, principalmente, os que se comovem com essas vozes… e as libertam. Como fez o Alexandre Kahtalian!

OS CAMINHOS DE ‘SEU TIAGO’

Nesses últimos tempos eu tenho encontrado muitas pessoas que estão desencantadas com alguma coisa na vida. Como ocorre agora com o meu vizinho, Seu Tiago. Eu não sei dizer se o desencantamento que ele experimenta surja por motivo financeiro, afetivo ou mesmo por paixão ideológica. Também é verdade que, por vezes, isso ocorre devido a um conjunto de causas aparentemente indecifráveis. O que torna mais complicado se apontar as razões. É que tudo fica muito disperso e difuso, convenhamos. E, quase sempre, acaba provocando incompreensão daqueles que estão próximos. Pois é, minha gente. Sei bem que não é nada fácil. Porquanto algumas vezes nós perdemos o ‘norte’ e permanecemos pelejando por aí atrás de alguma resposta redentora… E o pior é que não vem!

O nosso querido Ariano Suassuna nos disse um dia que “ao redor do buraco, tudo é beira”. Céus, que verdade ‘certeira’. Sim! Afinal, são incontáveis os momentos em que a vida nos põe frente a frente com o ‘crime’. Entendendo esse ‘crime’, é claro, apenas no sentido da perda do controle. Eu digo isso porque é fácil notar a desenfreada necessidade que temos de ‘controlar’ tudo ao nosso redor. Como se a perda do controle significasse tão somente um atestado de ‘incapacidade ou desespero’.

Aliás, é interessante perceber que ao lermos um belo romance ou ao assistirmos a um denso filme, em cuja história algum personagem ‘destrambelha’, imediatamente, sentimos pena. É uma reação espontânea, como um ato contínuo, pois logo a seguir vem: “tadinho, ele perdeu o controle”! Não é assim que acontece? O diabo é que tudo isso é bastante complicado. Muitas vezes, eu me pilho ‘controlando’ a mim ou os que me cercam. Paciência, fazer o quê? Nem mesmo a terapia me deu ‘imunidade’ suficiente. Mas, será que precisamos controlar as coisas assim? E o que representa esse controle? Bem, aí é que mora o ‘x’ do problema. E a razão deste texto!

Ah, meus amigos, eu não sei dizer o que nos cura. Tampouco o que nos mata. No entanto, desconfio que na busca por esse ‘controle’, a primeira grande utopia criada pelo homem, talvez tenha ocorrido no próprio ‘Éden’. O verdadeiro nirvana onde, segundo afirmam, não precisávamos fazer absolutamente nada. Tudo nos era ofertado pela mãe-gentil, a natureza. E assim, vivíamos em paz! Todavia, logo a seguir veio a cobiça. E os consequentes resultados dela. O homem, então, trilhou caminhos conturbados, que promoveram diversos conflitos. Por conta disso, é bem possível que muitas crenças, misticismos e utopias tenham surgido como uma espécie de ‘compensação’ às perdas. Tudo bem. No fundo, vá lá, elas eram até necessárias. Ou inerentes. Bem melhor do que ficar sentado à beira do caminho “à espera de Godot”, não acham? O importante é que os nossos queridos ancestrais do Éden não tiveram acesso a antológica obra de Samuel Beckett e nem ouviram falar de Vladimir e Estragon. Talvez, tenha sido melhor. Isso porque, ambos encontraram a ‘loucura’ ao seu jeito e ao seu tempo. Revelada sob a mais perfeita das condições: o sonho recorrente. Podendo, muitas vezes, parecer cruel aos que de fora observam. Apesar de tudo, devemos reconhecer, foi por intermédio dos sonhos que a humanidade encontrou muitas verdades. E por conta das utopias, o homem ainda sobrevive. Caso contrário, ‘a vaca já teria ido para brejo’ há mais tempo, não é verdade, Seu Tiago?

O importante é ter cuidado no trato dessas questões. Pois é preciso não as banir ‘a priori’, como teimosamente fazemos quando nos deparamos com o diferente ou com o inusitado. Sim! Os Jardins do Éden podem ter revelado bem mais do que as ‘inocentes maçãs’, ainda que seja imputada à serpente a nossa primeira ‘loucura’. De toda a forma, com ou sem ‘pecado’, a loucura teve o seu lado bom. É que ao estampar os desejos inconscientes, presentes em cada um de nós, ela libertou um sem-número de almas inconformadas. Com isso, os nossos julgamentos se tornaram mais condescendentes e pudemos, enfim, avançar em alguns aspectos da nossa humanidade, que tantos cuidados careciam…

Pois é. No fim das contas, o mestre Ariano tinha toda razão em acreditar que “ao redor do buraco, tudo é beira”. Pudera! Uma vez que nessa vida, muita gente já atestou um sonho. É bem verdade que alguns deles foram vividos apenas por quem o sonhou. Mas, não importa! O que vale é evitar os ‘jardins de Tânatos’. Porquanto esses, sim, são mórbidos e sombrios. Eles dão as costas aos sonhos e, implacavelmente, sentenciam o fim das utopias, determinando a morte em toda a sua extensão!

Assim, embalado pelo sonho, eu prefiro a visão peculiar e instigante que Chico Buarque nos presenteou: “A novidade / Que tem no Brejo da Cruz / É a criançada se alimentar de luz / Alucinados, meninos ficando azuis… / Na rodoviária, assumem formas mil. / Uns vendem fumo, / tem uns que viram Jesus. / Muito sanfoneiro, / cego tocando blues. / Uns têm saudade e dançam maracatus. / Uns atiram pedras, / outros passeiam nus! / Mas há milhões desses seres / que se disfarçam tão bem, / que ninguém pergunta / de onde essa gente vem”?!

Oxalá, o Seu Tiago encontre a tão desejada paz interior. E com isso, ele possa ‘escapar’ dessa máquina de moer em que o mundo se transformou…

“DRÃO” (*)

É certo que nós vivemos tempos complicados. Nosso país se encontra bastante dividido. Até aí, é verdade, isso não chega a ser algo inédito. Afinal, outros tantos países já experimentaram momentos semelhantes ou piores, e nem por isso sucumbiram.

Contudo, nesse caso, o que mais preocupa é perceber que tal divisão entrou fortemente no seio das famílias e grupos de amigos. Fazendo com que um lado hostilize o outro com todas as formas possíveis de expressão. E o resultado é que um sem-número de amizades e relações interpessoais ficam severamente arranhadas ao aflorarem as manifestações radicais. Porquanto o ‘ódio’, sorrateiramente, acaba assumindo o protagonismo.

Pois é, minha gente. O que se sabe é que ninguém sai ileso ao atravessar períodos conturbados como esses. Até porque esse ‘ódio’ se infiltra nos processos ideológicos e afetivos. Pronto para dar o ‘bote fatal’…

O agravante, a meu ver, é que a mídia tem intermediado o processo de forma manipulada. Indisfarçavelmente. Interessada apenas nessa ou naquela corrente. Com isso, eles arrastam multidões, não apenas nas análises e pesquisas veiculadas pelas redes sociais. Não, meus amigos! A coisa é mais perversa do que se imagina. E ela penetra, sub-repticiamente, no âmago dos lares brasileiros, tomando os desavisados eleitores como reféns.

Aliás, se olharmos para trás, veremos que os antagonismos políticos sempre existiram. Porém, sempre conduziram a convivência civilizada com parcimônia e camaradagem. Os pequenos entreveros que surgiam no ‘palco da disputa’, ah! prescreviam logo após o resultado das urnas. A partir dali, por certo, tudo voltava à normalidade logo a seguir. E a vida seguia o seu rumo, indiferente do lado vencedor ou perdedor do pleito.

No entanto, nada disso permaneceu de pé no nosso quintal. O que vemos é assustador. O que se percebe é que tais ressentimentos ainda irão alcançar o auge litigioso dessas relações. E o que tudo isso vai resultar, sem dúvida, é um campo de batalha onde não haverá vencedor: apenas desoladas vítimas!

É possível que alguém questione o que tudo isso tem a ver com a melodia, “Drão”(*), de Gilberto Gil? Sim, meus leitores. Então, eu lembrarei os versos do nosso encantado compositor-poeta:

“Drão, o amor da gente é como um grão / Uma semente de ilusão / Tem que morrer pra germinar / Plantar n’algum lugar / Ressuscitar no chão nossa semeadura.”

“Quem poderá fazer aquele amor morrer / Nossa caminhadura? / Dura caminhada / Pela estrada escura.”

“Drão, não pense na separação / Não despedace o coração / O verdadeiro amor é vão / Estende-se infinito, imenso monolito / Nossa arquitetura.”

E ao perceber a angústia experimentada pelo meu jovem filho, já devidamente engajado na luta para que a ‘esquerda’, que ele tanto venera, saia vencedora, eu apelo para os versos seguintes do poeta:

“Drão, os meninos são todos sãos / Os pecados são todos meus / Deus sabe a minha confissão / Não há o que perdoar / Por isso mesmo é que há / De haver mais compaixão.”

“Quem poderá fazer aquele amor morrer / Se o amor é como um grão? / Morre e nasce trigo / Vive e morre pão.”

O OLHO MÁGICO

Eu acordei com o som da campainha tocando freneticamente. Daí, pensei: “quem será o miserável que vem incomodar a gente numa hora dessa?” Antes de abrir a porta, na dúvida, dei uma espiadinha pelo olho mágico. Só que não reconheci a figura, embora fosse ‘familiar’. “Céus, eu já vi este rosto antes… mas não lembro quem é!”

O sujeito era alto e magro, bem mais velho do que eu. Decorridos alguns segundos tentando identificar a fisionomia, sem lograr êxito, acabei rendido pela curiosidade e abri a porta.

– Pois não…

– O senhor é o professor Carlos?

“Sim”, respondi no automático. “E o senhor é quem?” Mal acabei de formular a pergunta e, pimba, lembrei: João Saldanha, o grande cronista esportivo e comentarista de futebol. Ex-técnico da seleção de 1970!

Isso, contudo, não me trouxe alívio, e sim perplexidade. O que ele queria de mim? Foi quando ele se apresentou:

– Meu nome é João Saldanha. Sou pai da proprietária desse apartamento que o senhor aluga…

Amigos, nessa hora o meu ‘desconfiômetro’ estava desligado, pois nem imaginei o que viria a seguir. Muito afobado, ele pediu para entrar e explicar o motivo de sua ‘visita’, tão tarde da noite.

– A ‘questão’ toda, professor, é que minha filha resolveu vir morar comigo. Portanto, o senhor pode imaginar o problema que isso está acarretando.

Refeito do susto inicial, eu ouvi atentamente as explicações. Lembro, inclusive, que concordei com quase todos os argumentos dele. Por certo, isso ocasiona muitos ‘transtornos’, uma vez que a vida da criatura toma outro rumo. Abruptamente!

– Eu posso compreender os seus motivos… Mas peço que entenda os meus. Afinal, acabei de alugar esse apartamento, pela imobiliária. O contrato não completou sete meses e ainda tenho outros cinco pela frente… E de mais a mais, eu vim para cá porque fui despejado do apartamento do Leblon, após sete anos de moradia. Ou seja: eu fiquei muito aborrecido por ter que sair daquele apartamento que tanto gostava. Ainda por cima, ele era perto de todas as escolas onde leciono. Já esse aqui, embora mais distante, compensou pelo tamanho, uma vez que é bem mais amplo que o anterior!

Pois é. Eu ainda pretendia dizer ao João Saldanha que tão logo encontrasse outro imóvel, eu liberaria o da filha dele. Qual o quê! De repente, ele começou a esbravejar.

– Porra… Eu preciso que o senhor saia até o final desse mês, professor!

Expliquei que isso era impraticável. Eu só teria tempo para procurar outra moradia nos finais de semana, porquanto durante a semana eu dava quarenta e poucas aulas, não sobrando tempo.

– Eu estou contando com a sua ajuda, professor… Com a sua preciosa ajuda!

Esta foi a derradeira frase, antes de ir embora… Nem preciso dizer o quanto eu fiquei atordoado com tudo aquilo. E na manhã seguinte, bem cedo, eu liguei para minha irmã que morava no apartamento que me pertencia, na zona norte do Rio de Janeiro. Aliás, eu só não morava nele porque ficava muito contramão. Comecei a ligação com humor negro: “eu tenho duas notícias ruins para lhe dar.” Ela deu um suspiro e perguntou: “quais são?!” Comecei dizendo que, mais uma vez, eu havia sido ‘despejado’. E ela retrucou: “que chato… e a segunda notícia, qual é?” Eu respondi de bate-pronto: “É que por conta disso, você também será despejada!”

Meu Deus do Céu, ela ficou uma arara, minha gente, alegando que eu iria ‘tumultuar’ a vida dela. Falou um monte… Argumentei que aquilo era necessário. Não aguentava mais fazer tantas mudanças em tão pouco tempo. O certo é que ela ficou bastante aborrecida por uma semana. Mas não é que o destino aprontou? Na semana seguinte, vejam vocês, ela conseguiu um apartamento no mesmo bloco. Dois andares acima e, ainda por cima, no lado da sombra! Com isso, eu pude entregar o imóvel da filha do João Saldanha em apenas quinze dias…

Ufa! Quando eu liguei para o Saldanha, anunciando a entrega, ele fez questão de ir pessoalmente receber as chaves. No dia combinado, ao chegar, eu o encontrei na portaria do prédio. Com um largo sorriso, abraçou-me com entusiasmo e agradeceu o esforço que eu havia feito. Para demonstrar a gratidão, João me entregou uma camisa do Botafogo, autografada pelos jogadores. Recebi por educação, confesso. Dei um leve e maroto sorriso, mal disfarçando o descontentamento. Afinal de contas, eu sou flamenguista roxo… e aquilo me pareceu ‘provocação’! Vai saber…

(Imagem da internet)